Por LUIZ MARCOS DA SILVA FILHO*
Comentário sobre o espetáculo coreografado por Alejandro Ahmed
O que está acontecendo no Balé da Cidade de São Paulo?
Para logo responder: um caosmo sublime! Com os espetáculos Sixty-Eight em Axys-Atlas, do coreógrafo Alejandro Ahmed e elenco, e Variação, de Davi Pontes e elenco (cujas últimas apresentações foram infelizmente em 27/10/23), o Balé da Cidade de São Paulo levou o público a uma convulsão subjetiva com a explosão criativa de imanências entre corpos-espaços-tempos. Foi impossível não sair dos espetáculos perplexo, transformado, atordoado e com a evidência renovada de que “o fato é que ninguém determinou, até hoje, o que pode um corpo” (Spinoza).
Ambos os espetáculos foram experimentações (diga-se, exitosas!) de desinternação do corpo, de criação de corpos pós-humanos e até inumanos, motivo por que foram espetáculos difíceis de serem apreciados sem notáveis resistências por parte do público, no qual vimos pessoas se ausentando da plateia e até mesmo fechando ou desviando o olhar, sobretudo dos corpos desnudados em explosão criativa, embora ao fim e ao cabo a maior parte do público tenha ovacionado intensa, longa e entusiasmadamente de pé ambos os espetáculos.
Limitando-me a comentar Sixty-Eight em Axys-Atlas” (pois Variação merece com louvor simétrico uma crítica à parte), assistir ao espetáculo foi uma experiência de presenciar e participar de uma explosão de singularidades caósmicas. Entre as potências e virtualidades de Sixty-Eight em Axys-Atlas, encontra-se o acionamento de uma destituição subjetiva, pois o que é colocado em questão por muitas vias de pura expressividade corporal é a nossa imagem ocidental de corpo… internado e supliciado.
Assim, o que se passa em Sixty-Eight em Axys-Atlas é a livre-criação não exatamente de um cosmo (em função de kósmos em grego e na tradição astronômica da Antiguidade à Modernidade estar intimamente associado às noções de beleza, ordem, harmonia e razão) e sim de um caosmo (com afinidades eletivas com a concepção deleuze-guattariana e proposta por Viveiros de Castro como imagem do pensamento intensivo ameríndio em Metafísicas canibais), livre de formas, esquemas ou estruturas a priori, anteriormente condicionantes das expressividades corporais, do tempo, do espaço e do processo cênico, que precisamente em função dessa abertura criativa é não um processo e sim um Acontecimento.
Sem anterioridade condicionante de uma coreografia fechada ou determinada, Sixty-Eight em Axys-Atlas é uma coreografia aberta (chamada de “coreografia indeterminada” por Alejandro Ahmed), uma performance de empirismo transcendental, com a criação em ato de uma imanência intensivamente dinâmica de corpos-espaços-tempos, como uma caosmogonia, aversa à paisagem estelar harmonicamente estruturada como uma totalidade unificadora e totalizada.
Seria possível, porém, objetar que há sim uma coreografia a priori orientadora das performances dos bailarinos, pois o espetáculo possui alguns movimentos internos como, por exemplo, um primeiro movimento em que os bailarinos com expressividades corporais menos técnicas, mas não menos sublimes, estão com figurinos pretos e máscaras que os transformam em seres de outra dimensão; outro movimento em que estão nus com realização de performances aberrantes e tecnicamente de altíssimo nível, nas quais dificilmente reconhecemos corpos humanos, a despeito da nudez artisticamente transformada e infinitamente distante de qualquer vulgaridade; outro movimento neoclássico em que bailarinos-caosmos sem rostos (ou com semblantes astrais) fazem piruetas e deslocamentos surreais de ponta; outro movimento em que bailarinos-caosmos fazem revoluções astrais em diversas e contrários direções com esferas prateadas na extremidade de uma corda em extensão de seus corpos-híbridos; finalmente um movimento em que bailarinos-caosmos se transfiguram nas explosões caóticas de luz e de som do metrônomo “tempo-silêncio”, numa dimensão em que todos (bailarinos e público) dificilmente não alcançaram um estado alterado de consciência ou um transe.
Tudo isso e muito mais acontece com uma iluminação estelar que explora espetacularmente luz e escuridão, também decorrente de um metrônomo de luz gigante e suspenso ao fundo, cujo nome “tempo-silêncio” descobrimos ao ler a programação e cuja criação é de Diego de los Campos. Cenicamente, há no palco 12 plataformas a serem ocupadas variadamente por 12 bailarinos, que em número de 3 saem das plataformas e a elas retornam conforme as formulações decorrentes de 4 compassos do metrônomo de luz, que, por sua vez, correspondem cada um a um grupo de 3 plataformas enumeradas.
Além disso, há 8 naipes de movimentos que os bailarinos executam em evolução e em sincronia com os espaços de tempo em que os músicos podem executar livremente as 15 notas da trilha sonora de Jonh Cage, pois em sua peça Sixty-Eight, cada um dos 68 músicos tem diante de si uma partitura aberta com 15 notas a serem livremente executadas por cada instrumentista num tempo somente sugerido por um sistema híbrido compositor-software chamado “time-bracket”. Não à toa, o espetáculo recebeu título quase homônimo e assimilou esse pós-estruturalismo de esvaziamento do lugar do compositor, do regente e do coreógrafo.
Todavia, esses e outros movimentos sublimes de proliferação de Acontecimentos de Sixty-Eight em Axys-Atlas não condicionam a priori a livre expressividade singular de cada bailarino-caosmo. Essa abertura criativa decorre do fato de que cada bailarino-caosmo está emancipado de um esquema coreográfico totalizante e unificador, assim como cada músico da orquestra que executa Sixty-Eight, trilha sonora do espetáculo do Balé da Cidade em setembro de 2022 e uma das trilhas sonoras do espetáculo em outubro de 2022, que passou a ter também trilha composta por O Grivo – Grupo Musical Experimental, de Belo Horizonte-MG, o que é um dado notável de que mesmo na dimensão de sua trilha sonora o espetáculo guardou uma auto-diferenciação.
Por consequência, cada apresentação de Sixty-Eight em Axys-Atlas foi um Acontecimento, cada espetáculo aconteceu em variação diferenciante em relação aos outros espetáculos, com a proliferação de uma multiplicidade de caosmos outros. Sixty-Eight em Axys-Atlas criou mundos outros, caosmos paralelos, heterogeneidades caósmicas de corpos-espaços-tempos pós-humanos e inumanos nunca vistos em nosso cosmo humano de corpos internados e supliciados.
De fato, na variação criativa e singular de cada bailarino-caosmo não se reconhece corpos humanos e sim astros, animais, répteis, insetos, fungos, vegetais, minerais, vulcões, cometas, performances interespecíficas, intergenéricas, intergalácticas, interdimensionais, com a consequência de devolver sem pedir licença para o público imagens antinarcísicas de nós mesmos em que não nos reconhecemos, imagens a tal ponto tão estranhas e infamiliares que suscitam toda ordem de resistências, afeições e emoções.
Sobre o tempo, os exatos 30min da trilha sonora Sixty-Eight são cronometrados por dois grandes cronômetros dispostos diagonalmente nas duas laterais da frente do palco, assim como pelos 4 compassos diferentes do metrônomo de luz “tempo-silêncio” e pelos espaços de tempo da trilha de John Cage, o que inevitavelmente constitui uma heterogeneidade de temporalidades, todas imanentes em todas. Aliás, ao término da trilha sonora de Cage e com bailarinos só aparentemente em repouso em suas plataformas de decolagens e regressos caósmicos, o “sublime arrolamento de contrários enlaçados por fim” é a transfiguração dos bailarinos em explosões de luzes-sons acelerados no metrônomo “tempo-silêncio”, com que espetáculo termina.
Assim, o público lê, ouve e vê movimentos de cada milésimo de segundo, mas a mágica é que cada bailarino cria e se transfigura em ainda outras temporalidades, de forma que os 30min são transformados em temporalidades e até mesmo em perpetuidades (perpétuas repetições da diferença em diferenciação) imanentes umas nas outras.
É preciso também dizer algo sobre a expressão “Axys-Atlas”, seria um lugar sideral? O nome de outro planeta? De outra dimensão? De um buraco negro? Do paraíso? Do inferno? Talvez tudo isso e mais, porque “Axys-Atlas” parece ser um lugar sem onde, melhor dizendo, um lugar plural, lugares sem onde, caosmos de outras dimensões, a pluralidade e a variação como lugares, heterogeneidade de corpos-espaços-tempo, lugares não de pluralidades em variação, mas a variação de pluralidades como lugares sem onde.
“Axys” e “Atlas” são também os nomes das duas últimas vértebras de nossa coluna vertebral, na base de nossa cervical e responsáveis pela base do crânio. Ambas constituem o sistema atlas-axial, responsáveis por movimentos de nossa cabeça. De fato, do início ao fim, bailarinos-caosmos fazem movimentos aberrantes repetidos com a cabeça para cima e para baixo emitindo o som hipnótico de um chocalho xamânico.
“Atlas” ou “Atlante” é ainda o nome de um dos titãs, quer dizer, Atlas é uma das potências do caos e da desordem que assediou o panteão grego com o propósito de destronar Zeus e abalar a ordem e harmonia do Kósmos. Ou seja, o combate de gigantes entre Zeus e titãs é a gigantomachía entre Cosmos e Caosmos. O triunfo de Zeus e seus aliados foi consagrado com a condenação de Atlas a sustentar perpetuamente em sua cervical e ombros os céus, embora Atlas seja interpretado também como uma das colunas de sustentação do mundo.
Portanto, com certa licença podemos dizer que o que se passa em Sixty-Eight em Axys-Atlas é o Acontecimento de Maio de 68 no panteão grego, uma espécie de contramitologia em que titãs triunfam sobre a ordem, desconcertam mundos e céus e criam caosmos. Os movimentos aberrantemente repetitivos e acionadores do chocalho xamânico bem podem ser a rebelião de Atlas contra as colunas de sustentação dos céus e dos mundos, movimentos repetitivos que fraturam as colunas e criam aberturas, fendas e cisões criativas na realidade ordenadamente cósmica. Eis que titãs se transfiguram em corpos desinternados, desnudados de suas armaduras, transindividuais, livres para criar singular e coletivamente novos mundos.
Nesse Acontecimento de desnudamento e atentado aos “bons” costumes de internação do corpo, parte do público ficou chocado e se retirou do espetáculo. O que infelizmente o choque moral talvez não tenha captado de imediato foi que nesse contexto o desnudamento de bailarinos era a expressão não de nus humanos e sim de corpos pós-humanos e até inumanos. No Acontecimento de desnudamento, é preciso dar destaque para o fato de que cada bailarino transfigurou seu corpo em pura arte, cada bailarino bravamente foi capaz de uma entrega total de sua carne à arte, ao público, à criação, à vida. Por tanto, Bravo para Ana Beatriz Nunes, Antonio Carvalho Jr., Ariany Dâmaso, Bruno Rodrigues, Camila Ribeiro, Carolina Martinelli, Fabiana Ikehara, Fernanda Bueno, Isabela Maylart, Jéssica Fadul, Leonardo Muniz, Luiz Crepaldi, Manuel Gomes, Marcel Anselmé, Marcio Filho, Marina Giunti, Marisa Bucoff, Victoria Oggiam e Yasser Díaz!!
Uma crítica à Sixty-Eight em Axys-Atlas intitulada “As regras do jogo”, embora elogiosa, observa com contundência que o público em geral não foi preparado para o “jogo em cena” e que “o Balé da Cidade não deu à plateia o livro de regras desse jogo”, de forma que “não é possível nem saber se a partida que assistimos em cena é boa partida desse jogo”. Isso é verdade em parte, pois de fato fez falta enorme ao público não ter recebido a programação impressa (disponível só on-line), de fato a leitura da programação ilumina muitíssimo a grandiosidade de “Sixty-Eight em Axys-Atlas”.
Além disso, há um podcast do coreógrafo Alejandro Ahmed no canal do Thaetro Municipal em um streaming de música, que deveria ter sido mais ostensivamente divulgado ao público. Seja como for, o fato é que mesmo sem essa preparação pedagógica o público foi profundamente impactado pelo espetáculo. Definitivamente, foi impossível não ter sido atravessado, tocado e transformado por Sixty-Eight em Axys-Atlas, mas o impacto certamente teria sido qualitativamente superior se o público tivesse em mãos a programação, aliás, densa e muito instrutiva.
Por fim, peço licença para especular que Sixty-Eight em Axys-Atlas foi um manifesto de Alejandro Ahmed ao público brasileiro e ao mundo, como uma maneira de dizer a que veio como diretor artístico do Balé da Cidade de São Paulo. Se este for o caso, ainda que Sixty-Eight em Axys-Atlas guarde valor artístico absoluto, o espetáculo é também um anúncio do que o público pode esperar no porvir e com qual disposição deverá aguardar, uma espécie de antecipação de que o Balé da Cidade, simetricamente à sua potência de entrega total de suas subjetividades corporais à arte e ao público, solicita generosamente do público disposição para experiências de destituição subjetiva e transformação de todas suas pré-concepções do que seja o contemporâneo, a dança e a arte.
*Luiz Marcos da Silva Filho é professor de filosofia da PUC-SP e na Faculdade São Bento.
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