Por Pablo Pamplona*
“Ela entrou na minha casa! A doença entrou na minha casa!”, grita um homem para o nada.
Esse homem perdeu seu irmão. “Ele tinha quarenta anos! Sem doença nenhuma! Eu enterrei ele.” Seu desespero se justifica, porque ele viu a morte. Grita uma voz rouca e gesticula como um excêntrico porque conheceu a verdade — e a verdade o libertou das convenções da civilidade. Esse homem é um desses pequenos profetas que vêm, deixam sua mensagem e logo desaparecem. Profetas não são profetas apenas pela mensagem, mas também pela sua presença e espírito; e também neste aqui o seu corpo, a sua expressão, é uma pequena amostra de como o luto coletivo pode se expressar no futuro breve.
Muito breve.
Mas quem, hoje, quer saber de profetas? No vídeo, ninguém parece se sentir afetado. Cruzam os braços, dão de ombros, permanecem na fila enquanto assistem ao espetáculo. Afinal, o que mais haveria de ser feito? Sabe-se lá há quanto tempo esperam que abra essa casa lotérica. Voltar pra casa agora, depois de esperar, pra retornar amanhã e cumprir as obrigações? A casa lotérica pode abrir a qualquer instante, daí pagam as contas e quem sabe jogam na Mega Sena e quem sabe voltam às suas casas.
Quem tem tempo para mais um profeta?
Ninguém se importa.
Fala alto demais.
Dá dor de cabeça.
Atrapalha o trânsito.
Prejudica a economia.
Melhor abafar sua vozcom o som mecânico das buzinas.
Mas, além de profeta, esse é um homem que viu a doença entrar na sua casa para matar seu irmão. E paira com isso uma sensação de que não há, nunca, nem mesmo no tempo vazio da espera na fila da casa lotérica, que não há tempo de sobra para se perder com o luto alheio; e essa sensação também não gera espanto.
Talvez por ser tão cotidiana? Como na experiência dos personagens de Kafka, “vagamos de limiar em limiar, de corredor em corredor, de sala de espera em sala de espera, sem nunca chegarmos ao destino almejado, que corre o risco de ser esquecido” — isto, se tivermos a sorte de almejar um destino.
Nesse texto¹, Jeanne Marie Gagnebin comenta uma história do Kafka sobre o caçador Graco, um morto que “não consegue mais atravessar o último limiar: aquele que os barcos sagrados devem cruzar para chegar ao Reino dos Mortos”. Graco foi condenado à eternidade como um morto-vivo. No conto, entre uma navegação e outra, ele para numa cidade. É recebido pelo prefeito, que não prolonga as conversas e logo lhe pergunta: “Extraordinário, extraordinário. E cogita permanecer conosco em Riva?” Graco é recebido cortesmente, mas sua presença gera incômodo e ele sabe disso. Comenta Gagnebin:
“Seu estado de morto-vivo configura um enfrentamento entre a vida e a morte: um embate enviesado, sem nenhuma tragicidade, sem grandeza, que não comove nem toca ninguém, que somente atrapalha a ordem administrativa vigente.”
Como os doentes, os moribundos, os loucos, os velhos, os enlutados ou, enfim, qualquer pessoa que, sem seguir as etiquetas do bom funcionamento da sociedade moderna capitalista, se importe.
O senhor desse vídeo, o profeta, o enlutado, atrapalha. Suas palavras só ecoam nas redes sociais, espaço apropriado e reservado à difusão, ao depósito e ao acúmulo de narrativas. Se alguém grava e envia o seu discurso para o whatsapp de cada pessoa que está na fila, quantas não se sentiriam impelidas a encaminhar o áudio para os seus contatos? Mas vê-lo assim, com o seu corpo, como este ser-presente que ocupa a rua e espreita — a sua presença demanda algo em retorno, demanda uma postura pró-ativa.
Roosevelt Cassola² observa num texto de 1991:
“Nossos mortos morrem sozinhos em hospitais, cercados de aparelhos e tubos e longe dos familiares. Estes, por sua vez, ‘torcem’ para que a morte ocorra rápido e tentam retomar logo suas atividades normais, como se nada tivesse ocorrido. Os amigos e conhecidos ficam sem graça, não sabem o que fazer ou dizer, e ir a um velório ou a uma visita de pêsames transforma-se numa obrigação desagradável. Falar em morte ou no morto parece ser falta de educação, e as reações hipomaníacas são comuns, não se sabendo às vezes se estamos velando um ser querido ou frequentando um festival de piadas. Tudo isso tem relação com a negação da morte, com a quase impossibilidade, pelo menos em nossa cultura ocidental, de pensá-la como parte da vida. Os americanos chegaram à sofisticação de ter empresas que fazem o morto ‘desaparecer’ com o mínimo de inconvenientes para os sobreviventes, teatralizando o fato de uma forma grosseiramente artificial, mas que permite aos parentes um reforço da negação, com a impressão de terem cumprido o seu ‘dever’. Não ficaria surpreso se aparecerem por aqui franquias dessas empresas, em pouco tempo, quem sabe ao lado de um McDonald’s…
É essa mesma negação que faz com que fiquemos indiferentes a torturas, esquadrões da morte e ao verdadeiro morticínio provocado pelas condições de vida de nossas populações do Terceiro Mundo. Estou me referindo não somente à morte física, mas também à morte da dignidade humana, em que milhões de pessoas apenas sobrevivem, em condições miseráveis que têm mais que ver com morte que com vida.”
A mesma impotência para escutar e falar com o Outro — que está em sofrimento — se manifesta na incapacidade de escuta e fala que exige o verdadeiro exercício democrático. Escuta e fala não sustentam apenas as relações afetivas, mas também as relações políticas.
Essa mesma falta de uma postura pró-ativa, esse mesmo negacionismo, essa mesma imobilização diante do “estorvo”, caracteriza a servidão voluntária, a inação e a apatia do povo diante dos absurdos produzidos pela tirania.
Nada disso deveria ser normal.
*Pablo Pamplona é doutorando em Psicologia Social na USP.
Notas
¹ “Limiar: entre a vida e a morte”. In Jeanne-Marie Gagnebin Limiar, aura, rememoração: Ensaios sobre Walter Benjamin. Editora 34, 2014.
² “Como lidamos com o morrer” In: Da morte: Estudos brasileiros. Papirus, 1991.