Silvio Almeida: falta explicar

Imagem: Jonathan Oliveira
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Por CARLOS TAUTZ*

Silvio Almeida acusou a Mee Too de ter agido para influenciar uma licitação do MDH por ter interesse no resultado do certame

Diante das circunstâncias, foi correta, até eventual prova em contrário, a demissão de Silvio Almeida do cargo de Ministro dos Direitos Humanos. No fim, colocados todos os relatos sob o critério das incoerências inaceitáveis, e ainda que o ex-ministro tenha o irrevogável direito à defesa e à presunção de inocência, não havia outra alternativa para um governo que preconiza o feminicídio zero.

Mas, a tardia dispensa não encerra o caso — considerando que outros ministros já conheciam desde 2023 a denúncia feita pela Ministra da Igualdade Racial Anielle Franco. Desde a semana passada, o processo público de demissão faz brotar desconfianças concêntricas, que uma a mídia de escândalos prefere escantear. É necessário investigar as denúncias feitas pelo próprio ex-ministro, de que grupos nacionais e internacionais teriam interesse em sua saída e se esses interesses se manifestaram na sua demissão.

Essas dúvidas exigem do governo Lula presteza, rapidez e intolerância no esclarecimento.

A Ministra Anielle Franco relatou a vários ministros a importunação sexual de Silvio Almeida — crime cometido por uma pessoa que a sociedade espera que combata, entre outros, exatamente este tipo de ilícito. Nenhuma medida pública foi tomada. Ainda que o primeiro escalão priorizasse o enfrentamento dos difíceis momentos pelos quais passava o governo Lula — chantageado por um criminoso impune que lidera a Câmara e por um entreguista de legado histórico que preside um Banco Central subserviente ao Presidente anterior —o, a incontornável gravidade política e a extensão do tema Silvio Almeida já eram claras e urgentes. Por que canais internos ao governo não trataram de um problema que estrutura a relação entre mulheres e homens no Brasil?;

A dificultar a estória, circunstâncias objetivas e imediatas — embora nem tão explícitas — em que se encontrava o Ministério dos Direitos Humanos (MDH), visto pelo governo como central para recuperar a imagem internacional do Brasil pós-Jair Bolsonaro. Uma dessas circunstâncias era a oposição aberta de Sílvio Almeida à privatização de presídios e de instituições sócio-educativas.

A medida consta de um decreto que regulamenta o Programa de Parcerias para Investimentos (PPI). Sílvio Almeida colocou todo o simbolismo de homem negro e intelectual referência no campo dos direitos humanos para contrariar a tese privatista que orienta o próprio Lula e dois importantes signatários do decreto (que ainda está sendo analisado): o vice-presidente Geraldo Alckmin e o Ministro da Fazenda Fernando Haddad. Fernando Haddad é ninguém menos do que a principal ponte do governo com o mercado financeiro e vem sendo preparado pelo PT para suceder Lula.

A jornalista Milly Lacombe, do UOL, registrou em sua coluna que Silvio Almeida contrariava todo o governo neste ponto: “O ministério dos direitos humanos é o único ministério a se opor frontalmente à agenda da privatização dos presídios, que interessa ao setor privado e a uma sociedade que não se envergonha de ser racista. Temos 800 mil pessoas encarceradas, a vasta maioria composta por pessoas negras. A quem interessa o derretimento do único ministério que faz frente à privatização em seu momento decisivo?”.

Sílvio Almeida era abertamente contrário à privatização do sistema carcerário brasileiro, reconhecido pela prioridade institucional em manter pessoas negras atrás das grades. O ex-ministro afirmava que o decreto assinado em 2023 “abre espaço para infiltração do crime organizado”. Quanto mais gente ingressa no sistema penitenciário e lá permanece, mais seriam alimentadas as fileiras criminosas locais e a conta bancária dos grupos internacionais que se aproveitam da privatização. Esse quadro pode ter-se acelerado há dois meses.

Em junho, a Câmara dos Deputados debateu o tal decreto em audiência pública — que, a propósito, descortina outra trama brasiliense. Um dos autores do pedido de audiência foi o deputado Glauber Braga (PSOL/RJ), que é alvo de processo de cassação operado por Arthur Lira (Progressistas/AL), o presidente da Casa favorável ao decreto privatista.

No Brasil, existem algumas dezenas de presídios privados, mas no âmbito dos estados. O decreto da PPI visa a regulamentar a privatização em nível federal. Sílvio Almeida argumentava que todas essas experiências no Brasil e em outros países deram errado e prejudicam principalmente as pessoas negras. Nos EUA, país de maior população carcerária do mundo, essas penitenciárias também são consideradas experiências negativas, que servem apenas para carrear todo ano dezenas de milhares de pessoas não brancas.

Na semana passada, uma organização social chamada Me Too denunciou, até onde se sabe, somente por meio do jornal Metrópoles casos de mulheres que teriam sido assediadas por Silvio Almeida. Foi o estopim que resultou na demissão de Sílvio Almeida. Não há notícia sobre a formalização dessas denúncias em canais oficiais. Silvio Almeida rebateu e acusou a Mee Too de ter agido para influenciar uma licitação do MDH por ter interesse no resultado do certame.

Em sendo verdadeiro, o caso de tentativa de interferência já deveria ter sido registrado por Silvio Almeida em canais internos e, talvez, até na Polícia Federal (PF). Foi? Não foi? Por quê? É verdadeira a denúncia de Sílvio Almeida? Há outros casos?

Em junho a Polícia Federal indiciou o ministro das Comunicações Juscelino Filho por organização criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção passiva. Ele é acusado de destinar emendas parlamentares a obras fraudadas, que beneficiaram sua própria família, quando era deputado federal pelo União Brasil-MA. O Ministro permanece no cargo. Justifica-se o duplo critério aplicado por Lula na necessidade de manter o apoio do União Brasil ao governo no Congresso? Houve racismo na manutenção de um ministro de cor branca já indiciado pela PF em contradição com a demissão de outro ministro de cor negra, que foi denunciado e ainda será investigado?

Assustadas com a contradição radical de Silvio Almeida, exposta sem mesuras, a esquerda brasileira e os movimentos de raça e gênero, responsáveis pela indicação dele ao ministério, tentam tirar lições da tragédia. Ainda precisam, como todo mundo minimamente progressista e sensível, digerir a bala de canhão que recebemos no peito.

*Carlos Tautz é jornalista e doutorando em história na Universidade Federal Fluminense (UFF).


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