Reforma tributária

Cultura Urartiana, Medalhão, Séculos 8 a 7 a.C.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOSÉ DIRCEU*

As elites querem manter nossa estrutura tributária iníqua

O que me espanta, nos dias de hoje, é que a ilusão de classe –termo muito usado na esquerda para definir um certo tipo de alienação típica de quem esquece a natureza das classes sociais– continue a dominar nossas elites empresariais e seus arautos, analistas e mesmo economistas. Os sintomas dessa alienação estão expressos na proposta de reforma tributária do governo que mantém a mesma estrutura atual de concentração de renda: não inclui alíquotas crescentes de IR (Imposto de Renda) para os que ganham mais, mantém as atuais taxas irrisórias para heranças e doações e não taxa as grandes fortunas.

Na verdade, a proposta não altera a atual estrutura tributária e sua principal característica, que é cobrar mais de quem ganha menos e quase nada dos muitos ricos. Segundo relatório da ONU de 2019, 1% de brasileiros concentravam 28,3% da renda e os 10% mais ricos passaram a abocanhar 41,9% da renda. Com a pandemia, o fenômeno da concentração se agravou.

A proposta de taxar lucro, dividendos e lucro sobre capital próprio, presente no texto da reforma, provoca gritaria entre os porta-vozes do mercado financeiro. O aumento das alíquotas do IR para quem ganha mais nem foi considerado. No entanto, as alíquotas são progressivas para quem ganha menos (7,5%, 15%, 22,5% e 27,5%, acima de R$ 4.664,69). Ou seja, do ponto de vista da estrutura tributária tanto faz ganhar R$ 5 mil, R$ 50 mil, R$ 500 mil, R$ 5 milhões e por aí vai.

Os que vivem de salário, além do IR, pagam os mesmos impostos indiretos e regressivos sobre bens e serviços que os que vivem de renda ou que recebem altas remunerações. Assim, na prática, são os trabalhadores, os pobres, a classe média que arcam com a carga tributária. Os ricos e a classe média alta são beneficiados por isenções e deduções ou simplesmente não pagam impostos.

A própria Receita Federal declarou que os 21 mil brasileiros mais ricos pagam apenas 1,8% de tributo sobre a renda, os 65 brasileiros mais ricos detêm US$ 219,1 bilhões e os patrimônios dos super ricos cresceram US$ 34 bilhões durante a pandemia.

A ilusão de classe das elites financeiras vale também para os juros reais e a concentração bancária. O cartel de bancos e de uma minoria de rentistas navegam nas águas tranquilas dos rendimentos das aplicações financeiras e dos juros pagos pelo governo no serviço da dívida pública, o que representa uma expropriação de renda dos trabalhadores e suas famílias e das pequenas empresas.

O que se paga pelo serviço da dívida pública é um exemplo claro da expropriação e da concentração de ganhos no sistema financeiro. Em maio deste ano, a taxa Selic estava em 2,75% ao ano, hoje é de 4,25% e a previsão é que chegue ao final de 2021 em 6,5%. Ou seja, um aumento de 3,75 pontos de maio a dezembro. Isso significa que pagaremos mais pelo serviço da dívida interna: para cada ponto a mais de Selic, pagamos mais R$ 31,8 bilhões.

Com juros mais altos, cresce o serviço da dívida, embora menos de 1/3 da dívida esteja indexada à Selic. A taxa de remuneração dos títulos da dívida pública não tem relação direta com a Selic, mas com outros índices –quando a Selic estava em 2%, a taxa média da dívida pública foi de 8,4%.

Na vida real, os brasileiros pagam juros estratosféricos, seja no cartão de crédito, no crédito pessoal, no rotativo, no cheque especial, no crédito ao consumidor. A diferença entre o que os bancos pagam pelo nosso dinheiro e nos cobram, na média, é de 33,3 pontos para a pessoa física. Só para refrescar a memória, os juros anuais do cartão de crédito, em fevereiro deste ano, estavam em 306,2%; no crédito pessoal variavam entre 3,98% e 5,23% ao mês, mais de 50% ao ano.

O resultado não poderia ser outro. O aumento da pobreza e a volta da fome, 15 milhões de desempregados, 33 milhões de subempregados, 6 milhões de desalentados. A metade da população economicamente ativa do país de braços caídos ou subempregados. Uma tragédia humanitária agravada pela pandemia.

O que me assusta em nossas elites, além de sua absoluta insensibilidade com a questão social, é sua crença de que, se a economia crescer, tudo estará bem, Bolsonaro se reelegerá e o Brasil estará bem governado por ele. Fecham os olhos à criminosa gestão da pandemia, aos 516 mil brasileiros e brasileiras mortos pela covid-19, ao obscurantismo, ao fundamentalismo religioso, à devastação ambiental, da cultura e da educação, ao negacionismo científico, ao isolamento internacional, aos riscos do autoritarismo, às milícias e à pregação do ódio e da violência, à homofobia e ao machismo, ao fim das liberdades democráticas. Nada importa desde que a economia cresça e sua candidatura volte a ser competitiva.

Não enxergam que crescimento econômico por si só não vence eleições nem traz bem estar social. Se a realidade fosse como pregam, o Chile, o Peru e a Colômbia não estariam vivendo hoje verdadeiras revoluções e revoltas populares. O aumento da repressão e mesmo a presença das Forças Armadas nas ruas não conseguiram conter os revoltosos. Ao contrário, fez crescer a força dos movimentos que se refletiu nas urnas.

É pura ilusão de classe das elites brasileiras desconhecer a crescente tomada de consciência das desigualdades sociais iníquas de nossa sociedade pela maioria da população, o caráter racista e machista de nossa sociedade, a injusta estrutura tributária onde os ricos não pagam impostos, a crescente participação da juventude nas lutas e sua sede de justiça e oportunidade, o fracasso do modelo neoliberal em todo mundo, principalmente na América do Sul.

Como é possível fazer de conta que não existiram o laranjal e as fake news que elegeram Bolsonaro, sua relação com as milícias, as rachadinhas e agora a teia da corrupção que envolve não só seu governo como os militares que dele participam? O primarismo político de nossas elites políticas e econômicas é estarrecedor.

Só nos resta a certeza de que, como nos últimos 70 anos, caberá ao povo, aos trabalhadores, aos movimentos sociais, à juventude, às mulheres, aos que resistiram à ditadura e que derrotaram a Arena em 1974, aos que forjaram o movimento das Diretas Já, aos que inscreveram na Constituinte os seus direitos e elegeram Lula e Dilma para governar o Brasil, vencer Bolsonaro e essas elites predadoras. São essas forças populares que vão garantir a democracia e as mudanças sociais para concluir a nossa inacabada construção nacional, centrada na soberania do país e na distribuição de renda e riqueza.

José Dirceu foi ministro da Casa Civil no primeiro governo Lula. Autor, entre outros livros, de Memórias (Geração editorial).

Publicado originalmente no site Poder360.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES