Por ANA MARIA DE NIEMEYER*
A Baixada Fluminense é formada de territórios densamente povoados ao lado de canais assoreados, sujos, apesar das contínuas políticas públicas de saneamento
Em junho de 2023, indo de São Paulo para o Rio de Janeiro, atravessei de ônibus trechos da Baixada Fluminense. Eram umas 15 horas; tínhamos pressa, meu filho e eu, para chegarmos ao velório de meu irmão que acabara de falecer. A emoção daquele dia não impediu que eu ficasse atenta ao que via à medida que o ônibus avançava lentamente, devido ao trânsito.
Conhecimentos, da geógrafa que fui um dia, da antropóloga que sou hoje, e vivência de carioca, vieram à minha mente. Precisava com urgência de tudo isto, pois estava em São Paulo estudando o álbum com fotografias de meu pai, o engenheiro Luiz Fernando Berla de Niemeyer (1913-1974), de seu trabalho na Directoria de Saneamento da Baixada Fluminense (1937 a 1939).[i]
Ele era aficionado por fotografia; suas composições focalizavam ações técnicas, ao mesmo tempo não hesitava em registrar a beleza de algumas paisagens; também era pesquisador, pois as fotografias estavam fixadas por cantoneiras no álbum, numeradas em sequência, à medida que os fatos, criados pelas máquinas e pelos agentes responsáveis pelo saneamento, iam se desenrolando.
Anotando com lápis branco nas páginas e, às vezes, com caneta na borda e no verso das fotos, ele foi descrevendo os acontecimentos relacionados ao destocamento e limpeza dos canais e rios da Baixada Fluminense, visando afastar a malária que assolava a região e liberar os terrenos para diferentes usos. Fez, pois, uma crônica visual e gráfica de dentro, isto é, não dirigida a um órgão superior ao qual ele teria que prestar contas. Diferente do relatório oficial redigido por Hidelbrando de Araújo Góes, na ocasião chefe da Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense. Relatório este que teve o efeito simbólico e prático de exaltar os feitos do Governo Vargas.[ii]
Comento dois fatos registrados nas fotografias de Luiz Fernando B. de Niemeyer que vieram à minha mente quando eu avistava trechos da Baixada Fluminense da janela do ônibus. O primeiro diz respeito à sequência de fotos mostrando rios e canais assoreados e, em seguida, desimpedidos após a ação dos agentes principais do trabalho que foram, segundo ele, as máquinas, os engenheiros e os operários.
O segundo remete às anotações que ele fez no verso de algumas fotografias: assim como os engenheiros; os operários estão identificados com nome e sobrenome; ganham, pois, dignidade de sujeitos. E, tão importante quanto, estão inscritos na história, pois no tempo da escravidão na região da Baixada Fluminense, eram os escravos, dos quais muitos entre eles descendiam, que destocavam manualmente os canais e rios.
Estaria agora a Baixada Fluminense menos insalubre, com rios e canais que a atravessassem limpos?
Pois bem, o que vi da janela, confirmaram as denúncias recentes sobre a região: territórios densamente povoados ao lado de canais assoreados, sujos, apesar das contínuas políticas públicas de saneamento. Ao segmento da classe trabalhadora, que mora nos subúrbios da Baixada Fluminense, resta conviver com o crime organizado, com o racismo dos agentes policiais, com a insalubridade dos rios e canais, portanto, com a constante ameaça de doenças; daí o título deste texto, Saneamento para quem?
De volta para São Paulo, retomei o estudo do Álbum de fotografias de Luiz Fernando Berla de Niemeyer em seu trabalho Directoria de Saneamento da Baixada Fluminense (1937 a 1939), com respostas para uma questão que me preocupava: como filha teria competência para estudar o álbum de meu pai com distanciamento?
Parte da história de minha família da qual tomei conhecimento, durante os dias em que fiquei no Rio, ajudaram a encontrar uma das respostas que procurava. Constatei a continuação na minha família, dos valores de meu pai que sempre respeitou os operários, durante as obras onde trabalhou ao longo de sua vida.[iii]
A prisão, seguida de torturas, de meu irmão, Luiz Flávio de Niemeyer (1944-2023), por sua atuação política, sem pegar em armas, durante a ditadura militar no Brasil, trouxe consequências sérias para sua vida.
Ficou evidente que Luiz Fernando Berla de Niemeyer e Luiz Flávio de Niemeyer tentaram ajudar a história do país defendendo as pessoas oprimidas.
As condições calamitosas dos trechos da Baixada Fluminense que observei, aliadas às denúncias da imprensa, de pesquisador@s, e de organizações populares, sobre o descaso das autoridades em relação à situação dramática da população que aí vive, tornaram claras as condições que tenho como antropóloga, especialista no estudo de imagens e grafias, pesquisadora de favelas e do racismo em escolas públicas (Financiamento/ FAPESP), de estudar aquele álbum fotográfico histórico com distanciamento.
*Ana Maria de Niemeyer é professora aposentada do Departamento de Antropologia da Unicamp.
Notas
[i] Catalogação e digitalização do álbum por Gisele Ottoboni: [email protected]
[ii] Acessível em: https://ihgb.org.br/pesquisa/biblioteca/item/8243-relat%C3%B3rio-apresentado-pelo-engenheiro-chefe-da-comiss%C3%A3o-de-saneamento-da-baixada-fluminense-hildebrando-de-araujo-goes.html.
[iii] Conforme este relato do engenheiro que trabalhou no túnel Rebouças/RJ/1965 (governo Carlos Lacerda): “[…] chegaram à obra, o gerente da empresa e o Secretário de Obras, Dr. Marcos Tamoio. Como era uma obra muito política, o Secretário solicitou ao Dr. Niemeyer que passasse a dar dois fogos por dia ao invés de apenas um, pois necessitava que a obra fosse o mais rapidamente possível inaugurada. Sem se alterar, o Dr. Niemeyer respondeu ao secretário ‘que só haveria uma possibilidade disto acontecer e esta maneira era que ele, secretário, tomasse o seu lugar na obra, pois, enquanto ele fosse o engenheiro residente e responsável pela obra, jamais colocaria a vida de seus funcionários em risco, principalmente por causa de política. ’ Todos podem imaginar a repercussão desta resposta. A empresa, mesmo tendo em vista a vasta experiência e a idoneidade do Dr. Niemeyer, teve que tomar uma atitude […] e o convidou para trabalhar em São Paulo, única maneira encontrada para tirá-lo da obra. ” (José Luiz SALGADO, Histórias de um engenheiro peão ou com a mão na massa. Rio de Janeiro. O primeiro ciclo. S/d: p. 74)
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