Por ESTER GAMMARDELLA RIZZI & MÁRCIO MORETTO RIBEIRO*
A resposta à blindagem do poder não está em reformar as elites, mas em dissolvê-las, transformando cada cidadão, mesmo que temporariamente, em parte legítima do Estado
A aprovação da Proposta de Emenda à Constituição nº 3/2022, conhecida como PEC da Blindagem, simboliza mais do que a ampliação de privilégios parlamentares, ela revela o dilema de um sistema que, ao mesmo tempo em que assegura representação, permite à classe política criar mecanismos de autopreservação.
A imunidade parlamentar para opiniões, palavras e votos já estava prevista no artigo 53 desde a Constituição de 1988, assim como a possibilidade de sustar processos penais contra parlamentares. O que se propõe agora é o aprofundamento e a ampliação dessas garantias, que já configuravam uma proteção especial aos detentores de mandato.
Ainda que não seja inconstitucional, essa blindagem reforçada contribui para a corrosão da legitimidade das instituições do Estado democrático de direito e da própria democracia representativa, alimentando a percepção de uma casta política distante da sociedade. Diante desse impasse, é útil recuperar a imaginação democrática e considerar alternativas radicais. Este ensaio explora, em chave utópica, a criação de uma segunda câmara (ou senado) composta por cidadãos sorteados, como forma de reaproximar a política da sociedade.
1.
O sistema político brasileiro se assenta na tradição moderna da separação de poderes, inspirada nas revoluções liberais do século XVIII e no modelo constitucional norte-americano. Retomado em diferentes Constituições e atualizado em 1988 com ênfase no voto universal e na participação popular, esse arranjo concebe Executivo, Legislativo e Judiciário como esferas autônomas e interdependentes, com freios e contrapesos voltados a evitar a concentração de poder. No centro do modelo, espera-se que Câmara e Senado funcionem como canais de expressão da diversidade social, transformando conflitos em negociações transparentes e normas gerais que conferem legitimidade ao regime democrático.
Se, de um lado, o arranjo institucional brasileiro busca equilibrar forças políticas e sociais, de outro, ele também consolidou dispositivos de proteção aos representantes. No contexto da redemocratização, após duas décadas de ditadura, fazia sentido garantir salvaguardas para que o exercício do mandato não fosse sufocado por perseguições judiciais ou intimidações de caráter autoritário.
Imunidades parlamentares, foro especial e verbas de funcionamento foram concebidos como garantias mínimas para que o Legislativo pudesse atuar com autonomia diante de pressões externas. Com o passar dos anos, porém, esses mecanismos passaram a servir como barreira à responsabilização em casos de corrupção ou abuso de poder, acumulando privilégios que aumentam a distância entre governantes e governados.
Os protestos de junho de 2013 podem ser entendidos como um levante da sociedade civil contra um sistema político percebido como distante. Para além da demanda por tarifas mais justas e melhores serviços públicos, as ruas expressavam a crítica de que o Parlamento deixara de ser canal de mediação para se tornar obstáculo à participação cidadã. A resposta adequada teria sido uma reforma institucional capaz de preservar a democracia representativa, mas tornando-a menos blindada e mais permeável ao escrutínio público, com mais transparência, revisão das imunidades parlamentares e mecanismos de participação direta que complementassem a representação tradicional.
O que se seguiu, porém, foi o movimento inverso: em vez de se aproximarem da sociedade civil, as instituições políticas reforçaram seus mecanismos de autoproteção. Esse fechamento alimentou a percepção de que o sistema político age como uma casta em defesa de si mesma, corroendo ainda mais a confiança pública.
Criou-se, assim, um círculo vicioso no qual o aumento da blindagem reduzia a legitimidade. A aprovação da PEC da Blindagem marcou o ápice desse processo, ao ampliar imunidades parlamentares e dificultar processos judiciais contra deputados e senadores, consolidando a lógica de legislar em causa própria para restringir canais de responsabilização.
Como a história e as instituições são complexas, é preciso reconhecer que, no mesmo período em que se verificou a corrosão da legitimidade das instituições representativas no Brasil, o Congresso Nacional também aprovou marcos importantes na proteção de direitos.
Desde 2013, estiveram entre eles o Programa Mais Médicos, as ações afirmativas em concursos públicos, a tipificação do feminicídio, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), a regulamentação do novo Fundeb, a reforma tributária e a atualização da Lei de Cotas para o ensino superior e concursos públicos, entre outros. Um Congresso que aprova legislações dessa relevância não pode ser reduzido a um ator meramente fisiológico ou completamente alheio aos anseios da sociedade brasileira.
Por outro lado, a Emenda Constitucional da Blindagem revela um Congresso pouco disposto a ouvir. E esse não é o único indício da degenerescência de sua legitimidade. Diante desse bloqueio institucional, torna-se necessário imaginar alternativas capazes de deslocar a lógica da blindagem em direção a um horizonte mais democrático.
2.
Uma inspiração pode ser encontrada na experiência ateniense, em que o sorteio para ocupação de diversos cargos era compreendido como a forma mais igualitária de escolha. Após a reforma de Clístenes, em cerca de 508 a.C., o conselho deliberativo da cidade (Bulé) passou a contar com 500 integrantes escolhidos por sorteio, prática que vigorou por aproximadamente um século.
A aleatoriedade tinha como função evitar a cristalização do poder nas mãos de poucos e distribuir a responsabilidade política entre cidadãos comuns, assegurando rotatividade. Cada pessoa só podia ser sorteada duas vezes ao longo da vida. É preciso lembrar, contudo, que o sorteio estava restrito aos cidadãos atenienses, ou seja, homens adultos, livres e filhos de pai e mãe atenienses.
Apesar dessas limitações, a justificativa do sorteio permanece instigante: ao passo que a eleição pressupõe hierarquia entre “melhores” e “piores”, criando inevitavelmente uma elite, o sorteio encarna a ideia de igualdade democrática ao não estabelecer critérios de seleção. Além do Conselho dos 500, como a Bulé ficou conhecida, o sorteio também foi adotado para a escolha de juízes.
Um modelo utópico inspirado nessa experiência histórica poderia ser construído dentro do marco da Constituição de 1988? Muito provavelmente, o artigo 60, que trata das cláusulas pétreas, especialmente o inciso II – “o voto direto, secreto, universal e periódico” – seria um obstáculo. Mas e se todas as eleições atuais fossem mantidas, alterando-se apenas a forma de escolha dos senadores? Em vez da eleição majoritária por estado, o sorteio por estado. Isso configuraria afronta à Constituição ou seria considerado inviável por ferir cláusula pétrea?
Apenas a tramitação concreta de uma proposta permitiria avaliar como ela seria interpretada pelos órgãos competentes. Para fins de nosso exercício de imaginação institucional, entretanto, consideramos compatível a adoção do sorteio para o Senado Federal dentro dos limites da Constituição de 1988, que não se pretende alterar.
Avancemos um pouco em nosso exercício de imaginação. Seriam duas casas legislativas. A primeira, formada por deputados eleitos, manteria suas funções atuais de formular e aprovar projetos de lei. A segunda seria composta por cidadãos sorteados, com mandatos breves, de dois ou quatro anos, e alta rotatividade, encarregados de exercer o poder de veto. Essa câmara garantiria uma composição que refletiria a diversidade da sociedade brasileira, aproximando a representação institucional de sua base social real.
3.
O funcionamento seria simples. Toda lei aprovada pela Câmara dos Deputados seria submetida à Câmara Sorteada (Senado Federal). Maioria e minoria parlamentares apresentariam seus argumentos, e os sorteados deliberariam com base em informações qualificadas. Se uma porcentagem mínima deles apoiasse o veto, a medida seria barrada e teria de voltar ao Legislativo para ajustes. (O sorteio de 81 pessoas garantiria uma representação da população com 95% de confiança e margem de erro de 11 pontos percentuais.
Nesse arranjo, para que uma lei fosse aprovada, poderíamos exigir um tipo de maioria robusta de 50 votos, equivalentes a 61% das cadeiras). A lógica seria semelhante à do júri popular em que cidadãos comuns, convocados temporariamente, com acesso a instrução e apoio técnico, decidindo em nome da coletividade.
Obviamente nosso exercício de imaginação consegue identificar dificuldades nesse modelo. Os sorteados de todos os estados teriam que se mudar para Brasília, sem que isso fosse um plano de vida deles. Eles teriam o direito de aceitar ou recusar a incumbência ou seriam obrigados a aceitar? Qual proteção trabalhista daríamos a eles? Teriam emprego quando voltassem? E se fossem trabalhadores autônomos, informais? Se tivessem um negócio? Poderiam dar alguma justificativa para recusar? Como é a remuneração durante o exercício do cargo e depois do fim do mandato? Como são cobertos os custos? Seria possível concentrar o exercício das funções em alguns dias da semana e garantir passagens para a volta para seus estados de origem de forma a garantir a convivência comunitária / familiar?
A proposta de iniciar uma experiência como essa em nível nacional é ousada, mas o experimentalismo institucional poderia começar em uma cidade ou em um estado específico. Não precisaria se restringir ao Congresso Nacional: câmaras de sorteados poderiam existir em todos os níveis da administração pública – da União aos municípios, ou mesmo em instâncias locais, como conselhos de bairro, escolas ou unidades de saúde.
Nelas, cidadãos convocados aleatoriamente exerceriam, por períodos curtos, a função de avaliar e vetar decisões de representantes eleitos ou gestores, recebendo remuneração pelo trabalho cívico para não serem prejudicados em sua vida profissional.
Com o tempo, praticamente todo cidadão seria chamado a participar da deliberação pública. A política deixaria de ser monopólio de uma elite profissionalizada e se tornaria parte da experiência comum de viver em sociedade. Em vez de confundir democracia com carreiras políticas, essa prática cultivaria uma cultura pública enraizada na cidadania, na qual cada pessoa, ao menos uma vez, teria exercido de fato a função de governar.
4.
Esse arranjo não substituiria a representação eleitoral, mas a complementaria, oferecendo um contrapeso à tendência de autopreservação da classe política. Diferente dos plebiscitos, que operam de forma agregativa ao reduzir opiniões individuais a um simples somatório de votos e que, por isso, são especialmente vulneráveis à influência da mídia e à desinformação, a Câmara sorteada funcionaria com lógica deliberativa. Em escala menor e com mais tempo para refletir, seus integrantes poderiam escutar argumentos, avaliar informações qualificadas e chegar a decisões coletivas.
Ao mesmo tempo, uma câmara formada por sorteio refletiria de forma mais fiel a composição real da população em termos de raça, classe, gênero e território. A democracia representativa, ao depender da competição eleitoral, tende a se converter numa aristocracia dos que se destacam em algum critério – seja dinheiro, carisma, visibilidade nas redes ou proximidade ideológica. Sempre escolhemos quem parece “melhor” que os demais, e isso se torna ainda mais evidente no sistema de lista aberta da Câmara dos Deputados. O sorteio, em contraste, democratiza a presença, assegurando que cidadãos comuns, em toda a sua diversidade, também participem diretamente da vida política.
Mais perto geográfica e historicamente do que Atenas, o Uruguai tem atualmente uma experiência interessante de poder de veto a partir de plebiscitos populares que podem ser convocados por meio de abaixo assinados depois de aprovada uma lei. Essa possibilidade muda a dinâmica de discussão dos projetos de lei, já que, mesmo após sua aprovação, sempre há o risco de eles serem submetidos ao escrutínio popular se um grupo organizar o questionamento.
Outras propostas de reforma no sistema político também vão no sentido de ampliar a representatividade de mulheres e negros e aumentar a legitimidade dos partidos, como é o caso da lista fechada para eleições proporcionais, proposta que também defendemos. Nos parece que colocar no horizonte o sorteio como possibilidade de alteração institucional possível nos limites da Constituição Brasileira de 1988 seja um convite a pensarmos a sério nos problemas e possibilidades de aperfeiçoamento de nosso sistema político. Este texto é, assim, um convite para pensarmos juntos.
A aprovação da PEC da Blindagem simboliza o auge de um processo de fechamento institucional que distancia representantes de representados. Ainda assim, é fundamental defender a legitimidade das instituições democráticas, pois são elas que oferecem o terreno comum para a disputa de interesses na sociedade. O desafio é reformá-las de modo que deixem de se blindar contra o público e voltem a se abrir ao escrutínio e à participação.
Arranjos utópicos, como a ideia de uma câmara de cidadãos sorteados, cumprem a função de lembrar que a nossa forma de organizar a democracia não é natural. É um desenho institucional que tem uma origem histórica e que pode ser alterado. A democracia pode se reinventar para aproximar novamente a política da vida social.
*Ester Gammardella Rizzi é professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP.
*Márcio Moretto Ribeiro é professor de Políticas públicas na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
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