Por TADEU VALADARES*
A ascensão da China e o retorno da Rússia ao status de grande potência bloquearam o máximo objetivo imperial, imperialista e ocidental
“Assim expira o mundo \ Não com uma explosão, \ Mas como um suspiro”
(T S Eliot).
“Também o céu às vezes desmorona \ E as estrelas caem sobre a Terra \ Esmagando-a com todos nós \ Isso pode ser amanhã”
(Bertolt Brecht).
“Minha gente não crê na boa fé do \ vencedor”
(René Char).
Minha intenção é apresentar uma perspectiva da transição de hegemonia dos Estados Unidos para a China a partir de uma percepção que em parte é realista, em parte é distanciada, em parte desencantada. O utopismo, se comparece, não consigo vê-lo.
Perspectiva própria de alguém que não vive a universidade como espaço profissional, de alguém que não é jornalista especializado em questões internacionais nem cientista social. Visão de alguém que, hoje, é no máximo apenas leitor atento. Perspectiva de alguém que não milita em qualquer partido, institucionalizado ou não. Portanto, visão apenas de um. Visão de um embaixador aposentado desde 2014. De alguém que, no jargão do Itamaraty, serviu a instituição por quase meio século.
Essas indicações sumárias são suficientes para iluminar minhas limitações. Mas, por outro lado, também servem para afirmar que esta fala é decorrência de vivências profissionais e de uma formação acadêmica um tanto variada. O que lhes trago é esquemático: mera panorâmica do nosso momento geopolítico longo, haja paradoxo nessa expressão.
Conversarei com vocês tendo em conta o que vivemos desde que as esperanças do Ocidente concentrado no Atlântico Norte, Ocidente há tanto hegemonizado pelos Estados Unidos, se centraram em assegurar que este século viesse a ser ainda mais americano do que o anterior.
Essa ‘húbris’, tão bem formulada por Francis Fukuyama num registro liberal-hegeliano, derivou da dissolução da União Soviética e do desaparecimento do campo socialista burocrático-estalinista. Ambição desmedida que faz parte do irremediavelmente fracassado.
De fato, a ascensão da China e o retorno da Rússia ao status de grande potência bloquearam o máximo objetivo imperial, imperialista e ocidental. Deslocaram-no para o território da manifesta impossibilidade. Daí porque muitos analistas sublinhem: estamos testemunhando o fim do império americano. Mas outros, e eles também são muitos, preferem falar em transição de hegemonia.
Ancorados em paradigmas demarcadores do que em boa parte se produz a partir de teorias das relações internacionais sofisticadamente conservadoras ou discretamente favoráveis a pequenas correções de rota, outros, muitos outros analistas, estão seguros de que não há indícios inquestionáveis do declínio estadunidense. No máximo, para eles, Washington estaria se deparando com dificuldades operacionalmente superáveis em prazo não muito estendido.
Para mim, saber se estamos vivendo o fim do império americano ou se estamos imersos no tempo longo das transições de hegemonia não é o mais relevante.
Na minha maneira de pensar, estabelecer diferenças de toda ordem entre ‘fim do império americano’ e ‘transição de hegemonia’ pode ser até mesmo crucial, inclusive porque conferir ‘hegemonia conceitual’ a uma dessas duas noções afeta o prisma que em cada caso permite elaborados exercícios de hermenêutica. O debate entre as escolas e os dissensos internos a cada uma delas são provas cabais da importância das discussões metodológicas, epistemológicas, conceituais e categoriais.
Mas como simples cidadão, para mim o que importa, mesmo, é tentar compreender o que são hoje os Estados Unidos da América e a República Popular da China. Buscar entender como essas potências se relacionam, e como os vetores dessa relação complexa, imensamente difícil e cada vez mais conflitiva contribuem para reforçar a tendência de longo prazo que vem corroendo desde os anos 70 a ordem criada em 1945.
O que pretendo: esboçar, apenas esboçar, o quadro geopolítico e histórico que explicita o declínio do ‘hegemon’ e, na outra ponta, a ascensão do seu único e desafiador rival.
Ao longo do exercício tentarei elaborar decifração precária desse duplo movimento, coisa que implica inevitável especulação sobre o que a dinâmica da transição poderia estar indicando. O fio condutor: a ideia de que estamos passando por um processo que sinaliza a substituição de Bretton Woods por algo novo. Novo que até agora continua praticamente indefinido.
Bom alertar: o lhes trago resulta de uma perspectiva um tanto heterodoxa. Algo cientificamente frágil, mais para ‘doxa’ do que para ‘episteme’. Esforço bastante arriscado, nem tão frutífero assim, mas que pode ser oportuno como estímulo à discussão, até mesmo porque em cinco semanas Donald Trump dará início ao seu segundo e derradeiro mandato presidencial.
Dito isso, vamos lá. Comecemos.
O panorama geopolítico atual está para mim demarcado por ao menos duas certezas. Minha primeira certeza: sim, estamos em meio a um longo período de potencial transformação inusitada da ordem internacional instituída quase 80 anos atrás.
Grosso modo, o início dessa transformação data da década de 70 do século passado. A cada ano que passa, ao adquirir maior visibilidade, a mudança se mostra menos indeterminada. Em simultâneo, parece mais e mais perigosa, e seu término continua invisível, escondido além da linha do horizonte.
Noutras palavras: com base no que sabemos hoje não dá para afirmar com margem razoável de certeza qual será o desenlace do que geopoliticamente nos circunscreve. Não dá nem mesmo para intuir quando a dinâmica da transição começará a assumir a forma de uma nova estrutura relativamente perdurável.
Depois de haver manifestado tanta prudência, salto para uma especulação radical. Desde a passagem do século, o crescimento das tensões internacionais vem sendo de tal ordem que ou bem a transição de hegemonia estará concluída o mais tardar na segunda metade deste século, sem uso de armas nucleares táticas, ou o mundo futuro será indescritivelmente mais violento do que o atual.
Sigo especulando. Se a transição de hegemonia não for conduzida a bom termo de maneira negociada, o século vindouro pode vir a ser espantosamente regressivo: um mundo por completo distópico, em que os estados e as sociedades todos estarão submetidos a uma lógica de ferro, simultaneamente capitalista e hobbesiana. Um mundo geopoliticamente caracterizado por conflitos frequentes, por intermitente luta de todos contra todos ou, quando menos, luta quase permanente entre as grandes potências centrais, seu belicismo acompanhado por sistemática imposição de absoluta submissão aos povos periféricos e semiperiféricos.
Ou bem se chega nas próximas décadas a algum tipo de acordo do qual nasça uma ordem internacional reformada, ela própria resultante de uma transição de hegemonia negociada, ou então todos os estados, povos e sociedades, qualquer que seja seu poder estatal e econômico relativo, estarão condenados, numa tal situação-limite, à busca da sobrevivência tal como imaginada por Hobbes no estado de natureza. Vida nauseante, bruta e breve.
Deixemos meu lado apocalíptico de lado. Passemos ao outro, passemos ao meu lado mais ou menos integrado. A partir dele explicitarei minha segunda certeza.
Sim, nos últimos 50 anos os Estados Unidos pouco a pouco, passo a passo, degrau a degrau, estão decaindo. Perdem progressivamente a hegemonia que no seu primeiro momento foi quase que apenas um esboço, hegemonia vislumbrada como fruto da grande guerra europeia de 1914-1918. Essa hegemonia em croquis passou a ser quase plena 27 anos depois, garantida que foi, no plano jurídico-político multilateral, pelos acordos de Bretton Woods. Digo hegemonia quase plena porque a União Soviética, a China ainda em plena revolução e o campo socialista burocrático a ela se contrapunham. Mesmo assim, hegemonia que para os mais impressionáveis carregava consigo esperanças liberais de certa maneira beirando o utópico, esperanças abolidas pelo curso da história efetiva.
Façamos um corte abrupto, mas corte importante para entender a dinâmica que desde o início do século conduz à expectativa de uma transição de hegemonia em que os Estados Unidos são o superpoder ameaçado. Muito disso tem a ver com o New Deal.
Proponho uma certa periodização: se privilegiarmos o período que se inicia nos anos 30 do século passado, podemos dizer que bastaram cerca de 40 anos para que o estado e a sociedade americanos criassem e destruíssem o experimento denominado Estado de Bem-Estar Social.
A decadência ou o desfazimento do Welfare State demandou quatro décadas de extraordinários esforços, suscitou intensos debates, muita apologia e variadas críticas. Dentre os críticos de esquerda, recordo James O´Connor, economista e sociólogo para quem o empreendimento promovido por Roosevelt teve duas faces.
Uma delas, seu celebrado progressismo democrático. A outra, sua face externa, denunciada por O’Connor como Warfare State. Por seu intermédio, a superpotência progressista e democrática se mostrava, em sua projeção externa, belicosa e dominadora. De toda forma, o que afinal mais interessa para nós: desde aproximadamente a década de 70 o neoliberalismo passou a imperar. O New Deal com duas faces, uma espécie de Jano imperial, transformou-se em capítulo da história americana e mundial.
Se ainda déssemos mais um passo para trás, e considerássemos a crise de 1929 como o grande naufrágio do liberalismo econômico e político clássico americano, a ordem liberal sendo substituída pelo Estado de Bem-Estar Social, então perceberíamos com clareza quão radical foi a ruptura rooseveltiana com a situação anterior. Observo, entretanto, que essa ruptura não deixa de ser formalmente aparentada àquela outra que, mais ou menos 40 anos depois, foi imposta ao Estado de Bem-Estar Social pelo neoliberalismo triunfante.
Ou seja, podemos de maneira terrivelmente abstrata resumir a trajetória dos Estados Unidos a três ciclos: o da ordem liberal clássica americana, ordem econômica e política; o do New Deal com dupla face; e o do neoliberalismo triunfante.
Dito isso, passemos ao neoliberalismo. Se nos concentrarmos nas relações internacionais e na geopolítica nelas imbricada desde quando o absolutismo de mercado passou a predominar nos Estados Unidos, então fica relativamente fácil perceber que a face externa do neoliberalismo que se tornou mundo é o próprio desdobrar-se da mundialização como a etapa mais recente do capitalismo planetário que deu seus primeiros passos no final do século 18 e na primeira metade do XIX.
Para termos uma ideia do significado da vitória neoliberal sobre o esquema entre rooseveltiano e keynesiano anteriormente vigente, recordemos que o capitalismo liberal e o seu outro, o liberalismo político, em conjunto se afirmavam como a terra da grande promessa chamada laissez-faire.
Já o Welfare State surgido a partir do desastre que foi a crise de 1929, mostrou-se como antônimo. Ao colidir com o antigo mundo liberal e com ele romper, Roosevelt a um só tempo inova e revoluciona de maneira sistêmica e surpreendente o que predominara desde o final da luta do norte industrial contra o sul escravocrata. Mas em todo esse desenrolar, o mito fundador da grande promessa, a ideologia do excepcionalismo americano, foi mantido. Mais do que isso, reforçado.
Com o New Deal, uma série de inovações cobrou vida: (i) a previdência social foi instituída; (ii) o salário mínimo foi criado; (iii) 3) o seguro desemprego foi estabelecido; (iv) 15 milhões de pessoas foram empregadas pelo governo, algo antes impensável; e (v) os custos de criação do Estado de Bem-Estar Social foram bancados, ‘nolens volens’, pelos americanos mais ricos e pelas grandes corporações, ambos obrigados a aceitar a imposição de altíssimos impostos.
Essa lista não é exaustiva, mas dá uma ideia de porque Roosevelt – ao astutamente encarnar as demandas ‘de los de abajo’ – cumpriu três mandatos presidenciais seguidos e até hoje dispute com Lincoln, no imaginário do ‘país imprescindível’, qual deles foi o mais popular dos chefes de estado americanos.
Essa, a dimensão solar do New Deal. Por outro lado, enquanto boa parte dos historiadores americanos continuava a celebrar os 25 anos gloriosos, parte significativa dos mais ricos e das grandes corporações que pagaram pelo New Deal, ou seja, uma fração dos economicamente mais poderosos, em aliança com seus representantes políticos, reagiam vigorosamente. Com afinco se dedicaram, no plano das ideias econômicas e no registro político-jurídico e institucional, a debilitar o que fora instaurado por Roosevelt. A dedicação exemplar desse conjunto de atores interessados foi magnificamente recompensada no prazo longo.
Décadas depois de iniciado o esforço voltado para a imposição do absolutismo do mercado, o esgarçamento do experimento Roosevelt tornou-se patente. Verdade que o ponto de não-retorno só começou a ficar visível na década de 1970, quando capitais americanos começaram a se deslocar de forma maciça para o exterior.
Esse fluxo de recursos foi dirigido em particular para a Ásia Oriental, em especial para a China recriada a partir da grande virada de 1972. Mas eram investimentos que também se deslocaram para o restante da Ásia e para os chamados países emergentes na América Latina e na África. Pensemos em Nixon e Kissinger. Pensemos também em Pinochet (1971-1990), Thatcher (1979-1990) e Reagan (1981-1989). Não esqueçamos, no curso dessa rememoração, de que para nós os anos 1980 ficaram sendo a década da crise da dívida, a década perdida.
No que mais conta, o processo que começara em fevereiro de 1972 recebeu impulso decisivo com Reagan. Sua política de incorporação da China à ordem de Bretton Woods foi continuada por todos os demais presidentes, tanto republicanos quanto democratas. Uma frágil exceção, um ponto ligeiramente fora da curva, Trump em seu primeiro mandato.
Em articulação com esse deslocamento dos investimentos produtivos para fora, as elites se aferraram mais ainda ao neoliberalismo que em grande velocidade passou a ser uma totalidade interno-externa. No limite, terminou por emergir como a variante propriamente estadunidense, mas também mundial, da jaula de aço weberiana.
Quando falo em jaula de aço weberiana, indiretamente levanto 2 questões. Os Estados Unidos de hoje se tornaram irreversivelmente neoliberais ou não? Qual o grau de inflexibilidade dessa jaula de aço? Duas perguntas diretas que abrem margem para muita reflexão conjunta.
O que me parece evidente: desde várias décadas o estado desempenha papel ancilar como agente econômico produtivo. Desde décadas a economia sofre intenso processo de desindustrialização. Uma de suas expressões: a perda de 30 milhões de postos de trabalho, segundo estimativa do economista político Richard Wolff.
Algo notável em termos de longa duração: o fluxo de grandes investimentos dos Estados Unidos para a China, impulsado originariamente por Nixon e Kissinger, levou a que a República Popular, depois de cuidadosas negociações, ingressasse na OMC quase exatos 20 anos depois.
A China, ao passar a ser parte de Bretton Woods, reforçava as esperanças dos liberais intervencionistas. Para esse tipo de liberal, a China estava destinada a se tornar ainda mais vizinha, para surpresa de Marco Bellocchio.
Os defensores dessa política voltada para atrair a República Popular para o que hoje chamam de ‘ordem internacional baseada em regras’ davam por certo que Beijing, depois de transitar de Mao e da revolução cultural para a ordem de Bretton Woods, seria um sócio confiável, um parceiro geopoliticamente cordato, um grande mercado vinculado ao Norte Global com a cola forte dos sólidos interesses materiais compartilhados.
Graças à influência benéfica do Ocidente, a China aos poucos se metamorfosearia numa próspera sociedade de mercado, idealmente amparada – até mesmo pela força encantatória das afinidades eletivas – num regime político democrático tal como entendido à maneira liberal ocidental. A distância entre esses votos do coração piedoso e o curso da realidade efetiva se tornou infinita.
Em síntese: a China do último Mao e de Deng Hsiao Ping, líder supremo de 1978 a 1992, criou seu próprio caminho ao andar. Hoje, a China de Xi é justificadamente avaliada pelos Estados Unidos como competidor fortíssimo, adversário sagaz, potência desafiadora e inimigo principal.
China competidora, China adversária, China desafiante, China inimiga. Dependendo da conjuntura, as qualificações giram como se fossem carrossel. A categorização da China como inimigo tende a predominar, e com ela ganha força o proclamado desde Obama: os Estados Unidos devem se centrar geopoliticamente na Ásia Oriental, não mais na península europeia.
Como vejo a China? Minha resposta, sei, tem seu quê de provocação. Para mim, a China de Xi Jinping é uma formação econômico-social que encarna variante específica de capitalismo de estado. Vejo-a como país que vive ciclo longo de extraordinária dinâmica de acumulação de capital, de riqueza, de extração de excedente econômico e de concomitante expansão de seu poderio militar. Algo de dimensões jamais vistas, creio, desde a conformação do capitalismo originário.
Esclareço que por capitalismo originário entendo a modalidade de produção de mercadorias que se implantou no Ocidente por via triplamente revolucionária: a revolução industrial (1760), a sublevação das 13 colônias (1776) e a revolução que derrubou o ‘ancien régime’ francês (1789). Simplificando brutalmente: o mundo ocidental foi revolucionado em suas raízes ao longo de apenas três décadas. O espraiar-se do capitalismo em suas várias formas, bem sabemos, prossegue até hoje e até onde a vista alcança.
Deixemos a era das revoluções burguesas de lado e voltemos à China. Contrariando a preponderância planetária do capitalismo neoliberal, a China dele se distancia, ainda que de maneira parcial. Ou seja, continua na sua trilha própria ao pragmaticamente conjugar economia capitalista híbrida com o domínio político do gigantesco partido único.
Se assim é, e para mim é assim, então vocês não serão surpreendidos quando digo que a China, em termos de acumulação de capital, no essencial se encontra regida por duas lógicas diferenciadas, concretizadas de maneira diferente por dois grandes atores.
Diferenciadas são, sim. Mas não são lógicas opostas. Ambas até o momento funcionam como se fossem naturalmente complementares. Lógicas que, traduzidas em ações humanas e também financeiras, em trabalho e bolsa, são capazes de gerar poderosas sinergias.
De um lado, a lógica das megaempresas estatais; de outro, a das megaempresas privadas, sejam elas de capital predominantemente chinês ou ‘transnacional’. A coordenação desse híbrido e o controle arbitral das eventuais divergências entre os que em seu agir encarnam as duas lógicas cabem ao Partido Comunista Chinês, a meu ver ente algo taumatúrgico, uma instituição que vai muito além da ação política tal como convencionalmente entendida. Organização que há tempos me parece bem mais chinesa do que comunista.
Confesso: não tenho dados precisos a respeito da composição das duas alas mais importantes da economia chinesa. Mas vocês, que têm na China um objeto de estudo científico, provavelmente estarão muito mais bem informados do que eu a respeito desse esquema em tripé.
No que me parece conter certo grau de impressionismo, há autores para quem mais de 40% do PIB chinês é gerado pelas megaempresas estatais. Porcentagem similar incumbiria às grandes empresas privadas.
Para nenhuma surpresa, ao menos minha, a lógica das megaempresas privadas chinesas é a mesma das ‘transnacionais’ que operam na China. Nisso, ambas são similares às de suas congêneres que atuam no centro, na periferia e na semiperiferia do sistema capitalista planetário. Mas a lógica das grandes empresas estatais não espelha rigorosamente a das megaempresas privadas. Repito: são lógicas distintas, diferentes, mas não opostas. Primos não são irmãos.
Estabelecido esse desenho do declínio americano em contraposição à ascensão chinesa, vejamos de maneira resumida o desempenho comparado de ambos os experimentos. De um lado, o neoliberal globalista; de outro, o capitalismo híbrido sob comando partidário único.
Até a eclosão da pandemia (2019), o PIB chinês crescia a altíssimas taxas. Taxas que variavam entre 6% e 9%. O produto interno bruto dos Estados Unidos, nesse mesmo período, oscilava entre 2% e 3% ao ano. Após a Covid-19, a expansão do PIB chinês vem se mantendo em mais de 4% a.a. Em 2024, a estimativa do FMI é de que chegue a 4,8%. Para 2024, a expectativa do FMI é de que o PIB dos Estados Unidos chegue a 2,8%. Ou seja, continua na média histórica.
Alguns outros dados paralelos muito interessantes: Este ano, o PIB da União Europeia deverá crescer 0,9%; o da Índia, 7%. A Alemanha chegará ao segundo ano seguido de recessão, e 2025 provavelmente será o terceiro. Seu PIB, de acordo com o FMI, não crescerá. Puro 0%. A França, por sua vez, deve crescer entre 0,8 % e 0,9% . O PIB do Reino Unido se expandirá em 0,7%.
Passemos a outro ator importante no jogo geopolítico mundial, os BRICS. O conglomerado continua a se fortalecer. O número de seus integrantes plenos se expande num ritmo inesperado. O quarteto inicial passou a quinteto e já tem mais de 10 membros, o número exato ainda dependendo de os sauditas dizerem sim.
A maioria dos analistas pensa que a expansão dos BRICS continuará forte. Não se descarta a hipótese de que em dez anos, se tanto, esse número se multiplique por quatro. Crescimento dessa ordem tem beneficiário maior, a China. E alguns outros, menores. Por exemplo, a Rússia e a Índia. Não necessariamente o Brasil será um dos mais beneficiados. Talvez até devamos pensar o contrário: quanto mais o BRICS se expandir, menor tende a ser nossa importância.
Creio que geopoliticamente mais relevante do que os BRICS é o projeto chinês de Cinturão e Rota, ou seja, a Nova Rota da Seda que continua a se estruturar em escala mundial. Até mesmo no que é o outro lado do mundo para a China, a Nova Rota já deu ensejo, juntamente com outros ‘fatores causais’, a que a República Popular se tornasse o maior parceiro comercial da América Latina.
A expansão da já dominante presença chinesa na América Latina é coisa certa. Poucos países, como o Paraguai e outros que mantêm laços com Taiwan, estão temporariamente excluídos. Beijing pacientemente espera que esses poucos mudem de posição.
O Brasil não contempla aderir à Rota da Seda, e tem bons motivos para isso. De fato, o que a Rota oferece, em seu esquema radial, é algo assim como um contrato de adesão. Difícil para o Brasil pensar a China como empresa aérea. Melhor preservar um grau razoável de autonomia recorrendo ao que talvez seja um certo distanciamento. Levíssimo.
Sigamos com a comparação do desempenho econômico das duas maiores potências. O salário mínimo nos Estados Unidos é de US$ 7,25 por hora. Está congelado desde 2009. Ou seja, congelado por 15 anos, enquanto a inflação comparece ano a ano.
Todos os salários reais na prática estagnaram. O aumento foi insignificante: 0,5% ao ano. Enquanto isso, o salário real chinês cresceu 400 %.
Em 1945, os Estados Unidos eram o país desenvolvido menos desigual. Hoje, quando comparado a todos os europeus, os Estados Unidos são o mais desigual. Não esquecer que 10% dos americanos – o segmento mais rico da população– controlam 80% das ações e títulos negociados nas bolsas.
Quando considerados em seu conjunto, esses dados sugerem – sugerir é verbo indicativo de delicadeza – que a vigência do modelo neoliberal globalista universalizado pelos Estados Unidos, caso visto tão somente como fenômeno interno à República imperial, beneficiou e continua a beneficiar brutalmente as elites econômicas, comerciais e financeiras, mais as franjas superiores das classes médias e certas frações da ‘classe gerencial’ situadas mais ou menos próximas do ápice da pirâmide. Ou seja, uma fração menor ganha quase tudo, enquanto tudo mais, o grosso da população, perde.
É levando em conta essa Gestalt que podemos tentar elaborar alguma análise crítica sustentável do que significam Donald Trump e o trumpismo, sem cair no mais trivial impressionismo.
De saída, sublinhar: esse quadro não foi pintado hoje. Na verdade, a moldura começou a emergir quando o neoliberalismo vitorioso ascendeu à visão de mundo de grande parte das elites americanas.
Mas nas últimas décadas esse esquema vem produzindo crescente angústia, aumentada insegurança existencial e até mesmo desespero e desorientação que afetam a vida cotidiana da maioria da população ou, se quiserem, do povo. Importante considerar o filme inteiro, não alguns fotogramas. Só então teremos como perguntar de maneira refletida que decisiva diferença substantiva, não de estilo ou de retórica, podem fazer o segundo Donald Trump e o ‘novo’ partido republicano, esse que faz tempo se tornou palco de luta sem quartel do trumpismo contra o que sobrou do mais que exaurido republicanismo elitista tradicional.
A meu ver, essa é de imediato a grande questão. Questão que só poderá receber resposta mais ou menos adequada em dois anos mais, quando conhecidos os resultados das vindouras eleições intermediárias.
Por outro lado, mesmo que não tenhamos como, neste momento, elaborar resposta que nos satisfaça, a grande questão por si mesma leva a outras perguntas que por sua vez pedem reflexões nossas como brasileiros e brasileiras que se interessam existencialmente pelos rumos do mundo e pelos rumos do Brasil no mundo.
Com essa intenção, levantei sete indagações: (1) a decadência neoliberal globalista da República imperial alcançou ponto de não-retorno ou dele se aproxima em ritmo acelerado? (2) Diante do continuado crescimento rápido da China – ainda que a taxas menos altas, mas até agora bem superiores às dos Estados Unidos –, o que pode fazer Washington em termos de ‘containment’ e ‘rollback”? Essas categorias herdadas de Kennan e da Guerra Fria podem se aplicar à China de Xi Jinping?
(3) têm os americanos condições de deixar a Europa em segundo plano para se concentrarem na Ásia Oriental e no adversário ou inimigo principal? (4) na outra ponta, pode a Europa igualmente neoliberal aceitar essa passagem forçada ao segundo plano? Dito de outra maneira: dada sua própria decadência, a Europa da OTAN e da União Europeia tem como se submeter por completo à estratégia anti-China de Trump, sem com isso debilitar ainda mais seu futuro econômico que já se apresenta bem mais do que medíocre, na verdade desastroso? Se a Europa vier a ser mais uma vez submissa, essa servidão voluntária – para lembar de la Boétie – não tornará ainda mais problemático o presente quadro político-eleitoral marcado pelo crescimento da extrema direita?
(5) Sem levar avante esse relativo abandono da Europa, qual a chance real de os Estados Unidos enfraquecerem a China e a malha de relações que Beijing busca adensar com todos os estados e socieddes que compõem seu problemático entorno regional? (6) dado o êxito que vem alcançando a Nova Rota da Seda, e dada a expansão dos BRICS, de que dispõem os EUA para se tornarem alternativa atraente à China no plano econômico e comercial tanto na Ásia quanto na África e na América Latina? (7) como Washington poderá reagir, indo muito além do programa ‘América Cresce’, ao peso crescente da Nova Rota da Seda na América Latina?
Uma certeza minha: o futuro governo de Donald Trump promoverá salto qualitativo na chamada ‘guerra econômica contra a China’. Essa dinâmica se encontra tão somente na sua fase inicial, pontilhada até o momento por escaramuças quase cotidianas.
Não esqueçamos: a Europa em boa parte se arruinou ao seguir sem grande reflexão, mas com óbvio exercício de vassalagem, a estratégia de Biden ‘vis-à-vis’ a Ucrânia. Ou seja, os países europeus estão se enfraquecendo há três anos por conta própria desde que, ao adotaram sanções econômicas bloqueadoras, desistiram do petróleo e do gás abundantes e baratos que sustentavam em especial o crescimento da locomotiva Alemanha. Nem falemos da destruição do Nord Stream.
Essa estratégia de guerra econômica obviamente falhou, enquanto que na frente militar a Ucrânia está à beira de uma derrota que pode ser iminente. O país já perdeu mais de 20% de seu território, e essa proporção pode aumentar bastante, passado o inverno setentrional. Ademais, a Ucrânia não dispõe de soldados suficientes para prosseguir na luta por anos mais.
Donald Trump promete acabar com a guerra em prazo curto, e Kiev não tem como continuá-la porque depende completamente dos Estados Unidos. Por outro lado, Volodymyr Zelensky não pode contar com apoio firme da OTAN.
De fato, os complexos militares-industriais europeus nem se quisessem poderiam suprir em volume e qualidade os armamentos fornecidos à Ucrânia por Washington. Esses armamentos na realidade garantem parte importante dos ganhos do complexo militar-industrial americano. A maior parte do montante dos dólares transferidos para a Ucrânia são recursos que voltam aos Estados Unidos para compra de equipamento militar. Isso confirma o peso da produção de meios de destruição como estratégico fator dinamizador da economia americana. Keynes já falara no papel estratégico dos meios de destruição para a superação das grandes crises econômicas capitalistas. Não estamos diante de nenhuma novidade.
Se expandirmos mais ainda o círculo da análise, as dificuldades da superpotência ocidental se multiplicam.
Isso porque na equação macro do grande jogo geopolítico asiático, os Estados Unidos têm também que se preocupar com a dinâmica econômica indiana e com a ambiguidade estratégica que orienta a política externa de Nova Delhi, ambiguidade que inclusive garante a estabilidade e o aperfeiçoamento das históricas relações russo-indianas.
Também decisivo, para os Estados Unidos, calcular de maneira realista se pode ter êxito na tentativa de repetir, embora com sentido inverso, a política de Nixon e Kissinger para a China.
Kissinger e Nixon conseguiram criar uma cunha entre Moscou e Beijing. Conseguirão Trump e Rubio enfraquecer estrategicamente a amizade sem limites proclamada por Xi e Putin semanas antes do início da guerra na Ucrânia? Ficarei muito surpreendido se isso vier a acontecer, embora saibamos que o amor só é eterno enquanto dura.
De maneira demasiado simplista, talvez, ou talvez excessivamente realista, antecipo que os Estados Unidos viverão nos próximos 4 anos a intensificação da crise interna que tudo indica deve alcançar patamares inéditos.
Ao mesmo tempo, no plano externo não há caminhos claros que permitam a Trump conter a China, debilitar o que já é na prática uma aliança cada vez menos discreta entre Beijing e Moscou, e tornar a Europa da OTAN e da UE um espaço geopolítico inteiramente subordinado a Washington. Essa falta de caminhos é compensada por declarações para mim de caráter circense. Trump certamente se crê o dono do circo.
Alguns pontos que me parecem esclarecer um pouco o que ocorre em meio a bruma espessa: (i) os Estados Unidos já não tem como continuar a seguir de maneira linear o esquema neoliberal que vem de Reagan, passa pelos Bush e por Clinton, chega a Obama e tem no primeiro Trump algo um pouco diferente. Mas essa diferença trumpiana no fundo foi pouca, valeu quase nada, não foi adiante.
Daí que insista: o neoliberalismo linear se exaure com Biden. Sua tentativa de mesclá-lo com alguma heterodoxia pontual que lembra Roosevelt e Keynes, ambos com anemia extrema, fracassou. A mistura de neoliberalismo com agregados ou tinturas keynesianas ou rooseveltianas, receita incoerente, foi um dos fatores que pesaram na derrota de Kamala Harris.
(ii) O fracasso eleitoral de Harris em si mesmo também sussurra: já se foi o tempo em que uma parte da elite democrata, dentro e fora do partido, poderia montar uma espécie de ‘operação Lázaro’ capaz de trazer estruturalmente de volta à vida o essencial do New Deal. Não creio que o partido democrata e os bilionários que o sustentam e dele cobram a reciprocidade devida tenham qualquer interesse permanente nisso. Posso estar errado, mas não acredito que esteja.
(iii) se é assim, então, a decorrência inevitável surge clara: até onde a vista alcança, os Estados Unidos emitem sinais de que internamente se encontram num beco sem saída. Nesse caso, todos os elementos que compõem a longa crise interna da República imperial só podem ganhar força. Tendem até mesmo a emergir como perigosos momentos de intermitentes fusões.
Ou seja, o futuro imediato da sociedade americana será caracterizado por polarização crescente, anomia cada vez mais visível, pulular da microfísica da violência, realidade macabra exposta diariamente como ‘faits divers’. Nisso, os Estados Unidos lembram o Brasil, ou vice-versa.
(iv) A crise que perpassa a esfera social junta-se ao crescimento medíocre da economia e aos conflitos distributivos que ganham peso, apesar do neoliberal enfraquecimento dos sindicatos. Enquanto isso, no plano ideológico, o mito da excepcionalidade americana também começa a dar sintomas de caducidade. No mínimo, começa a se desfiar a olhos desarmados. Em suma, crise completa ou quase.
Reconheço que ao esboçar como vejo a transição de hegemonia e o momento atual dos Estados Unidos, da China, da Rússia, do Norte e do Sul globais, minha apresentação é no mínimo sombria.
Mas talvez não seja culpa minha, sim da realidade geopolítica, da decadência que é americana, mas também europeia, e da quase impossibilidade de os Estados Unidos reconhecerem a realidade da ascensão chinesa, reconhecimento indispensável para que a hipótese de uma transição de hegemonia não catastrófica ganhe fôlego.
Tentado a entender outra crise completa, a provocada pela ascensão do nazifascismo, o jovem Bertold Brecht escreveu curto poema, intitulado “Os nascidos depois’. Dele extraí cinco versos:
‘Os cegos falam de uma saída.
Eu vejo.
Após os erros terem sido usados
Como última companhia, à nossa frente
Senta-se o Nada.’
Ao tentar entender a ascensão e queda dos Estados Unidos sempre me vêm à mente os títulos dos livros que compõem a tetralogia de Eric Hobsbawn: A Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era do Império e A Era dos Extremos.
Desconfio de que se Eric Hobsbawn estivesse vivo, todos nós já haveríamos lido o quinto volume. Seu título bem poderia ser: “A Era da Exaustão”.
Concluo esta panorâmica travessia do deserto do real.Para mim, esta é a era da exaustão do Ocidente ampliado. Esta, a era em que a periferia continua condenada, ao fim e ao cabo, à superexploração e à completa irrelevância. Superexploração variada; irrelevância perene. Esta é a era em que a semiperiferia tenta sobreviver à exaustão do Ocidente, parte dela inclusive dando boas-vindas ingênuas a Beijing como Novíssima Jerusalém.
Meus votos como cidadão enquanto a grande transição continua: que a semiperiferia consiga criar análise sua, própria e crítica da ascensão da China como novo centro. Novo centro como encarnação específica. Novo centro como variante chinesa do capitalismo bifronte planetário. Novo centro como vitória explícita do capitalismo híbrido de partido único sobre o neoliberalismo em crise. Carência desse pensar crítico a partir da semiperiferia enquanto a transição hegemônica se perfaz tem tudo para se nos revelar fatal.
De tudo o que lhes disse, claro, para mim, que essa era está longe de terminar. Daí que o futuro intensificará o que já é presença forte no presente: a era acumula perigos extremos, econômicos, sociais, ambientais, militares e científico-tecnológico. Num deles, ou numa combinação imprevisível, podemos sucumbir.
Ignoro por um momento o curso real do mundo para desejar que da decadência americana e da ascensão chinesa não resulte o impensável, o holocausto nuclear, mas sim algum tipo de transição negociada, ausente conflito bélico de gigantescas proporções.
Voto piedoso, o meu? Não sei. Talvez. O que é líquido e certo: uma transição negociada de hegemonia será algo inaugural, criação do século 21. Exceção à regra histórica das transições, diz o meu lado realista.
Tadeu Valadares é embaixador aposentado.
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