Um lugar para o Brasil na democratização da ciência?

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Por ELEONORA ALBANO*

Reflexões sobre o resgate dos aspectos cognitivos da soberania nacional

“Não sou máquina, não sou bicho, sou René Descartes, com a graça de Deus. Ao inteirar-me disso, estarei inteiro. Fui eu que fiz esse mato: saiam dele, pontes, fontes e melhoramentos, périplos bugres e povoados batavos”. (Paulo Leminski. Catatau).[i]

A aproximação das eleições presidenciais, acalentando anseios de reconstrução do País, me encoraja a retomar uma discussão iniciada em 2019 em um Boletim Especial da Adunicamp sobre o neoliberalismo. O texto, reproduzido no site A Terra é Redonda, versa sobre as ameaças, diretas ou indiretas, à integridade das ciências humanas e sociais no Brasil e no mundo. Nele defendi a visão de que os patrocinadores do golpe de 2016 visavam a abater a soberania nacional não só nos seus aspectos mais óbvios, tais como a matriz energética, mas também em outros, menos salientes e igualmente importantes, tais como a infraestrutura de ciência, tecnologia e educação superior.

Com efeito, o golpe jurídico-midiático-parlamentar solapou a consolidação do BRICS como bloco geopolítico, inviabilizando, assim, um possível projeto conjunto de superação da hegemonia científica e tecnológica do bloco EUA-União Europeia. Os imperialistas sabiam que as nossas universidades públicas estavam aptas a exercer – e, talvez, até liderar – a renovação de ideias e a inovação científica e tecnológica autóctones, graças às suas recentes experiências bem-sucedidas de inclusão social e à sua sólida tradição de ensino e pesquisa em ciências humanas e sociais.

Em 2019 ninguém imaginava que, logo em seguida, uma pandemia viria a tornar esse cenário ainda mais desalentador. Não obstante, hoje, passados dois anos, já adquirimos suficiente perspectiva para detectar aí uma contradição tão surpreendente quanto promissora, a saber: se, por um lado, a Covid 19 fortaleceu as ferramentas coloniais de controle e dominação, por outro, ampliou e diversificou o âmbito das reflexões sobre descolonização.

Atualmente, dois grupos de vozes que, antes, só faziam coro no nicho da saúde coletiva ressoam síncronas em múltiplos foros. De um lado, há filósofos/as e/ou cientistas humanos/as imersos/as na análise da conjuntura; do outro, há cientistas e/ou profissionais da saúde imersos/as na teoria ou na prática do controle, da prevenção e/ou do tratamento da doença. Colaboram, ainda, numerosos artistas cujas intervenções, vocais ou não, reiteram e vivificam o mote compartilhado, a saber: o aumento irrefreado da desigualdade acelera exponencialmente o risco de extinção da nossa espécie.

Como ensinou Anibal Quijano,[ii] a colonialidade está na raiz dos rumos trilhados pelo capitalismo para desembocar nesse prognóstico trágico. Antes, a Escola de Frankfurt[iii] já nos havia ensinado que a ciência e a tecnologia cresceram e prosperaram mergulhadas nas várias fases da ideologia capitalista. Assim, se, por um lado, é animador encontrar focos de resistência, por outro, deve-se admitir que a sua organização é precária e a sua autocrítica, incipiente.

Num conjunto de quatro breves ensaios, a serem postados separadamente, pretendo levantar alguns pontos que me parecem úteis à reflexão sobre o resgate dos aspectos cognitivos da soberania nacional. Trata-se tão só – bem entendido – de uma reflexão persistente sobre a problemática acima delineada. Nada do que se cogita aqui deve ser lido como proposta. É, antes, um esforço para costurar os temas que mais me chamaram atenção desde 2013, à medida que espocavam os indícios do golpe.

O primeiro dos ensaios mencionados é este, que aborda o vínculo histórico entre ciência e utopia, e as suas conotações à direita e à esquerda.

O segundo ensaio abordará a atual recorrência de movimentos pela democratização da ciência – heterogêneos, contraditórios, despolitizados e, como é de esperar, originados nos países ricos.

O terceiro ensaio fará um apanhado das condições e vias possíveis para descolonizar a ciência e a tecnologia no Brasil (e, talvez, no mundo), tendo em vista a exiguidade e a precariedade das experiências até agora disponíveis.

O último ensaio abordará a necessidade de deslancharmos, em breve, uma discussão metódica coletiva da reconstrução do sistema de ciência, tecnologia e educação, a fim de aprofundar e diversificar as questões já levantadas por alguns acadêmicos progressistas.

 

Uma utopia? Mas qual?

Na sua narrativa do estado imaginário da utopia,[iv] Thomas More lançou a ideia de que as aplicações da ciência natural podem produzir um progresso social extraordinário. No século seguinte, Francis Bacon, no seu romance Nova Atlântida,[v] partiu da mesma ideia para descrever uma ilha misteriosa do Pacífico onde a ciência tinha um lugar de destaque. Vale assinalar que a noção de impossível subjaz a ambos os relatos. O termo utopia, cunhado por More a partir do grego, significa ‘lugar nenhum’. Analogamente, o título Nova Atlântida faz referência explícita à lenda do continente submerso.

Na sociedade burguesa, é natural que a ideia de utopia fizesse mais sucesso à direita que à esquerda. Sonhos impossíveis têm um óbvio apelo mercantil.  Por outro lado, entre os combatentes da desigualdade, é estratégico apostar na possibilidade de lutas vitoriosas.

Boaventura de Sousa Santos,[vi] num artigo dedicado a Erik Olin Wright, sociólogo marxista estadunidense precocemente falecido, subverte essa lógica, desenvolvendo, à luz do seu próprio trabalho, uma noção antitética proposta pelo colega, a saber: “utopias reais”.[vii]

Passando em revista os danos que o dualismo natureza/sociedade, vigente desde Descartes, causa ao meio-ambiente e, portanto, à vida e à humanidade, o sociólogo preconiza uma pluralidade de projetos utópicos que tenham em comum o fato de se basearem em conhecimento nascido da luta.

A luta em questão é a dos excluídos de todos os graus – especialmente os mais extremos. No último grau, que o autor situa “abaixo da linha abissal”, estão os milhões de pessoas relegadas a servas ou escravas nos quatro cantos do planeta. Boaventura é peremptório em afirmar que não haverá humanidade plena enquanto restar sequer uma pessoa considerada sub-humana pela sociedade hegemônica, que caracteriza como patriarcal, capitalista e colonialista.

Para não simplificar demais o pensamento de Boaventura, devemos acrescentar que a fronteira entre o opressor e o oprimido não é linear. Num artigo recente sobre a descolonização da história,[viii] ele afirma que a luta concerne uma “dissidência mental e prática que envolva desidentificação com o opressor e deslealdade frente aos seus objetivos de dominação”.[ix] É evidente que essa dissidência é gradiente. Haja vista o comportamento da classe operária nas eleições brasileiras de 2018.

O exposto deve ter bastado para suscitar algumas questões que merecem discussão coletiva no Brasil de hoje. Por exemplo, temos suficientes cientistas sociais capazes de mapear ao menos alguns dos nossos bolsões abissais. Elas/les serão também certamente capazes de organizar e deslanchar os debates necessários sobre as políticas públicas prioritárias nesses redutos.

Numa primeira aproximação, a pergunta é: que políticas públicas poderiam subsidiar a redução da miséria das/os ocupantes da zona abissal? Não me atrevo a responder, porque nunca trabalhei sobre o tema. No entanto, gostaria de acompanhar os debates e, talvez, até de participar deles. Atrevo-me, portanto, a opinar sobre o que tais políticas não devem ser.

Primeiro, penso que não devem ser paternalistas – nem da parte do governo, nem da parte da intelectualidade. Que o governo saiba evitar o assistencialismo. Que os intelectuais saibam respeitar as iniciativas dos líderes das comunidades excluídas de todos os graus.

Segundo, penso que os debates não devem alimentar expectativas de resultados de curto prazo. É evidente que, em um ou dois mandatos presidenciais, só se podem obter resultados no tocante às pessoas que Boaventura situa na “zona metropolitana”, isto é, nos espaços regulados por uma noção de igualdade meramente formal – isto é, os guetos, os cortiços, as favelas, as ocupações, os acampamentos; enfim, a periferia em geral. Nesses redutos, há uma inclusão parcial resultante das lutas em curso, a saber: contra o racismo, contra o machismo, contra o apartheid educacional, contra as LGBT+fobias, etc.

Cabe lembrar que o Brasil já produziu muitos estudos respeitáveis sobre a violência – seja contra a natureza e seus povos guardiões, seja contra os habitantes do campo ou das regiões metropolitanas. As/os autoras/es desses estudos devem ser capazes de desenhar políticas públicas que combatam os crimes contra as “vítimas da exclusão abissal”, na feliz expressão de Boaventura. Suponho que só a descriminalização dessas pessoas – aliada a uma redução dos crimes contra elas – poderia abrir caminho ao reconhecimento pleno dos seus direitos.

Já as metas dos excluídos da zona metropolitana são alcançáveis num futuro próximo, mediado pela universidade pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada – o sonho utópico da academia progressista – o qual nos cabe, agora, defender a unhas e dentes.

Não obstante, por causa dos reiterados ataques à educação, à ciência e à tecnologia por parte dos governos golpistas, não há como avaliar o grau de adesão a esse sonho em cada uma das universidades públicas do país. Por isso, vou tentar argumentar por exemplificação.

Como afirma o reitor da UFBA João Carlos Salles,[x] “podemos encontrar ou inventar o caminho pelo qual se recupera a sacralidade do espaço universitário. Certamente, não por um retorno a medidas elitizantes, mas sim através da compreensão mesma de seu papel como espaço de ampliação de direitos, de boa e eficiente gestão dos recursos, de produção acadêmica de qualidade e do exercício constante de valores universais da humanidade. Devemos, por essa via de produção e formação de um conhecimento socialmente referenciado, recuperar o sentimento de ser a Universidade um espaço não de privilégios, mas sim um lugar ele mesmo privilegiado, em que vocação e profissão se encontram”.

A UFBA, onde o autor está finalizando o seu segundo mandato, deu um exemplo de resistência aos ataques à ciência e à universidade pública perpetrados pelos governos golpistas. Foi nesse espírito que se criaram três novas unidades de ensino e pesquisa, a saber: o Instituto de Computação; o Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação; e o Instituto Multidisciplinar de Reabilitação em Saúde. Foi também nesse espírito que se fez a gestão da pandemia; que se aprofundaram os vínculos com os movimentos sociais; que se obteve sucesso nas avaliações dos cursos pelo INEP e pela CAPES, assim como nas avaliações dos programas de internacionalização pelo PrInt CAPES. Foi ainda nesse espírito que se acolheram eventos engajados emblemáticos tais como: o Fórum Social Mundial de 2018; a Bienal de Cultura da UNE de 2019; e o histórico Congresso UFBA 75 anos, realizado em dezembro de 2021.

Enquanto a UFBA e outras universidades combativas, tais como a UFRJ e a UFMG, ilustravam a resistência e o potencial de inovação social e cognitiva da universidade pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada, o sistema federal de ensino superior, composto de 69 universidades, congregadas na ANDIFES, começava a ser desmontado. Dos 22 reitores nomeados pelo atual presidente, nenhum foi o primeiro da lista tríplice baseada na consulta à comunidade – sendo alguns deles totalmente estranhos à consulta. Não surpreende, pois, que seis desses dirigentes impostos tenham tido a petulância de se desligar da ANDIFES para formar uma associação paralela.

É urgente, portanto, discutirmos o combate ao aparelhamento das universidades públicas pela extrema direita. O STF já decidiu que a atual legislação não permite recurso contra as nomeações contrárias às escolhas democráticas das comunidades universitárias.  Assim, um primeiro passo em direção à utopia da universidade para todos cabe aos juristas progressistas, a saber: sugerir modificações possíveis da lei que garantam o respeito à vontade da comunidade na escolha do reitor. O resto é responsabilidade do parlamento. Nele já temos, além dos oriundos da elite progressista, alguns egressos da universidade pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada – cujo número, esperemos, deverá crescer depois da eleição de outubro.

Já para os acadêmicos em geral, o primeiro passo rumo a essa utopia parece ser a tarefa, nada trivial, de despertar, a curto prazo, uma rebeldia generalizada contra o autoritarismo na universidade. Note-se que, neste caso, não se trata de uma “utopia real” no sentido de Wright e Boaventura. Contamos apenas com a nossa própria consciência crítica e com aquela dos excluídos que já acederam à academia, seja como alunos, seja como servidores docentes ou técnico-administrativos.

É possível que, além dos sindicatos e associações profissionais, as nossas instituições venham a abrigar novos coletivos que nos apontem caminhos novos. É possível, também, que contemos com poetas e outros artistas, residentes ou não, a nos inspirar. Mas não deixemos, nós mesmas/os, de contribuir para a organização dos protestos necessários – e de comparecer aos atos públicos consequentes.

*Eleonora Albano é professora titular de fonética e fonologia do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Autora, entre outros livros, de O gesto audível: fonologia como pragmática (Cortez).

 

Notas


[i] O livro é uma ficção experimental  sobre os delírios que o contato com o Brasil teria causado a René Descartes, se aqui tivesse chegado como membro da missão cultural de Maurício de Nassau.

[ii] Anibal Quijano. Coloniality of Power, Eurocentrism, and Latin America. Nepantla, 2000 v. 1 (3): 533-580.

[iii] Lembremos que, em One Dimensional Man, Herbert Marcuse abordou a contradição entre o lado criativo da natureza humana e a sua sujeição à racionalidade da ciência e da tecnologia, que reduz comportamentos diversos a um sistema universal de pensamento. Já o título Science and Technology as Ideology, de Jürgen Habermas, expressa diretamente a sua tese de sobre a alienação e a reificação produzidas pelo pensamento científico-tecnológico.

[iv] Thomas More. Utopia, Livro II, 1516.

[v] Francis Bacon. Nova Atlântida, 1626.

[vi] Muitos admiradores brasileiros do autor usam o seu prenome. Adotei esse gesto de carinho respeitoso.

[vii] Boaventura de Sousa Santos. The Alternative to Utopia is Myopia. Politics & Society 2020, Vol. 48(4), 567–584.

[viii] Boaventura de Sousa Santos. Some theses on decolonizing history. Seminar 743: Editing History.16-24, July 2021.

[ix] Tradução da autora.

[x] João Carlos Salles. Universidade pública e democracia. São Paulo: Boitempo, 2020, pp. 88-89.

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