Um empate

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Por JULIAN RODRIGUES*

Há uma retórica golpista (“autogolpe”) e também um incômodo crescente com Bolsonaro no andar de cima. Saídas políticas, entretanto, não estão na ordem do dia

A crise do neoliberalismo (que agudiza-se desde 2008) mais a catástrofe da pandemia chegam a um Brasil que, a partir de 2016, vive sob um Estado de exceção. O golpe contra Dilma, prisão de Lula e eleição de um governo neofascista e ultraliberal representaram uma derrota histórica para a esquerda e para a luta dos oprimidos.

A iminente depressão econômica mundial se soma, aqui, à recessão econômica que iniciou-se em 2015 ( o PT ainda não fez o balanço sobre o monumental erro que foi a política Levy). Projeções não pessimistas desenham 5% de queda do PIB este ano.

Bolsonaro lidera um governo neofascista que adotou um programa ultraliberal (que soldou sua aliança com as elites financistas, e com a direita “normal”). O neofascismo se constitui em um movimento com base de massas, apoio internacional (Trump/Bannon), além de sofisticadas estratégias e estruturas comunicacionais.

O campo democrático-popular foi deslocado do centro da luta política nacional. O crescente desconforto dos neoliberais com o governo Bolsonaro, explicitado na linha editorial de seus principais órgãos de comunicação mais os movimentos do governo em direção a um fechamento progressivo do regime ocupam o proscênio da esfera superestrutural.

Os duros golpes contra a classe trabalhadora (reformas da previdência, trabalhista, desmonte políticas públicas), a liquidação das estruturas sindicais,  o refluxo da mobilização popular, o ascenso conservador no seio das massas e o desenraizamento das organizações populares se somam aos efeitos da derrota histórica sofrida pela esquerda.

Nos últimos 30 anos o campo democrático-popular apostou em uma estratégia “reformista moderada,  se distanciou tradições socialistas/marxistas, principalmente no campo da teoria, da análise, da formação e da organização. Uma das consequências mais visíveis é certo despreparo  para atuar na conjuntura atual –  de acirramento da luta de classes e ascensão do neofascismo em meio a  um  “Estado de exceção”.

A maioria das direções da esquerda ainda opera mentalmente a partir de pressupostos que seriam válidos em regime democrático-liberal. Ao reiteradamente classificar Bolsonaro com adjetivos morais, psiquiátricos ou ressaltando uma suposta incompetência, as lideranças do PT e do campo popular mostram ainda não ter compreendido  a real  natureza deste governo.Exceção digna de nota é a presidenta Dilma, que tem se destacado pela contundência e precisão de suas análises.

A quarentena limita as possibilidades de atuação dos partidos de esquerda.  Que, entretanto, tem demonstrado capacidade de resistência e efetividade ao apresentar e aprovar propostas no Congresso Nacional –  além de atuação qualitativamente superior nos governos estaduais e municipais que dirige.

Entretanto, o enorme déficit na área de comunicação impede que as ações e projetos do campo popular cheguem às grandes massas. Partidos de esquerda em movimentos sociais seguem praticamente irrelevantes no mundo digital. A internet não é neutra e os monopólios dos gigantes como Google e Facebook  favorecem à ação da direita. O que, por si só, não justifica a hegemonia brutal do bolsonarismo nessa área. Basta ver, por exemplo, a força digital do Podemos na Espanha, um Partido muito menor que o PT.

A despeito do recente surto de lives o campo popular nem chegou perto de começar a entender a guerra travada nas redes sociais. [Um exemplo: Lula tem cerca de 110 mil inscritos em seu canal do Youtube contra os 2 milhões novecentos e vinte mil do Bolsonaro (!!). Ou os 38 milhões do Felipe Neto.] Não há uma estratégia centralizada nacionalmente, profissionalizada (baseada em big data, micro target, construção de rede orgânica de whats app com milhões de contatos, monitoramento de rede, produção de memes, vídeos, etc).

Insuficiente compreensão sobre o neofascismo, mais repúdio absoluto e crescente às políticas genocidas de Bolsonaro – no interior de um cenário onde a esquerda não tem força para polarizar – (acrescidas da ansiedade e sensação de impotência causadas pelo isolamento social) provocaram certa “urgência subjetiva”  permanente nas vanguardas. A sensação de que é preciso fazer algo, se movimentar, reagir. Um grito preso na garganta.

A resposta (imediata e equivocada) tem sido uma sucessão de notas de repúdio  – e adoção de palavras de ordem aparentemente radicais como o “Fora Bolsonaro”, seguidas de iniciativas meramente formais como protocolar pedidos de impeachment junto à mesa da Câmara. É como se palavras de ordem ou proclamações pelo fim do governo magicamente substituíssem a necessidade de longo trabalho cotidiano para repor a presença da esquerda nos territórios, junto ao povo (com ações de solidariedade emergenciais, por exemplo),  ou a premência da reconstrução da comunicação, além do  giro re-organizativo/formativo, mirando não o próximo mês, mas a próxima década.

Descartado o pensamento desejante, fato é que as últimas pesquisas não apontam nenhum “derretimento” do governo Bolsonaro. Mostram sim aprofundamento da polarização. Cresceu o número de brasileiros que consideram o governo ótimo simultaneamente ao percentual dos que acham tudo péssimo.

Aumenta o repúdio ao governo em certos setores, todavia seu índice de aprovação (somando ótimo/bom/regular) continua alto, na faixa dos 55% Bolsonaro perdeu força nas classes médias, no centro. Mas mantém um núcleo consistente de apoio, que não cai do patamar de 30%.

Bolsonaro perdeu cerca de 5% a 7% em virtude da demissão de Moro e contrariedade progressiva das elites neoliberais. Mas segue contando com significativo apoio, uma sólida base que se radicaliza com ele – além de sustentação internacional (Trump, imperialismo) fora sua esmagadora liderança nas redes digitais

Detém sustentação explícita de enormes segmentos das polícias militares e outras forças de segurança. Ademais, as Forças Armadas aparentemente seguem fechadas com o bolsonarismo, ocupando os principais postos no governo federal. Além de tudo isso, o bolsonarismo conta com as milícias e com o fundamentalismo evangélico, o que lhe dá enorme penetração nas classes populares.

Ao  perder sustentação em setores médios (que agora fazem panelaços) o governo Bolsonaro ao mesmo tempo é  alvo de ataques ácidos oriundos grande mídia (Globo à frente) e de estocadas doloridas  dos setores liberais e tucanos do STF (embora Toffoli permaneça fiel governista).

Também aumenta a articulação bolsonarista no Congresso – acenos de recomposição com setores parlamentares da centro-direita tradicional.Assim, ressalte-se:  não existe nenhum sinal objetivo de que a direita neoliberal, os empresários, o capital financeiro tenham retirado seu apoio ao governo. Ou seja: mesmo que critiquem, reclamem e tentem tutelar Bolsonaro, a velha direita, as elites empresariais não romperam com o presidente –  seguem sustentando seu programa ultraliberal, cujo símbolo maior é  Paulo Guedes.

O país assiste ao exponencial aumento do número de mortos pela Covid-19. O impacto dessa tragédia sanitária – objetivamente, a reação social às milhares de mortes (que podem ultrapassar o número de 100 mil) será o fator mais significativo da conjuntura nos próximos três meses. De fato, a principal variável (junto com os efeitos da depressão econômica) que pode alterar qualitativamente o cenário e diminuir a força do bolsonarismo.

A cada dia Bolsonaro aprofunda sua necropolítica. O fascismo historicamente cultua a morte – não há nada de novo nas manifestações aparentemente ensandecidas da base bolsonarista. Ao mesmo tempo: o ex-capitão avança no sentido de restringir as liberdades democráticas, deixando mais nítido seu plano autoritário. Atravessa a pé a rampa para ameaçar o STF.

Ingenuidade e ilusões de setores da esquerda à parte (que sonham com uma espécie de “impixo” civilizatório), Mourão reitera suas convicções autoritárias-  total fidelidade à Bolsonaro. Zé Dirceu está rouco de tanto gritar e alertar: militares não hesitarão  em apoiar um golpe bolsonarista se for necessário.

Há força social para resistir ao tsunami reacionário? Sim. Muita.  Basta mencionar as grandes manifestações de maio de  2019, ou o  repúdio que causa o atual governo entre a juventude. É perceptível um mal-estar, ainda abafado, que pode, futuramente, emergir com força.

Considerando, todavia, esse conjunto de variáveis fica evidente que não se vislumbra em curto prazo nenhuma ruptura. Nem Bolsonaro reúne forças para um golpe, nem a burguesia e o grande capital  decidiram por sua queda. Aliás, mesmo que decidissem, ela não se daria rapidamente –  haveria renhida batalha. Bolsonaro não cairá de maduro.

Portanto,  não há qualquer condição concreta para um processo de derrota imediata do bolsonarismo protagonizada pelo campo de esquerda.  Os defensores da “frente ampla” –  submissão da esquerda à liderança de Rodrigo Maia e quejandos  – tem um dificuldade nada trivial: seus aliados neoliberais não mexem uma palha na direção de depor  Bolsonaro. Nada mais sintomático que o ensurdecedor silêncio do presidente da Câmara nas últimas semanas.

Bolsonaro opera permanente movimento ofensivo. Aprofunda o confronto com as chamadas “instituições”.  Não vai parar.

O ex-capitão aposta tudo em sua política de morte, forçando o fim do isolamento social apelando ao desespero dos milhões que precisam sair de casa todos os dias para garantir a sobrevivência. Apela para a ideia de que mortes (de idosos e frágeis) são um mal menor diante da possibilidade do colapso da economia. Tais ações  – que parecem irracionais-  guardam  lógica intrínseca.

É errado julgar, analisar ou avaliar governos neofascistas a partir de parâmetros utilizados para entender governos conservadores, neoliberais, de direita ou centro-direita. Ao não trocar os óculos se dá um verdadeiro bug  – que trava e borra a compreensão – e  as ações –  de parte das lideranças do campo progressista.

Noves fora a crescente a irritação da Globo, Folha e afins, nunca houve, historicamente, impedimento de presidente que carrega  55%de ótimo/bom/regular.

Nesse sentido, parece mais lógico (e eficiente) insistir na disputa política para adoção de um plano emergencial que fortaleça o SUS, salve vidas , assegure emprego e renda para as maiorias. Ao mesmo tempo, preparando as forças progressistas para a luta nas ruas (assim que for possível) e nas urnas, focando as (até o momento quase esquecidas) eleições municipais

Em síntese: há uma retórica golpista (“autogolpe”) e também um incômodo crescente com Bolsonaro no andar de cima. Saídas políticas, entretanto, não estão na ordem do dia. Prevalece uma espécie de empate. Ao campo progressista serão necessários sangue-frio, profundidade analítica, visão de médio-longo prazo e muito foco na retomada dos laços com o povão e na reestruturação total da comunicação.

*Julian Rodrigues é militante PT-SP; professor, jornalista, ativista de DH e LGBTI.

Publicado originalmente na Revista Fórum.

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