Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Comentário sobre a obra do crítico e historiador da música popular brasileira José Ramos Tinhorão.
Desde seus primeiros livros nos anos 1960, José Ramos Tinhorão conquistou um lugar ao sol nos estudos sobre nossa música popular: lugar marcado pela polêmica, pelas posições extremadas, pela virulência das formulações. Abominava a bossa nova, por exemplo, e escreveu um livro inteiro para denunciar a “farsa” de sua penetração no exterior – quando, graças à deturpação dos ouvidos pela americanização, dizia, só no Brasil encontrava adeptos. Entretanto, pouco a pouco conquistaria seus louros, ou seja, o respeito por sua dedicação à pesquisa, alçando-o a um patamar em que se tornaria imbatível.
Tendo percorrido, sempre à cata de documentação, a era do rádio, a do gramofone, a do teatro, a do cinema, o tema da mulher, os negros em Portugal e no Brasil, os índios, as origens lusitanas da canção urbana, o fado, a modinha, instrumentos e instrumentistas, o folhetim, em laudos que se estenderam por mais de vinte livros, lançou-se a novas aventuras. No lapso de dois anos, brindou-nos com nada menos que cinco volumes, dos quais quatro novos e uma reedição, fruto de suas incansáveis investigações.
Liderando os novos, A imprensa carnavalesca no Brasil – Um panorama da linguagem cômica (Hedra) resenha na primeira parte estudos de outros autores, especialmente de Bakhtin, sobre o chiste, seja oral, seja escrito. A segunda parte se concentra nos periódicos, dando destaque aos pufes, ou piadas em versos típicos desse veículo. Foi Eneida de Moraes, no monumental História do carnaval carioca (1958), quem descobriu a mina dos jornais consagrados ao carnaval, que pesquisou extensamente, transcrevendo os até então desconhecidos pufes.
O volume traz uma terceira parte, contendo a recensão de mais de duzentos jornais (1830-1959), com bons rendimentos. Uma pena que o autor não siga a praxe de consignar os arquivos onde os encontrou, o que faz apenas esporadicamente. Como alguns só são mencionados através de citações em outras publicações, o leitor fica sem saber a que se ater. Tinhorão acaba propondo a imprensa carnavalesca como “originalidade brasileira” – e, de passagem, seu presente trabalho também –, ou seja, algo que nunca houve em outros países. Nem em Veneza, Nice, Munique e Nova Orleans, capitais mundiais do carnaval?
Bem diferente é As festas no Brasil colonial (Editora 34), para o qual o autor vai sondar a correspondência jesuítica, os cronistas e viajantes, os processos da Inquisição, a poesia de Gregório de Matos que alicerça larga porção do livro, as relações de festas, as ordens régias, as Cartas chilenas, os folhetos de cordel. Passando das folias devotas aos folguedos medievais, como a cavalhada e as procissões teatralizadas, e dali para o triunfo barroco das efemérides dinásticas, mostra como tudo isso seria canalizado nas festividades populares de rua que desembocariam no entrudo e no carnaval, vencendo o controle oficial da Igreja e do Estado, segundo Tinhorão. Mas a música de três séculos, conforme o autor lamenta com pertinência, se perdeu, sobrevivendo apenas a religiosa e erudita, anotada em partituras. E o som de todas essas festas nunca pôde ser reconstituído.
Como é usual nos trabalhos do pesquisador, desalojar o objeto de seu contexto oferece benesses inesperadas. É assim que uma leitura da carta de Caminha detecta brincadeiras em dois trechos, que mostram primeiro os índios em ciranda e depois marujos entrando na roda com gaita e tamboril, agregando sons forasteiros e ensinando novos passos aos nativos. Além do mais, é um momento simbólico, ilustrando o processo de fusão ou hibridismo que marcaria nossas criações nesse setor.
Projeto de fôlego se desenrola nos três volumes de A música popular no romance brasileiro (Editora 34). Informando na apresentação que leu cinco mil obras, tendo procurado primeiras edições e raridades, o autor declara não se ter preocupado com a qualidade estética dos textos. Há uma conclusão de base, que parece nortear o trabalho: a de que os escritores, por pertencerem à classe média, teriam da música e da cultura popular uma visão degradante, de estrangeiros, estereotipada pela busca do exotismo. Agravaria o quadro a herança literária burguesa advinda do Romantismo, camuflando os conflitos do capital sob a aparência de questões de amor.
O primeiro volume começa tratando do Peregrino da América e dos anátemas com que fulmina as diversões da plebe. Depois das doze páginas consagradas ao século XVIII, o século seguinte vai ocupar as mais de duzentos restantes. Voltando no início para os românticos, com os quais não revela afinidade, o autor passará depois ao realismo, que, naturalmente, recebe sua aprovação. Examina em separado autores de relevo, adicionando coletivamente a ficção histórica, a de costumes e a naturalista.
Começa por Teixeira e Sousa e as intrigas rocambolescas de O filho do pescador (1843), que considera péssimo e moralista, além de não aprofundar as contradições. Em compensação, é ótimo ao retratar um sarau doméstico no qual se canta modinha, marcando ainda a novidade do baile em casa de família. Outro livro do mesmo autor, fraco artista mas bom observador, assinalaria o advento das serenatas e sua função na vida social da cidade.
Em Joaquim Manuel de Macedo, fornecedor de letras de baladas e outras peças impressas nos cancioneiros coevos, descobriria o cronista por excelência dos passatempos fluminenses, especialmente os musicais, que vão das danças de salão como a valsa e a quadrilha às tertúlias de vários tipos.
Com as Memórias de um sargento de milícias encanta-se – como todo mundo, aliás –, devido à recriação vivaz dos ambientes plebeus no tempo do rei e as valiosas descrições de festas de família, cantorias, desafios, fados (à brasileira, não à portuguesa), farranchos improvisados.
Chega a Alencar e Machado, os quais, ao contrário dos anteriores, voltariam as costas às camadas menos favorecidas, retratando os salões burgueses e sua música importada da Europa. Consoante Tinhorão, Alencar não serve para documento da cultura popular nem de sua música. Mas tampouco para mais nada, pois representa o velho latifundiário escravista que se ergue contra as camadas da burguesia mais moderna que ia surgindo nas cidades. O pesquisador não o perdoa, embora registre suas críticas à novidade da imoderação na ganância e no culto ao enriquecimento, esquisitices até amáveis indo na conta da antipatia que o Romantismo votava ao capitalismo industrial…
Quanto a Luis Guimarães Júnior, o ineditismo da triangulação traz resultados reveladores. Apenas um exemplo: a célebre cena da valsa em Senhora, de Alencar, é cinco anos posterior à que fora armada burlescamente em A família Agulha, que constitui uma espécie de paródia prévia sem falhar um pormenor – o par enlaçado, a folhagem pela qual passa, a vertigem da dama, a metáfora da cópula vicária no andamento dos giros que vão num crescendo, até o delíquio.
Considera Machado um grande escritor, com a habilidade, graças ao cultivo do viés psicológico, de eximir-se de tomar partido no que narra. Mas destaca que também fugiu a um compromisso democrático. Toda a obra romanesca de Machado de Assis, embora nesta a coleta seja pífia, recebe o mesmo número de páginas que A família Agulha. Justificado por restringir-se ao romance, desperdiça as mais ricas anotações do escritor sobre o tema, que se encontram nos contos, onde há alguns achados. “Um homem célebre” põe em cena um infeliz compositor de polcas que toda a cidade cantava, quando o que ambicionava era compor peças para concerto. “O machete” – recuperado por John Gledson em antologia – gira em torno do prestígio desse instrumento, capaz até de desmanchar matrimônios, nos ambientes mais modestos. O protagonista de “Terpsícore”, marceneiro, casa-se com uma mulher que se regala com um saracoteio – ele a conheceu na cadência da polca – e, ao ganhar na loteria, oferece um pagode, com boas descrições desses lances. Aficionado de música clássica como se sabe, o escritor não fechava os olhos e os ouvidos ao que se passava em outros setores.
Somando-se o restante desse e mais os dois outros volumes, resulta uma organização menos precisa, com critérios flutuantes. Um capítulo sobre ficção histórica e de costumes revela fontes preciosas para diferentes instâncias sociais, algumas contendo cenas da escravidão, caprichando na encenação pejorativa dos batuques. Outro sobre os naturalistas, além de Raul Pompeia, que menciona mas não comenta, perscruta bons filões num florilégio de autores menores, de cambulhada num extenso capítulo único. E o prisma regional vai predominar no segundo volume, o qual, afora capítulos separados para Lima Barreto e para certos agrupamentos – os “romances de escândalo dos anos 1920”, os da “era da jazz band”, os do “país do carnaval” –, divide os livros em baianos, pernambucanos, gaúchos, mineiros, paulistas, cariocas etc.
Avançando no tempo, a primeira parte do terceiro volume traça panoramas da prosa a partir de meados do século XX conforme três localizações: novamente a paulista mas agora mais próxima de nós no tempo; a que tem por cenário o Rio (conforme os autores sejam cariocas mesmo ou migrados de outras plagas); e a de José Condé, cujo palco é Caruaru. Uma segunda parte submete a escrutínio a música popular quando, mais entranhada na ficção, se torna personagem e som, surgindo como fragmentos de partitura incrustados no texto, como título ou como incorporação dos figurantes e ambientes típicos. A colheita afinal é farta e, sem este trabalho tão necessário, que dilata consideravelmente o campo da especialidade, seria difícil aquilatar quanta coisa existe sobre o assunto em nossa ficção.
Da leitura desses livros, afora tantas riquezas, fica a impressão de que padecem do fundamentalismo de nação e povo, que já marcava a produção anterior do autor. Afora isso, temos que contar com dois refrães. O primeiro é a reivindicação de primazia ou originalidade. O segundo é a denúncia da ignorância da crítica, sabendo-se que por “crítica” o autor se refere, com raras exceções, a manuais. Há vários livros que preenchem as lacunas que acusa, como por exemplo sobre Macedo e sobre folhetim, analisados na Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, para só citar um. E Flora Süssekind gabou A família Agulha no alentado estudo que apresenta a reedição de 1987.
Quanto ao aspecto propriamente literário, constata-se de novo o truísmo de que a pior literatura, por ficar imune à transfiguração estética – como é o caso da maioria das obras detidamente analisadas por Tinhorão, e com proveito para seu tema – é a que fornece o melhor documento.
*Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Desconversa (editora UFRJ).
Publicado originalmente no livro Sombras & Sons