Por MARCO MONDAINI
Trecho, selecionado pelo organizador, do livro recém-lançado
O século XXI assinala a entrada do Brasil na “era do encarceramento em massa” e os números oficiais sobre o crescimento exponencial de pessoas presas no país não deixam margem a qualquer espécie de dúvida quanto a isso. No intervalo de duas décadas, a população carcerária nacional saltou de 232.755 (no ano de 2000) para 832.295 (no ano de 2022), ou seja, um crescimento de mais de 350%.
O fato de termos tido à frente do Poder Executivo Federal, nesse intervalo de tempo de quase um quarto de século, governantes das mais diversas colorações político-ideológicas e agremiações partidárias – Fernando Henrique Cardoso (PSDB), no centro; Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dilma Rousseff (PT), no centro-esquerda; Michel Temer (MDB), na direita; Jair Messias Bolsonaro (PL), na extrema direita – parece demonstrar que a “onda punitivista” que se abateu sobre a nação traz em si elementos de determinação que, a fim de serem devidamente compreendidos, necessitam ir além de conjunturas políticas específicas.
O nosso Estado penal neoliberal – que engole, governo após governo, em meio a múltiplas tensões, o Estado democrático de direito saído da Constituição Federal de 1988 – segue uma tendência global originada dos Estados Unidos da América, mas finca suas raízes num terreno profundo e receptivo aos seus ideais e práticas: o terreno das estruturas sociais econômicas de um país que formou o seu capitalismo dependente e periférico a partir da violência do escravismo colonial e de uma modalidade de desenvolvimento desigual.[i]
Circunscrevendo-se, no entanto, à conjuntura vivida no primeiro quartel do século XXI, o que se constata é que a gigantesca inflação carcerária brasileira é fruto de uma realidade resultante do perverso encontro entre a política proibicionista de “guerra às drogas” e a detenção permanente de presos sem condenação definitiva – o que acaba fazendo com que a prisão provisória deixe de ser um recurso excepcional, passando a se constituir mais enquanto uma regra.
Tornado um fenômeno massivo, o encarceramento não apenas agrava as condições desumanas do sistema prisional, em função da superlotação, como também contribui sobremaneira para a naturalização do fato de que a prisão é um espaço de imposição do sofrimento a indivíduos e grupos de indivíduos selecionados pelo Estado, pois que: “Sofrimento e danos são inerentes a qualquer prisão. A produção da dor é inseparável da atuação do poder do Estado de punir. A própria ideia de pena é a ideia de sofrimento. O poder dado ao Estado de punir é, em última análise, o poder de infligir sofrimento” (KARAM, 2020, p. 35).
Assim, a hiperinflação carcerária imposta pelo Estado penal neoliberal potencializa aquilo que caracteriza a prisão desde a sua gênese histórica, em virtude do fato de que: “Além de produzir sofrimento e violência, o poder do Estado de punir promove estigmatização, marginalização, desigualdade e discriminações, tendo como alvo primordial grupos já em desvantagem social” (Ibid., p. 37).
Dessa forma, defendida como um dos instrumentos mais importantes para o combate à criminalidade que estaria assolando o país desde a sua redemocratização nos anos 1980, as prisões brasileiras tornaram-se um ingrediente – poderoso, diga-se de passagem – a mais na construção de uma sociedade que vive o medo de viver sob a democracia, tendo optado pelo “desejo de vida segura em espaços isolados, segregados da desordem social e diferenciados em relação aos perigos de contágio com os desiguais” (LAMIN, p.164).
Na condição de limite extremo de afastamento dos “perigos de contágio com os desiguais”, as superlotadas prisões brasileiras da “era do encarceramento em massa” representam não apenas um problema a ser solucionado no campo do direito penal, mas, também e principalmente, uma questão a ser enfrentada, por intermédio da sua retração, para que a democracia brasileira sobreviva e seja democratizada com a integração dos/das que padecem, dentro e fora das suas grades, devido à cor da sua pele e à sua classe social.
*Marco Mondaini, historiador, é professor titular do Departamento de Serviço Social da UFPE e apresentador do programa Trilhas da Democracia.
Considerações finais do capítulo 1, intitulado “O novo fim da prisão”.
Referência
Marco Mondaini (org). Sistema prisional: o labirinto da punição. São Paulo, Alameda, 2024, 298 págs. [https://amzn.to/44fLudj]
Bibliografia
KARAM, Maria Lucia. “Abolir as prisões: por um mundo sem grades” in LAMIN, Cristiane. “Medo, violência e insegurança” in LIMA, Renato Sérgio de & PAULA, Liana de (orgs.). Segurança pública e violência. O Estado está cumprindo o seu papel? São Paulo: Contexto, 2021, p. 151-171.
PIRES, Guilherme Moreira (org.). Abolicionismos. Vozes antipunitivistas no Brasil e contribuições libertárias. Florianópolis: Habitus, 2020, p. 33-40.
Nota
[1] Ver, a respeito: MONDAINI, Marco. “‘Equilíbrio de antagonismos’ versus ‘desenvolvimento desigual’: o lugar do Nordeste na formação social brasileira” in MOTA, Ana Elizabete; VIEIRA, Ana Cristina; AMARAL, Angela (orgs.). Serviço Social no Nordeste. Das origens à renovação. São Paulo: Cortez, 2021, p. 48-60.
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