Repensando as relações Brasil-China

Imagem: Jiawei Cui
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Por DANILO AUGUSTO DA SILVA HORTA*

A inserção internacional da China e sua crescente influência sobre as economias latino-americanas e africanas têm reflexos sobre as dinâmicas econômicas e diplomáticas brasileiras

A política externa do governo Lula III

Construir, estruturar e aplicar uma política externa frutífera é uma tarefa complexa e custosa. Fruto de inúmeras disputas entre forças domésticas, cada ação internacional empregada por um governo tem reflexos diretos e indiretos sobre o ambiente doméstico de determinado país e sobre o ambiente internacional, em maior ou menor medida a depender das capabilities nacionais (Hard Power e Soft Power).

Entre erros e acertos, discursos aplaudidos e discursos criticados, observamos, nesse terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2023-atualidade), o desenvolvimento de uma política externa aos moldes da aplicada em seus governos anteriores (2003-2010), em ambientes doméstico e externo mais complexos e desafiadores.

Dizer que a política externa do terceiro governo Lula, que ainda se desenvolve na atualidade, segue (ou pelo menos tende a seguir) os moldes da política externa adotada nos seus dois primeiros mandatos presidenciais significa defender que ela se estrutura a partir dos seguintes eixos: (i) pela tentativa de fortalecer relações com países do denominado Sul Global, atribuindo-se aos relacionamentos de caráter Sul-Sul importância central para os objetivos internacionais buscados pelo atual governo e para os interesses nacionais brasileiros.

(ii) Pela busca por manter bons relacionamentos com países do Norte Global, em que pese a importância dada ao relacionamento com os Estados Unidos comandado por Joe Biden e com a União Europeia (as relações Norte-Sul ganham outro caráter neste governo, uma vez que a defesa da institucionalidade democrática se torna basilar para o governo, especialmente após os episódios de 8 de Janeiro de 2023); (iii) pela busca por fortalecer a posição brasileira no Sistema Internacional e trazer prestígio à imagem do Brasil frente à distintos atores internacionais, em especial por meio da atuação em temáticas referentes à redução de desigualdades sociais, à proteção do meio ambiente e à busca pela paz.

(iv) Pela tentativa de fortalecimento do multilateralismo e da posição brasileira em distintos organismos internacionais e (v) pela centralidade dada à integração regional. Somado a esses eixos, observa-se a utilização de importantes instrumentos de política externa por parte do governo, do qual a diplomacia presidencial se sobressai. Esses eixos caracterizam aquilo que poderíamos considerar as bases da política externa lulista (ou petista em termos mais amplos), tendo reflexos diretos sobre a política externa brasileira na atualidade.

O fato a ser destacado, e cujo debate deve ser realizado com seriedade, repousa sobre os efeitos domésticos e internacionais da política externa seguida pelo terceiro governo Lula sobre (1) a posição brasileira no Sistema Internacional, (2) a economia brasileira e (3) a sociedade brasileira.

Como é facilmente observado, o cenário externo e o cenário doméstico enfrentados pelo governo Lula III são qualitativamente distintos dos cenários enfrentados pelo presidente durante seus dois primeiros mandatos. Em nível internacional, observamos a existência de crescentes tensões e disputas concorrenciais entre China e Estados Unidos, duas das potências com maiores capacidades econômicas e militares do mundo; a existência de distintos conflitos com repercussões mundiais: entre a Ucrânia e a Federação Russa e entre Israel e Palestina; e a coexistência de governos de extrema-direita em todo mundo, e em particular na América Latina, com fracos governos de esquerda, como é o caso do governo de Gabriel Boric no Chile.

Em nível doméstico, ao mesmo tempo em que observamos distintos, e poderosos, grupos e setores econômicos que se contrapõem a política externa empregada pelo governo Lula na contemporaneidade (e ao próprio governo, em última instância), persiste uma enorme sensibilidade no que tange às ações empregadas em nível internacional pelo governo brasileiro, de modo que muitas delas implicam em grandes custos políticos para o presidente e para suas bases de apoio (basta lembrar das reações adversas recebidas na ocasião da visita de Nicolás Maduro ao Brasil, no primeiro semestre de 2023). Além disso, soma-se a ideia de que Lula busca (ou pelo menos buscou durante o primeiro ano de seu mandato) reestruturar as relações brasileiras com distintos atores do Sistema Internacional, afetadas pela condução ideológica da política externa do governo de Jair Bolsonaro (2019-2023).

Levando-se em consideração a perspectiva de que o governo Lula III conduz as ações internacionais do Brasil seguindo os eixos da política externa adotada ao longo de seus dois primeiros mandatos (seja por conta das crenças pessoais/partidárias acerca do papel e imagem do Brasil, seja porque estas experiências tenham sido bem sucedidas anteriormente) em um ambiente doméstico mais desafiador e em um ambiente internacional distinto, faz-se necessário analisarmos e versamos sobre os efeitos desta condução internacional para o Brasil.

O argumento defendido neste texto é o de que as ações promovidas pela política externa do terceiro governo Lula geram efeitos contraditórios sobre a economia brasileira, e que não raro, afetam negativamente os programas traçados pelo próprio executivo para o Brasil, em especial os objetivos de desenvolvimento econômico e de melhoria da qualidade de vida da população brasileira.

Assim, nesse texto, abordaremos dois pontos que são centrais, em nosso entendimento, para analisar as incongruências da política externa do novo governo lulista: (a) a contradição entre a ideia de desenvolvimento expressa pelo presidente Lula por meio do seu programa de “neoindustrialização” nacional e a aproximação com a China, um país do “Sul Global”,[i] que desenvolve relações assimétricas com o Brasil e prejudica seu desenvolvimento industrial e (b) a falta de diferenciação entre as relações Sul-Sul do Brasil com países africanos e latino-americanos e as relações “Sul-Sul” do Brasil com a China (e outras potências como a Rússia), em que a valoração destas últimas levam a uma diminuição do protagonismo brasileiro no Sistema Internacional e perda de capacidade frente a integração regional.

O desenvolvimento buscado e as dificuldades oriundas do fortalecimento das relações com a China

O processo de desenvolvimento e inserção internacional da China na economia global gerou, sem dúvidas, uma série de desafios para a introdução de projetos de desenvolvimento econômico/industrialização em economias periféricas e maiores desafios para suas manutenções e avanços. Na realidade, a inserção chinesa afetou muitas indústrias dos países periféricos, levando a processos de desindustrialização e perda de empregos em muitas regiões; o Brasil, maior economia industrial latino-americana, é um dos países afetados pela crescente inserção chinesa na economia global e nacional. Entender como a ascensão chinesa modificou as dinâmicas econômicas e políticas globais é fundamental para compreendermos os cenários tortuosos enfrentados pelo Brasil no curto, médio e longo prazo.

O processo de desenvolvimento chinês se iniciou em 1949, após a tomada do Estado pelo Partido Comunista Chinês (PPCh). Inicialmente comandado por Mao Tsé-Tung, observa-se a instauração do planejamento central na economia do país. Através das políticas ditadas pelo PCCh, durante o período maoísta (1949-1976), a economia chinesa apresentou uma grande industrialização e um desenvolvimento infraestrutural que seriam fundamentais para o sucesso econômico observado após a introdução reformista capitalista de Deng Xiaoping em 1978. Tais reformas foram responsáveis por introduzir mecanismos de mercado no seio da economia chinesa e por liberalizá-la, de modo a configurar uma recapitalização da China.

Com essas reformas, o país passa a se inserir, de maneira crescente, na economia global, sendo beneficiado diretamente pelas transformações sistêmicas ocorridas no seio do sistema capitalista desde meados da década de 1970, das quais podemos destacar: a reestruturação produtiva (com a deslocalização e desverticalização da produção); as liberalizações comerciais e financeiras, basilares para a crescente financeirização do capitalismo, e a adoção de políticas econômicas neoliberais, que seguiam o Consenso de Washington, em vários países.

De modo resumido, a China se beneficia desses processos por uma série de motivos: (i) as estruturas industriais e a atividade produtiva das grandes empresas transnacionais passam a se direcionar para os países asiáticos, se concentrando, em grande medida, na China (especialmente após o Acordo de Plaza em 1985), de modo que este países passa a ser crescentemente inserido nas cadeias globais de valores; (ii) grande parte dos Investimentos Estrangeiro Diretos (IEDs) passam a se concentrar na China (devido também a concentração das atividades industriais e manufatureiras globais); (iii) com a crescente deslocalização produtiva e as crescentes liberalizações comerciais, a demanda externa por manufaturados e bens industriais produzidos na China nas principais economias globais, em especial nos Estados Unidos, cria estímulos para o desenvolvimento industrial da China, em grande medida estruturado para atender a demandas estrangeiras via exportações (isto é, os estímulos exógenos foram fundamentais para o desenvolvimento econômico e industrialização chinesa).

Na realidade, as conexões desenvolvidas entre a China e as economias avançadas do globo, em especial com os Estados Unidos, criaram dinâmicas econômicas que foram determinantes para a expansão de ambas as economias nacionais e da economia global até a crise financeira de 2008. Essa dinâmica é explicitada, com exatidão, por Li e Bernal-Meza (2021, p. 9): (a) a China produz bens de baixo custo e os exporta para os Estados Unidos; (b) a China recebe dólares como pagamentos por suas exportações; (c) China passa a ser a maior detentora de dólares americanos e de títulos da dívida dos EUA; (d) a compra de títulos da dívida dos EUA pela China subsidia o consumo norte-americano e (e) um consumo estimulado nos EUA eleva as exportações da China, que, por sua vez, estimula a produção e o desenvolvimento chinês. Essa dinâmica econômica permaneceu até a crise de 2008, quando então é quebrada pela diminuição do consumo global, oriunda dos efeitos recessivos da crise mundial. De toda maneira, ela possibilitou a China se tornar a “fábrica do mundo”, constituindo-se como um eixo articulador da produção em nível global.

A partir da crise, observam-se alterações importantes nas dinâmicas econômicas e na inserção internacional da China. Em seu ambiente doméstico observa-se a aplicação de políticas de cunho expansionista (visando estimular o consumo e o investimento a fim de fazer frente à queda da demanda externa, em especial dos Estados Unidos e demais países centrais); adotadas inicialmente no período 2009-2010, tais políticas são prolongadas por toda a segunda década do século XXI (mesmo com a existência de planos do PCCh para reduzir a dependência de investimentos sobre o dinamismo econômico do país).

No âmbito externo observa-se uma inserção internacional mais ativa e agressiva, onde a China busca tanto novos mercados para seus produtos industriais e manufaturados (especialmente em países periféricos) quanto exportar seus capitais excedentes (esses dois fenômenos se inter-relacionam, visto por exemplo o caso da Belt and Road Initiative). O importante a ser ressaltado é: essas novas dinâmicas aprofundam as dificuldades para o desenvolvimento socioeconômico e a industrialização dos países periféricos. Apesar de entendermos não ser possível atribuir todas as dificuldades à economia chinesa (visto as transformações estruturais sofridas pela economia capitalista mundial e as imposições neoliberais), é necessário atribuir responsabilidade às dinâmicas econômicas da China por gerar novas barreiras à industrialização e ao desenvolvimento dos países periféricos, elevando tais dificuldades.

Em essência, bem como discutido por diversos autores (Sugimoto; Diegues, 2022; Hiratuka, Sarti, 2017; Ho-Fung, 2017), as mesmas transformações sistêmicas que asseguraram/estimularam o desenvolvimento econômico da China impuseram uma série de dificuldades para a continuidade do desenvolvimento dos países periféricos, especialmente os latino-americanos e africanos, para os quais os fluxos de IDEs diminuíram consideravelmente após a década de 1980. Somada a tais transformações, a ascensão da China enquanto fábrica do mundo foi responsável por estimular os setores primário-exportadores dos países periféricos, visto a demanda por commodities e insumos industriais da potência asiática, e por afetar, direta e indiretamente, os setores industriais e manufatureiros dos países periféricos, visto a enorme competitividade dos produtos chineses (Ho-Fung, 2017; Sugimoto; Diegues, 2022; Hiratuka, Sarti, 2017), criando fortes estímulos à especialização produtiva nos países periféricos.

Para o Brasil, as transformações sistêmicas e a adoção de políticas macroeconômicas neoliberais foram responsáveis por levar a economia nacional à desindustrialização (combatida parcial e conjunturalmente pelo programa neodesenvolvimentista petista) e à especialização regressiva da pauta exportadora. Ambos estes fenômenos foram/são aprofundados pelas relações econômicas e financeiras sino-brasileiras (Haffner; Barbosa, 2020; Sugimoto; Diegues, 2022; Hiratuka; Sarti, 2017).

Defendemos que a crescente inserção econômica chinesa na economia brasileira tem efeitos negativos sobre o desenvolvimento econômico nacional, muitos dos quais são ignorados por analistas, políticos e pesquisadores, sob o falso manto da “Cooperação Sul-Sul”. Vale ressaltar que a inserção chinesa na economia mundial tem outros efeitos negativos para o Brasil, tanto no plano econômico quanto no plano político (embora esta distinção inexista na realidade): ao se tornar fundamental para a economia de muitos países periféricos, especialmente latino-americanos e africanos, a inserção chinesa na economia mundial retira do Brasil mercados estrangeiros para exportar seus produtos (em especial produtos industriais e manufaturados que enfrentam a concorrência chinesa) e paulatinamente dinamita as relações brasileiras com outro países periféricos, visto que muitos deles apresentam fortes setores primário-exportadores, dos quais concorrem com os produtos primários brasileiros.

Devido a isto, as capacidades de inserção internacional do Brasil são paulatinamente dinamitadas, visto a perda de relevância econômica frente a vários atores, em especial para os latino-americanos e africanos, fundamentais para a cooperação Sul-Sul buscada pelos governos lulistas (é pouco plausível negar que a economia exerça um papel fundamental na formação e no desenvolvimento de relações político-diplomáticas, muito embora na disciplina de Relações Internacionais e no campo da análise de política externa marginalizem-se dinâmicas econômicas das análises realizadas).

Outro argumento pode ser utilizado para defender a perda de capacidades nacionais do Brasil oriundas das relações sino-brasileiras: enquanto a China estimula a desindustrialização e especialização regressiva da pauta exportadora no Brasil, este último tem seu poder potencial, nos termos de Mearsheimer (2007), afetados diretamente, diminuindo suas capabilities nacionais e sua capacidade de inserção e projeção internacional.

Dito isso, faz-se necessário nos perguntarmos: as relações sino-brasileiras, caracterizadas como relações “Sul-Sul”, afetam negativamente os planos de desenvolvimento seguidos pelo governo Lula III? Defendemos que sim.

Se a política externa constitui-se enquanto um instrumento de promoção do desenvolvimento econômico para o Brasil, e se este desenvolvimento é buscado, em grande medida, a partir do programa de “neoindustrialização” pelo governo Lula III, entendemos que as relações assimétricas/desiguais sino-brasileiras são maléficas a tais objetivos (a menos que se confunda desenvolvimento econômico com crescimento econômico, o que não é o caso do programa do atual governo). Em seu texto “Neoindustrialização para o Brasil que queremos”, lançado em 23 de maio de 2023, Lula da Silva e Geraldo Alckmin, defendem, entre vários pontos, que:

“A exportação de matérias-primas é importante, mas, em que pese o crescente conteúdo tecnológico associado, é mais vulnerável aos ciclos de preços internacionais. Uma economia baseada no conhecimento depende de recuperarmos nosso setor industrial, em benefício também de nossa soberania em setores como saúde, comunicações, defesa e energia. No entanto, estamos perdendo a corrida da sofisticação produtiva”. (Da Silva; Alckmin, 2023, online)

“Precisamos reanimar o comércio dentro do nosso continente e com a Costa Atlântica da África, regiões onde num passado recente exportamos mais produtos industrializados; e explorar nichos abertos pelo crescimento na Ásia de países como Índia, Indonésia e Vietnã, assim como numa China que hoje não só exporta muito, mas estimula um florescente mercado interno com poder aquisitivo cada vez maior – possível destino para nossos cosméticos e alimentos”. (Da Silva; Alckmin, 2023, online)

“A força do nosso agronegócio, por sua vez, permite criar uma cadeia de suprimentos que reduza nossa dependência externa com o Plano Nacional de Fertilizantes, estimular a agroindústria e financiar as exportações de maquinário agrícola e de novas tecnologias que estão surgindo no Brasil para atender o campo”. (Da Silva; Alckmin, 2023, online)

Esses aspectos explicitados por Lula e Alckmin (2023) são fundamentais para discutirmos as contradições existentes entre o dito desenvolvimento buscado e a política externa aplicada pelo governo Lula III. Se é verdade que as relações econômicas e financeiras da China com o Brasil fomentam a desindustrialização e a reprimarização regressiva da pauta exportadora, como defendem diversos autores (Haffner; Barbosa, 2020; Sugimoto; Diegues, 2022; Hiratuka; Sarti, 2017), os objetivos buscados pelo programa de “neoindustrialização” encontram fortes barreiras nas relações econômicas estabelecidas com a China e na crescente inserção chinesa na economia brasileira e na economia internacional.

Isso se processa por uma série de motivos: (1) devido a demanda chinesa, observa-se no Brasil uma tendência a exportar volumes crescentes de matérias-primas sem nenhum processamento. Além disso, esta demanda faz com que o agronegócio e os setores extrativistas nacionais tendam a se especializar na produção de poucos produtos, em geral os mais demandados pela potência asiática (como é o caso da soja, do petróleo e do minério de ferro, dominantes nas exportações brasileiras para a China), e não a diversificar suas produções. Isso, por um lado, leva a uma reprimarização da pauta exportadora do país (concentrada em pouquíssimos produtos, o que eleva, ainda mais, a vulnerabilidade externa).

Por outro lado, em conjunto com a enorme competitividade dos produtos chineses e a crescente inserção chinesa na economia nacional, transforma o país em um crescente importador de bens de capital e insumos industriais (sendo a China um dos principais exportadores desses produtos para o Brasil). Esses dois fatores (reprimarização da pauta exportadora e vazamento da demanda rumo à China) desestimulam outros setores produtivos nacionais, antes voltados para o atendimento das demandas dos setores primários do país (como é o caso dos produtores de máquinas agrícolas, por exemplo) e de outros países do Sul Global (cujas demandas também são crescentemente atendidas pela produção chinesa), fato que fortalece o papel primário-exportador brasileiro, em detrimento dos setores manufatureiros e industriais.

(2) A política comercial de estímulo às exportações, especialmente industriais, para países do Sul Global, isto é, latino-americanos e africanos, encontram enormes barreiras na competitividade dos produtos industriais e manufaturados chineses, que tem conquistados mercados estrangeiros nos quais os produtos brasileiros apresentavam dominância; (3) o vazamento da demanda doméstica por bens e serviços para as importações chinesas tendem a desestimular investimentos no plano doméstico (aumentando problemas observados na economia nacional), fato que deve se elevar com o crescimento das relações econômicas desiguais sino-brasileiras (considerando-se que a China é a principal parceira comercial do Brasil desde 2009, o nível de desestímulos ao investimento nas industriais nacionais advindos das relações sino-brasileiras não podem ser ignorados).

(4) Ao mesmo tempo em que se busca desenvolver uma economia pautada em conhecimento (isto é, no desenvolvimento e aplicação de novas tecnologias de ponta), o processo de desindustrialização precoce sofrido pela economia brasileira, potencializado pelas relações econômicas assimétricas com a China, eleva as dificuldades e os custos de se realizar qualquer transição desejada (não se chega ao ápice do desenvolvimento sem ter uma base estrutural sólida, na medida do possível para um país periférico – é isto o que a experiência chinesa nos ensina, em última instância).

(5) os IEDs chineses voltados para a produção no Brasil são baixos (em relação ao volume total destes investimentos) e seus potenciais menores do que tende a ser pregado (a maior parte dos investimentos tende a ser aplicado em fusões e aquisições a fim de adentrar no mercado nacional e regional, que levam a uma desnacionalização da economia brasileira, enquanto uma parcela menor tende a ser aplicada na forma de investimentos greenfild).

O que isso significa? Que o aprofundamento das relações sino-brasileiras, influenciadas pelas concepções acerca da “Cooperação Sul-Sul”, tem efeitos negativos sobre a economia nacional, que vão na contramão do programa de desenvolvimento/industrialização defendido pelo governo Lula III. O que se observa é a condução de uma política externa que falha em assegurar o desenvolvimento econômico do país, no curto, no médio e no longo prazo.

Dito isso, faz-se necessário responder: as relações sino-brasileiras possuem outros efeitos negativos para a inserção do Brasil na economia mundial/ no Sistema Internacional? Defendemos que sim. Mais além, compreendemos que em vez de uma maior autonomia do Brasil, o que se observa é uma crescente subordinação do país em relação às dinâmicas político-econômicas chinesas.

As relações Sul-Sul contra os efeitos perversos das relações “Sul-Sul”

Dentre as relações de caráter Sul-Sul buscadas pelos governos petistas, as relações com a América Latina, em geral, e com os países do Cone Sul, em particular, sempre foram entendidas como prioritárias/preferenciais (Pecequilo; Carmo, 2017). Tanto em nível bilateral quanto em multilateral, tais relações eram fundamentais para os planos econômicos e político-diplomáticos dos governos petistas, isto é, tanto de Lula quanto de Dilma, visto que: (i) os mercados destes países eram/são fontes importantes de demandas por produtos industriais e manufaturados brasileiros, apresentando relações comerciais com o Brasil qualitativamente diferentes das desenvolvidas pelo país em relações Norte-Sul (em que o Brasil exporta produtos primários e importa bens manufaturados e industriais, tal como é o comércio sino-brasileiro, por exemplo).

(ii) a manutenção de bons relacionamentos com atores regionais assegura a posição de liderança político-diplomática do Brasil na região e possibilita uma maior projeção internacional para o país, que passa a contar com mais apoio em suas iniciativas e demandas realizadas frente a outros atores internacionais e (iii) a integração regional, em especial através do Mercosul, sempre foi entendida enquanto um instrumento fundamental na promoção do desenvolvimento brasileiro, e seu progresso visto como benéfico e desejável para o desenvolvimento de diversos setores industriais e manufatureiros do Brasil. No mesmo sentido, observou uma procura por desenvolver relações com países africanos, que eram fundamentais enquanto fonte de demanda de produtos industriais e manufaturados brasileiros e importantes para as exportações de capitais e expansão/diversificação das grandes empresas/campeãs nacionais. Além disso, a aproximação político-diplomático do Brasil com a África assegurava maiores capacidades e poder de barganha para o Brasil na arena internacional.

Apesar das conexões brasileiras com o “Sul Global” serem amplas e heterogêneas, é importante destacar que as relações desenvolvidas entre Brasil e potências como a China e a Federação Russa são qualitativamente distintas das relações desenvolvidas entre o Brasil e os países latino-americanos e entre o Brasil e os países africanos. As diferenças da primeira para as duas posteriores são grandes: em termos econômicos, o Brasil, em geral, exporta commodities para essas potências e importa bens industriais e manufaturados da China e da Rússia, fato que reproduz dinâmicas centro-periferia clássicas das relações do Brasil com outras potências globais, enquanto as dinâmicas econômicas do Brasil com América Latina e África tendem a ser distintas, conforme destacamos.

Em termos políticos, as capacidades negociadoras do Brasil frente à China, particularmente, tendem a ser muito menores do que o suposto pela literatura corrente (em especial pelos defensores desta relação). A falta de capacidade brasileira frente aos interesses chineses foi observada em vários momentos, como bem explicitado por Pecequilo e Carmo (2017), especialmente nos governos Dilma.

Trata-se de um problema teórico grave o fato de que vários autores desconsiderem que a importância e a influência de uma economia sobre a outra se constituam enquanto importantes elementos de poder e influência no Sistema Internacional. Assim, é válido apontar que as crescentes conexões existentes entre China e Brasil, em que pese a crescente importância das dinâmicas econômicas chinesas sobre a economia brasileira, constituem-se enquanto limitantes do poder de barganha do Brasil frente à China e limitantes das possibilidades de atuação do Brasil no cenário internacional (não seria incorreto afirmar também que tais conexões tem reflexos sobre o bloco no poder existente no Brasil, tendo influências diretas e indiretas sobre as dinâmicas políticas existentes em âmbito doméstico – mesmo que sem interferência direta da China).

Assim, salientamos a importância de discutir se a política externa seguida pelo terceiro governo Lula (em especial visto as mudanças sofridas no seio da economia mundial), ao buscar fortalecer relações de caráter “Sul-Sul” com a China (que são idênticas as relações Norte-Sul/ Centro-periferia), eleva ou não a subordinação do Brasil à potência asiática, visto que no âmbito econômico existe uma crescente influência da economia chinesa sobre a brasileira.

De toda maneira, nesta seção buscamos defender dois pontos: (a) que o fortalecimento das relações de caráter “Sul-Sul” possui efeitos prejudiciais sobre a economia brasileira e para a posição do Brasil no Sistema Internacional e (b) que o fortalecimento das relações sino-brasileiras afeta as verdadeiras relações Sul-Sul do Brasil, isto é, com os parceiros latino-americanos e africanos.

Primeiramente, o governo Lula III, ao buscar o desenvolvimento socioeconômico/reindustrialização/neoindustrialização do Brasil, encontra distintos estímulos nas relações Sul-Sul desenvolvidas entre o Brasil e os países latino-americanos e africanos, em especial intrabloco do Mercosul, enquanto nas relações de caráter “Sul-Sul” com a China encontra diversos desestímulos, conforme abordado (as relações sino-brasileiras estimulam a reprimarização da pauta exportadora nacional e intensificam a desindustrialização na economia brasileira).

Nas relações de caráter Sul-Sul (com países latino-americanos e africanos), os estímulos advêm das características das relações econômicas desenvolvidas entre o Brasil e seus parceiros comerciais: existe uma dinâmica em que o Brasil exporta produtos diversificados, em sua grande maioria bens industriais e manufaturados, e importa também produtos diversificados, em sua maioria complementares a produção nacional, tendo importância às matérias-primas e os insumos industriais.

Nas relações “Sul-Sul” com a China, os desestímulos advêm das características das relações comerciais existentes entre a potência e o Brasil: a China exporta manufaturados e bens industriais baratos, que concorrem com os produtos brasileiros e afetam as indústrias nacionais por sua grande competitividade, e importa grandes volumes de matérias-primas concentradas em poucos produtos (petróleo cru, soja e minério de ferro) do Brasil, estimulando a produção e o escoamento de bens primários sem nenhum processamento.

Seria de se esperar, portanto, que uma política econômica que visasse assegurar a reindustrialização do país ou a “neoindustrialização” se processasse de modo a privilegiar as relações Sul-Sul, ao mesmo tempo em que fosse mais seletiva em relação às relações “Sul-Sul”, mas isto não ocorre. Ao contrário, observa-se uma crescente inserção brasileira nas órbitas político-econômicas sinocêntricas, com poucos ganhos reais para a população brasileira no geral (embora, claramente, existam diversos grupos que se beneficiam desta aproximação, como é o caso dos setores do agronegócio e da mineração).

Isso nos leva ao segundo ponto, ou seja, o de que as relações sino-brasileiras afetam as verdadeiras relações Sul-Sul do Brasil, isto é, as relações com países africanos e latino-americanos. Isso ocorre diretamente como consequência das relações sino-brasileiras e indiretamente como consequência da inserção da China nestas duas regiões.

De modo resumido, entendemos que a inserção internacional da China e sua crescente influência sobre as economias latino-americanas e africanas têm reflexos sobre as dinâmicas econômicas e diplomáticas brasileiras por uma série de motivos: (1) ela dinamita a demanda por bens industriais e manufaturados brasileiros nos países dessas regiões, impondo crescentes dificuldades ao escoamento da produção industrial nacional, cujos produtos são, em geral, menos competitivos que os chineses; (2) ao diminuir a importância econômica do Brasil para tais economias, diminui também o poder e a influência brasileira frente a tais países, com reflexos importantes para as relações bilaterais e para a integração regional; (3) afeta o interesses dos países latino-americanos pela integração regional, tal como pode ser observado na busca do Uruguai por instaurar e desenvolver uma parceria de livre comércio com a China (sendo esta do interesse chinês), com reflexos importantes para a política externa e para o desenvolvimento econômico brasileiro no médio e longo prazo e (4) ao enfraquecer os laços do Brasil com tais países, enfraquece a capacidade brasileira de se projetar internacionalmente.

Por outro lado, é fundamental compreender que as relações sino-brasileiras, para além de potencializar a desindustrialização e a especialização regressiva da pauta exportadora nacional, possuem reflexos sobre as dinâmicas político-econômicas domésticas do Brasil e para a posição do Brasil no Sistema Internacional. Os reflexos centrais a serem considerados são: (1º) seus impactos sobre o poder de diferentes frações da classe burguesa, visto que tais relações dinamitam os poderes de frações da burguesia industrial e potencializam os poderes de frações ligadas ao agronegócio e a setores extrativistas nacionais, inclusive da burguesia financeira (de modo que determinadas frações do agronegócio apresentam melhores posições de demanda/maior poder de barganha na política doméstica, fato que pode se traduzir em novas dificuldades de aplicação de projetos desenvolvimentistas e maiores demandas para liberalizações).

(2º) A desindustrialização afeta os ativos de poder (Hard Power) do Brasil e diminui sua capacidade de inserção internacional; 3º) a crescente influência da China faz com que, paulatinamente, as relações econômicas com o país e com os demais países do BRICS tenham crescente importância sobre a economia brasileira, que em conjunto com as transformações sofridas na correlação de forças em âmbito doméstico, podem levar o país a privilegiar as relações político-econômicas com a China em detrimento das relações com seus tradicionais parceiros comerciais/diplomáticos latino-americanos e africanos (de modo que o Brasil se torna, crescentemente, subordinado às dinâmicas econômicas chinesas e vulnerável aos movimentos da China no Sistema Internacional).

Portanto, nos parece patente a necessidade de aplicar uma política externa que privilegie as relações do Brasil com países do verdadeiro Sul Global, isto é, com países latino-americanos e africanos, e de retomar a integração regional como instrumento de promoção da neoindustrialização. Para tal, é fundamental rever as relações “Sul-Sul” sino-brasileiras, visto que a crescente inserção da China na economia brasileira, na América Latina e na África tem efeitos perversos, diretos e indiretos, sobre as capacidades econômicas, políticas e diplomáticas nacionais e sobre as próprias dinâmicas políticas domésticas presentes no Brasil.

Considerações finais

A literatura especializada reconhece, ou pelo menos pressupõe, que política externa brasileira constitui-se enquanto um instrumento de promoção do desenvolvimento econômico e da autonomia nacional, mesmo que esta seja definida a partir das disputas e correlações de forças existentes entre grupos domésticos.

Durante os dois primeiros governos Lula (2003-2010), a política externa foi caracterizada por uma busca ativa por promover a inserção do Brasil no Sistema Internacional a partir da diversificação de parcerias e do fortalecimento/desenvolvimento de relações com diversos atores internacionais, tanto em nível bilateral quanto em nível multilateral. A busca por fortalecer tais relações se processou de modo a privilegiar as relações com atores do Sul Global. No atual governo Lula, existe uma tentativa de reestruturar a política externa brasileira seguindo-se os mesmos eixos das políticas externas de seus governos anteriores, mas em ambientes doméstico e externo muito diversos. Paralelamente, se observa a tentativa de aplicar um programa de reindustrialização, ou assegurar a “neoindustriazaliação” da economia nacional, que passa por problemas graves como a desindustrialização e a reprimarização de sua pauta exportadora.

Conforme buscamos argumentar, existe uma enorme contradição entre a política externa aplicada e o desenvolvimento buscado pelo governo Lula III, uma vez que no âmbito externo se privilegiam as relações com a China, cujos efeitos sobre a economia nacional são danosos. O fortalecimento das relações econômicas sino-brasileiras tem por efeito intensificar os processos negativos sofridos pela economia nacional, a saber a desindustrialização e a reprimarização da pauta exportadora.

Apesar dos problemas, as relações sino-brasileiras se intensificam, em certa medida, pois se atribui à China o caráter de um país do “Sul Global”, muito embora as relações “Sul-Sul” desenvolvidas entre Brasil e China sejam semelhantes a relações Norte-Sul/ Centro-Periferia e qualitativamente diversas das relações Sul-Sul estabelecidas entre Brasil e países latino-americanos e entre o Brasil e países africanos.

Manifestamos aqui a necessidade de se adotar posturas congruentes com os objetivos de desenvolvimento socioeconômico e de reindustrialização buscados, especialmente via fortalecimento das verdadeiras relações de caráter Sul-Sul, e de maiores cautelas no estabelecimento de relações com a potência asiática. Assim, apontamos elementos para repensarmos a posição da China enquanto “Sul Global” e as relações desiguais sino-brasileiras.

Dito de outra forma: ao contrário de se tornar crescentemente subordinado à China, é fundamental planejarmos e desenvolvermos uma política externa ativa a fim de inserir o Brasil, novamente, em regiões basilares para os planos diplomáticos e econômicos do país, como a América Latina e a África, cujas relações promovem e estimulam importantes setores econômicos nacionais (que definham com a concorrência chinesa) e asseguram condições político-diplomáticas para uma inserção internacional mais potente e sustentável para o Brasil.

*Danilo Augusto da Silva Horta é mestrando em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Referências


DA SILVA, Luiz Inácio Lula; ALCKMIN, Geraldo. Neoindustrialização para o Brasil que queremos. Planalto, 23 de junho de 2023. Disponível em: <https://www.gov.br/planalto/pt-br/vice-presidencia/central-de-conteudo/artigos/neoindustrializacao-para-o-brasil-que-queremos>.

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SUGIMOTO, Thiago Noronha. DIEGUES, Antônio Carlos. A China e a desindustrialização brasileira: um olhar para além da especialização regressiva. Revista Nova Economia, Belo Horizonte, v. 32, n.2, p. 477–504, jun. 2022. Disponível em: <https://revistas.face.ufmg.br/index.php/novaeconomia/article/view/6975>.

Nota


[i] Utilizaremos a expressão “Sul Global” entre aspas para apontar relações com caráter diferente das demais relações Sul-Sul e que se aproximam, para não dizer se assemelham/equiparam, a relações de caráter Norte-Sul/Centro-Periferia


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