Pela lembrança de Rosa e Sandra

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Por ANSELM JAPPE*

Homenagem a duas ativistas recém-falecidas

Seria difícil definir o que é uma pessoa “justa”, mas podemos dar alguns exemplos. Um dos primeiros nomes que me vêm à lembrança é o de Rosa da Fonseca. E é com uma especial tristeza que soubemos de seu falecimento aos 73 anos, no dia 1º de junho, em Fortaleza. Esta mulher, guerreira por natureza, não pôde vencer o câncer. Sua inseparável amiga, Sandra Helena Freitas, conhecida como Sandrinha, outra “justa”, partiu apenas algumas semanas depois: muito mais jovem que a amiga, foi-se mesmo assim, em decorrência de uma parada cardíaca no dia 22 de junho.

A a morte de duas das mais ativas membras do grupo Crítica radical, sediado em Fortaleza, é um duro golpe para a crítica social. Rosa era uma das melhores pessoas que conheci em minha vida, uma figura amável e forte, calorosa e inflexível, e, sobretudo, totalmente altruísta e dedicada apenas às lutas que travava.

Rosa nasceu no ano de 1949 em Quixadá, cidade de médio porte no estado do Ceará, no Nordeste do Brasil – uma das regiões mais pobres, mais marcadas pela dominação oligárquica, mais afligida pelas secas recorrentes, mas, também, uma das mais ricas em suas tradições. Seu pai, português, havia imigrado no começo do século e montara uma padaria. Junto à sua esposa, originária daquela região, tiveram vários filhos. Recentemente, Rosa publicou um relato da vida de seus pais. Se eu tivesse de exemplificar a famosa common decency, evocada por George Orwell, eu poderia mencionar a vida modesta e honesta destas pessoas da pequena burguesia trabalhadora que se sentiam em harmonia com seu mundo. Foram provavelmente eles que transmitiram à filha o desejo de reestabelecer esta harmonia em um mundo onde nada mais era harmonioso.

Este pequeno mundo era profundamente marcado pela religião e, desde o princípio, Rosa teve sua educação encarregada por religiosos. Posteriormente, foram padres próximos à nascente Teologia da Libertação que, em meados dos anos 1960, abriram seus olhos para a realidade social de um Brasil então sob o mando da ditadura militar. Em 1969, Rosa parte para estudar Ciências Sociais na Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza. A crescente tensão entre os estudantes contestadores, dos quais alguns seguiram em direção à luta armada, e o regime militar cada vez mais brutal dominava o cenário.

Rosa engajou-se em uma das raras organizações estudantis legais; nela, ocupou-se do esporte e confrontou o ministro da educação – um militar – em um debate televisionado. Tratava-se, no entanto, de uma fachada, sua verdadeira tarefa era manter contato com diversos estudantes revolucionários forçados à clandestinidade. Como muitas outras pessoas de sua geração, ela passou do engajamento católico (Ação popular) ao marxismo-leninismo. Suas atividades não deixaram, eventualmente, de ser notadas pela polícia. Rosa foi presa e passou dois anos na cadeia, enfrentando numerosas torturas.

Apesar disso, ela não perdeu a coragem e até oferecia apoio a seus companheiros de prisão. Assim que foi libertada, retomou suas atividades revolucionárias, mas agora por um percurso pouco habitual no contexto de sua época. Cética diante dos maoístas que apostavam nos camponeses e desejavam iniciar uma guerrilha no campo, assim como diante dos “foquistas” que defendiam a luta armada nas cidades, tendo como base o proletariado, ela se engajou sobretudo nas comunidades e junto a seus habitantes, cujo número não parava de aumentar naquele período. Eles são melhor classificados como subproletários e eram bastante negligenciados por diferentes correntes marxistas da época.

Enquanto isso, Rosa, que havia se tornado professora, engajava-se no sindicalismo e nas outras lutas “de base”, assim como nas lutas populares que, no final, forçaram os militares a abandonar o poder em 1985. Mantendo distância de uma boa parte da esquerda brasileira, ela se associou à sua ex-professora de sociologia Maria Luiza Fontenele, e a um casal que havia escapado da repressão em São Paulo: Célia Zanetti e Jorge Paiva. Junto a outros militantes, um núcleo estável assim se formou e atravessou diversas formações da esquerda, procurando romper progressivamente com o leninismo e, no fim das contas, com qualquer forma de partido para constituir, a partir de 2000, o grupo Crítica radical, bastante incomum no panorama brasileiro.

Antes de chegar lá, entretanto, em 1986, Maria Luiza Fontenele foi eleita prefeita de Fortaleza – a primeira mulher a dirigir uma grande cidade brasileira e também a primeira prefeitura conquistada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Rosa foi eleita vereadora em 1992. Ela teve, então, a dolorosa surpresa de encontrar um de seus antigos torturadores eleito pela direita, e aceitou correr o risco de ver suspenso o seu mandato quando buscou cassar o mandato de um eleito acusado de estupro (ela estava muito à frente de seu tempo).

Rosa teria sido capaz, assim como muitos outros que resistiram à ditadura, de dar início a uma brilhante carreira política, com os grandes privilégios materiais que são a ela associados no Brasil. Não obstante, ela a desprezou para se concentrar, com seus camaradas, na única coisa que contava a seus olhos: as lutas populares e, sobretudo, a luta das mulheres, em especial contra a violência a elas infligida. Rosa fundou e presidiu diversas organizações importantes no Ceará, e pude constatar frequentemente que ela era uma personagem popular em Fortaleza, constantemente elogiada nas ruas. As lutas ecológicas assumiram igualmente um papel crescente no grupo Crítica radical, especialmente através de uma longa ocupação de um parque público destinado a ser cortado por uma rodovia e, posteriormente, com a fundação de um sítio coletivo que visava conquistar a autossuficiência alimentar. Rosa sempre era a primeira a chegar, a ter um megafone em mãos, a falar alto e forte.

Não se travava, ainda assim, apenas de militância “de base”. Depois de se afastar gradualmente do marxismo tradicional, o grupo “descobriu”, no final dos anos 1990, a crítica do trabalho – apesar de seu forte enraizamento em certos sindicatos de trabalhadores – estudando os Grundrisse de Marx e, na sequência, os escritos de Robert Kurz e a crítica do valor. Ele os difundiu com um verdadeiro entusiasmo, através de seminários e de grupos de leitura, não apenas na universidade, onde organizou eventos importantes e com forte participação internacional, mas, igualmente, nos meios mais “desfavorecidos”, e distribuindo um número recorde de publicações da crítica do valor.

Seus membros propunham libertar-se do trabalho, e não mais libertar o trabalho. Eles abandonaram todas as atividades institucionais e proclamaram, a cada eleição, a “greve do voto”. Em nenhum lugar no mundo tentou-se de maneira tão massiva e continuada associar a crítica do valor a uma atividade prática. Em cada luta engajada, eles procuravam lembrar do fim próximo, e necessário, do capitalismo, do patriarcado, da produção de mercadorias e do valor. Não é preciso dizer que tal esforço nem sempre é bem-sucedido, e que frequentemente existe um hiato entre a teoria radical e as preocupações cotidianas das pessoas comuns.

O que é inesquecível, para aqueles que o testemunharam, é o espírito que reina no grupo (que geralmente conta com algumas dezenas de pessoas), sua solidariedade, sua coesão, sua animação, assim como o amor pela dança e pela música que os habitantes do Nordeste do Brasil consideram como sua característica própria, mesmo em meio à pobreza e à violência presentes na região.

Rosa sempre estava disposta a dançar. Seu sorriso, no entanto, tinha algo de amargo – como se ela não pudesse esquecer nem os males do mundo, nem aquilo que ele lhe havia infligido. Uma forma de austeridade, a disciplina interior, sua dedicação à causa, eram nela sempre perceptíveis. Aliando uma enorme gentileza a convicções de ferro e uma energia inesgotável, Rosa visava, tanto em sua vida como em seu pensamento, aquilo que estava para além do capitalismo.

Foi preciso um câncer para derrubar seu espírito combativo. Em seu leito hospitalar, ela ainda gravou um vídeo no qual chama uma manifestação contra o “presidente fascista Bolsonaro”. Depois de seu falecimento, até mesmo seus adversários políticos a homenagearam. A prefeitura proclamou três dias de “luto” e fala-se em dar seu nome a uma praça. Eu não sei o que ela pensaria de uma tal homenagem.

Rosa não havia constituído uma família, mas era bastante ligada a seus numerosos parentes e mantinha uma amizade inseparável com Sandrinha, nascida em 1966, em Fortaleza. Sandrinha também era de todas as lutas, de todas as iniciativas do Crítica radical, por mais que fosse menos visível, menos flamboyante e, portanto, menos conhecida na cidade do que Rosa. Mas ela era uma outa peça central do grupo, um elemento insubstituível, movida pelo mesmo ardor e pela mesma pureza de Rosa.

Assim, Rosa e Sandra uniram-se a Célia Zanetti, vítima de um câncer em janeiro de 2018. Menos tida à ação pública do que Rosa e Maria Luiza, Célia era, no entanto, um pilar do grupo, que não teria existido sem ela. Com seu marido, Jorge Paiva, formavam um quarteto que, apoiando-se mutualmente durante décadas, levou adiante esta aventura política e intelectual da qual a crítica social sempre deve se lembrar.

*Anselm Jappe é professor na Academia de Belas Artes de Sassari, na Itália. Autor, entre outros livros, de A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. (Elefante).

Tradução: Daniel Pavan.

 

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