Troca desigual de trabalho na economia mundial

Imagem: Ricky Gálvez
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JASON HICKEL, MORENA HANBURY LEMOS & FELIX BARBOUR*

Na economia mundial contemporânea, apropriação de valor ocorre em grande parte por meio do que foi chamado de “troca desigual” no comércio internacional

Introdução

Estudiosos da economia política internacional argumentaram usualmente que o crescimento e a acumulação de capital nos estados “centrais” ricos do Norte global dependem da apropriação de valor – trabalho, recursos e bens – das “periferias” e “semiperiferias” do Sul global. Na economia mundial contemporânea, essa apropriação ocorre em grande parte por meio do que foi chamado de “troca desigual” no comércio internacional.

A literatura neste campo tem descrito como os principais estados e empresas alavancam seu poder geopolítico e comercial para comprimir salários, preços e lucros no Sul global, tanto no nível das economias nacionais quanto nas cadeias globais de commodities (que respondem por mais de 70% do comércio), de modo que os preços do Sul são sistematicamente mais baixos em relação aos preços do Norte.

As desigualdades de preços obrigam os estados e produtores do Sul a exportar todos os anos mais trabalho e recursos incorporados em bens comercializados para o Norte global, a fim de poder pagar por importações. Isso permite que as economias do Norte se apropriem liquidamente de valor, o que se dá beneficiando não só os capitalistas, mas também, em geral, os consumidores do Norte.

Dinâmica de troca desigual

Entende-se que essa dinâmica se intensificou nas décadas de 1980 e 1990 com a imposição de programas de ajuste estrutural em todo o Sul global. Tais programas desvalorizaram as moedas do sul, cortaram empregos públicos e removeram as proteções trabalhistas e ambientais, impondo pressão descendente sobre salários e preços.

Eles também anularam a política industrial e reduziram o investimento liderado feito pelo Estado em desenvolvimento tecnológico. Obrigaram, ademais, os governos do Sul a priorizar a produção “orientada para a exportação” em setores altamente competitivos e em posições subordinadas nas cadeias globais de commodities.

Ao mesmo tempo, as principais empresas nos estados centrais transferiram a produção industrial para o Sul global para aproveitar diretamente os salários e custos de produção mais baratos, enquanto alavancam seu domínio nas cadeias globais de commodities para espremer os salários e lucros dos produtores do Sul. Essas intervenções aumentaram ainda mais o poder de compra relativo do Norte sobre o trabalho e os bens do Sul.

Vários estudos procuraram quantificar a escala de apropriação por meio de trocas desiguais indiretamente, ajustando os volumes de comércio monetário para as disparidades Norte-Sul em salários ou preços gerais. Pesquisas mais recentes usaram modelos de insumo-produto multirregional que incorporam variáveis ambientais (chamados EEMRIO). Elas permitem rastrear os fluxos de recursos incorporados no consumo final de cada nação. Esses estudos demonstram empiricamente que as economias centrais dependem de uma apropriação líquida de trabalho e de recursos incorporados em mercadorias produzidas no Sul global.

No entanto, essas pesquisas até agora não analisaram diretamente a dinâmica dos preços associada ao tempo de trabalho incorporado no comércio Norte-Sul. Também não foi capaz de responder a perguntas sobre até que ponto as disparidades salariais Norte-Sul e as trocas desiguais podem ser um efeito de diferenças no tipo de trabalho que está sendo executado, como em termos de nível de qualificação ou setor (por exemplo, se as desigualdades salariais surgirem porque o Sul troca trabalho pouco qualificado por trabalho altamente qualificado, ou bens primários para bens secundários).

Neste estudo, usamos um banco de dados (chamado EXIOBASE) para rastrear os fluxos de trabalho incorporado entre o Norte e o Sul, pela primeira vez contabilizando diretamente setores, salários e níveis de qualificação (conforme definido pela Organização Internacional do Trabalho, OIT). Isso nos permite definir a escala de apropriação do trabalho por meio da troca desigual em termos de tempo de trabalho; ao mesmo tempo, possibilita que esse tempo seja representado em termos de valor salarial, de uma maneira que explica a composição do nível de habilidade do trabalho incorporado no comércio Norte-Sul.

A categoria “Norte global” que usamos engloba os países que o Fundo Monetário Internacional chama de “economias avançadas”. A categoria “Sul global” compreende, então, todas as economias emergentes e em desenvolvimento. Todas as unidades monetárias estão em euros constantes de 2005, corrigidas pela inflação, representadas em taxas de câmbio de mercado, o que é apropriado para comparações internacionais do poder de compra de renda na economia global.

Neste estudo, chegamos a várias conclusões importantes.

(i) Descobrimos que o trabalho de produção na economia mundial, em todos os níveis de qualificação e em todos os setores, é predominantemente realizado no Sul global (em média 90-91%), mas os rendimentos da produção são desproporcionalmente capturados no Norte global. (ii) O Norte apropriou-se de 826 bilhões de horas de trabalho incorporado do Sul global em 2021. Esta apropriação líquida ocorre em todas as categorias e setores, incluindo uma grande apropriação líquida de trabalho altamente qualificado. (iii) O valor salarial do trabalho líquido apropriado foi de € 16,9 trilhões em 2021 e em termos dos salários do Norte, contabilizando-se o nível de qualificação. Em termos de valor salarial, a perda de trabalho pelo Sul mais do que dobrou desde 1995.

(iv) As disparidades salariais Norte-Sul aumentaram drasticamente ao longo do período, em todas as categorias e setores, apesar de uma pequena melhoria na posição relativa do Sul. Os salários do Sul são 87-95% mais baixos do que os salários do Norte para trabalho de igual qualificação em 2021 e 83-98% mais baixos para trabalho de igual qualificação dentro do mesmo setor. (v) A participação dos trabalhadores no PIB diminuiu em geral ao longo do período: 1,3 pontos percentuais no Norte global e 1,6 pontos percentuais no Sul global.

Contribuições para a produção global

Descobrimos que, em 2021, o último ano de dados, 9,6 trilhões de horas de trabalho foram destinadas à produção para a economia global. Desse total, 90% vieram de contribuição feita pelo Sul global (ver a figura abaixo). O Sul contribuiu com a maior parte do trabalho incorporado em todos os níveis de qualificação: 76% de todo trabalho altamente qualificado, 91% do trabalho de qualificação média e 96% do trabalho pouco qualificado. No mesmo ano, 2,1 trilhões de horas de trabalho foram dedicadas à produção de bens comercializados internacionalmente (neste artigo, “bens comercializados” inclui bens e serviços).

A contribuição relativa do Norte-Sul para a produção de bens comercializados é semelhante à da produção total, com o Sul contribuindo com 91% de todo o trabalho (73% de todo trabalho altamente qualificado, 93% do trabalho de qualificação média e 96% do trabalho pouco qualificado). Observe que os últimos números estão subestimados, uma vez que a maioria dos países do Sul global está agregada em regiões e o comércio dentro dessas regiões não está representado.

A contribuição do Sul para a produção global total aumentou constantemente ao longo do período desde 1995, em todas as categorias de habilidades. O maior aumento ocorreu na categoria de alta qualificação, com a contribuição do Sul para a produção de alta qualificação aumentando de 66% do total mundial em 1995 (1,9x mais que o Norte) para 76% em 2021 (3,2x mais que o Norte).

De fato, o Sul agora contribui com muito mais trabalho altamente qualificado para a economia mundial (1124 bilhões de horas em 2021) do que todas as contribuições de trabalho de média e baixa qualificações do Norte global combinadas (971 bilhões de horas em 2021). O Sul também contribui com a esmagadora maioria de trabalho em todos os agrupamentos setoriais agregados que puderam ser distinguidos, incluindo agricultura (99%), mineração (99%), manufatura (93%), serviços (80%) e “outros” (89%).

Apesar de contribuir com 90-91% do trabalho total que vai para a produção global e para a produção de bens comercializados em 2021, incluindo a maioria do trabalho altamente qualificadao, o Sul global recebeu menos da metade (44%) da renda global, e os trabalhadores do Sul receberam apenas 21% da renda global naquele ano. Em outras palavras, enquanto a produção global é predominantemente realizada no Sul global, os rendimentos são desproporcionalmente capturados no Norte global, indicando um comando desproporcional do produto global.

Na figura acima apresentada, mostramos as contribuições relativas do trabalho (horas) para a produção global por região e nível de qualificação, entre 1995 e 2021. A área azul indica o trabalho prestado por trabalhadores no Norte global, enquanto a área laranja indica trabalho prestado por trabalhadores no Sul global. Os níveis de habilidade são sombreados de mais claro (pouco qualificado) a mais escuro (alto qualificado). O painel da esquerda (a) mostra a contribuição para a produção total de todos os bens e serviços. O painel da direita (b) mostra apenas as contribuições para a produção de bens e serviços comercializados.

A Tabela em sequência mostra que o número total de trabalhadores empregados e o número total de horas trabalhadas aumentaram tanto no Norte quanto no Sul de 1995 a 2021, com o aumento substancialmente maior no Sul global.

As linhas da tabela ilustram vários pontos interessantes. Primeiro, vemos que os trabalhadores no Sul global prestam consistentemente mais trabalho por trabalhador do que no Norte, por grandes margens. No último ano (2021), os trabalhadores do Sul trabalharam em média 466 horas a mais do que seus colegas do Norte (26% a mais).

Em segundo lugar, vemos que, no Norte, o tempo de trabalho por trabalhador diminuiu 7% no período, enquanto no Sul aumentou 1%. Na medida em que o aumento do tempo de trabalho contribuiu para o crescimento econômico global nos últimos 25 anos, esse fardo foi suportado esmagadoramente pelas pessoas no Sul global.

Troca desigual de trabalho

Nossa análise confirma a existência de um padrão substantivo e persistente de intercâmbio desigual entre o Norte e o Sul globais. Em 2021, o Norte global importou 906 bilhões de horas de trabalho incorporado do Sul, enquanto exportou em troca apenas 80 bilhões de horas (uma proporção de 11:1). Em média, durante o período, o Norte importou 15 vezes mais trabalho do Sul do que exportou para ele. Em outras palavras, os países do Norte se apropriam de grandes quantidades de trabalho dos países do Sul.

Essa apropriação líquida ocorre em todas as categorias de habilidades, incluindo trabalho altamente qualificado. Em média, o Norte importa 4 vezes mais trabalho altamente qualificado do Sul do que exporta, juntamente com 17 vezes mais trabalho de qualificação média e 29 vezes mais trabalho pouco qualificado.

A troca desigual de trabalho descrita acima não é explicada por diferenças setoriais. Descobrimos que o Norte global importa grandes quantidades de trabalho do Sul em todos os níveis de qualificação em todos os cinco setores considerados. Em média, o Norte importou 120 vezes mais trabalho agrícola do que exportou, 110 vezes mais trabalho de mineração, 11 vezes mais trabalho manufatureiro e 6 vezes mais trabalho de serviços.

Em outras palavras, o Norte não importa trabalho posto apenas na produção primária do Sul, enquanto exporta uma quantidade bem menor de trabalho posto na produção secundária e terciária. Pelo contrário, o Norte global depende de uma apropriação líquida de trabalho em todos os setores, incluindo os de manufatura e de serviços. Não há setor em que o Norte exporte liquidamente trabalho para o Sul.

Os resultados das séries temporais demonstram que a posição do Sul global se deteriorou durante 1995-2005, com a relação de troca Sul-Norte aumentando de 17:1 em 1995-97 para 21:1 em 2003-2005. Durante este período, caracterizado por políticas draconianas de ajustamento estrutural aplicadas durante os anos 80 e 90, as economias do Sul foram obrigadas a aumentar as suas exportações de trabalho incorporado em 24% simplesmente para manter a quantidade de importações do Norte.

A posição do Sul melhorou na década seguinte (2005-2015), à medida que as políticas de ajuste mais agressivas foram afrouxadas e o boom das commodities decolou, com a relação de câmbio caindo para 10:1. Essa melhoria foi impulsionada predominantemente por uma melhoria na posição da China. No entanto, as melhorias cessaram desde 2015 e ocorreu alguma regressão.

As figuras em sequência mostram a quantidade total de trabalho apropriado pelo Norte durante o período, por nível de qualificação e setor, respectivamente. O Norte se apropria do trabalho em todos os níveis de qualificação e em todos os setores. Vale a pena notar que a apropriação nos setores secundário e terciário (manufatura e serviços) é agora maior do que nos setores primários (agricultura e mineração), e de fato esse tem sido o caso durante a maior parte do período coberto.

A apropriação líquida total aumentou de 1995 para um pico em 2005, antes de diminuir durante a década de 2005-2015. Descobrimos que o declínio durante 2005-2015 corresponde a uma melhoria nos salários do Sul em relação aos salários do Norte. No entanto, essa melhoria cessou em 2015, de tal modo que as razões salariais estabilizaram. A apropriação aumentou nos anos seguintes, impulsionada por um aumento no volume de comércio.

Em 2021, a quantidade total de apropriação líquida atingiu 826 bilhões de horas. Esses números são substancialmente maiores do que estudos anteriores haviam descoberto. Os fluxos líquidos da China para o Norte representam cerca de um sexto do total dos fluxos líquidos Sul-Norte. Vale a pena notar aqui que o fluxo líquido Sul-Norte de trabalho incorporado não é “pago” por um fluxo líquido oposto de terra, energia ou materiais incorporados (pelo contrário, grandes fluxos líquidos Sul-Norte ocorrem em todas as categorias de insumos).

Descobrimos que esse padrão de apropriação líquida desempenha um papel importante no consumo do Norte. Em um determinado ano, o Norte consome cerca de duas vezes mais trabalho do que produz, graças à apropriação por meio de trocas desiguais. Em 2021, o trabalho líquido apropriado representou 46% do consumo total de trabalho do Norte. As economias do Norte global se tornaram cada vez mais dependentes de trabalho pouco qualificado, a grande maioria do qual é apropriada do Sul global (71% em 2021).

Embora a maior parte da apropriação líquida de trabalho do Sul pelo Norte seja composta por trabalho de qualificação média, a apropriação líquida de trabalho altamente qualificado pelo Norte também vem a ser significativa. Descobrimos que as economias do Norte global se apropriam de trabalho altamente qualificado do Sul global (52 bilhões de horas em 2021) do que obtêm e consomem por meio do comércio Norte-Norte (31 bilhões de horas em 2021).

*Jason Hickel é professor no Instituto de Ciência e Tecnologia Ambiental da Universidade Autônoma de Barcelona.

*Morena Hanbury Lemos é doutoranda no Instituto de Ciência e Tecnologia Ambiental da Universidade Autônoma de Barcelona.

*Felix Barbour é pesquisador do Instituto Beijer de Economia Ecológica da Academia Real Sueca de Ciências.

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Trecho do artigo Unequal Exchange of labour in the world, publicado no site Nature Communications.


10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Visitando Cubahavana cuba 07/12/2024 Por JOSÉ ALBERTO ROZA: Como transformar a ilha comunista em um lugar turístico, em um mundo capitalista onde o desejo de consumir está imenso, mas nela a escassez se presentifica?
  • O ofício da poesiacultura seis graus de separação 07/12/2024 Por SERAPHIM PIETROFORTE: Porquanto a literatura se faz mediante a língua, revela-se indispensável conhecer gramática, linguística, semiótica, enfim, a metalinguagem
  • O Irã pode fabricar armas nuclearesatômica 06/12/2024 Por SCOTT RITTER: Palestra na 71ª reunião semanal da Coalizão Internacional para a Paz
  • O pobre de direitapexels-photospublic-33041 05/12/2024 Por EVERALDO FERNANDEZ: Comentário sobre o livro recém lançado de Jessé Souza.
  • O mito do desenvolvimento econômico – 50 anos depoisledapaulani 03/12/2024 Por LEDA PAULANI: Introdução à nova edição do livro “O mito do desenvolvimento econômico”, de Celso Furtado
  • Abner Landimspala 03/12/2024 Por RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDI: Desagravo a um spalla digno, injustamente demitido da Orquestra Filarmônica de Goiás
  • A retórica da intransigênciaescada luz e sombra 2 08/12/2024 Por CARLOS VAINER: A escala 6x1 desnuda o estado democrático de direita (ou deveríamos dizer da direita?), tolerante com as ilegalidades contra o trabalhador, intolerante frente a qualquer tentativa de submeter os capitalistas a regras e normas
  • A dialética revolucionáriaNildo Viana 07/12/2024 Por NILDO VIANA: Trechos, selecionado pelo autor, do primeiro capítulo do livro recém-lançado
  • Anos de chumbosalete-almeida-cara 08/12/2024 Por SALETE DE ALMEIDA CARA: Considerações sobre o livro de contos de Chico Buarque
  • Ainda estou aqui – humanismo eficiente e despolitizadocultura digital arte 04/12/2024 Por RODRIGO DE ABREU PINTO: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles.

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES