Uma “corrupção” necessária

Andrzej Wróblewski, Composição abstrata no. 1504 _ Lavanderia, Década de 1950
image_pdf

Por SLAVOJ ŽIŽEK*

A filosofia é muito mais do que uma disciplina acadêmica – ela é algo que pode, subitamente, interromper o andamento de nossa vida cotidiana e nos deixar perplexos

A história de um trabalhador chinês migrante que traduziu um livro sobre Martin Heidegger, um filósofo alemão do século XX, do inglês para o mandarim, viralizou no mês passado. As pessoas comuns que estudam filosofia poderiam salvar o mundo?

Chen Zi nasceu no ano de 1990 em Jiangxi, no sul da China. Em 2008, depois de ser reprovado em suas avaliações, ele abandonou a universidade, onde estudava matemática, e passou a perambular pelo país por mais de uma década, trabalhando em fábricas para sobreviver.

Apesar de ter que enfrentar exaustivas jornadas de 12 horas de trabalhos repetitivos e debilitantes, Chen, cuja verdadeira paixão sempre fora a filosofia, conseguiu aprender inglês e começou a ler Heidegger. Este ano, enquanto trabalhava em uma fábrica em Xiamen, ele concluiu, ao longo de quatro meses, a tradução para o chinês de Heidegger: uma introdução, livro escrito por um professor de filosofia norte-americano, Richard Polt. Tendo também concluído algumas outras traduções, ele perguntou na internet se alguém poderia ajudá-lo a publicá-las, pois lhe haviam dito que suas chances de encontrar um editor eram mínimas. Quando a mídia descobriu sua postagem, ele se transformou em um tema quente na internet.

Haveria algo de libertador em sua dedicação a Heidegger, ou trata-se apenas de uma falsa alternativa? É fácil imaginar a resposta marxista ortodoxa: trabalhadores na linha de produção não precisam de Heidegger como um antídoto; o que eles precisam é mudar as suas condições miseráveis de trabalho.

Heidegger parece ter sido uma escolha muito ruim para Chen, e por razões óbvias. Após a publicação póstuma, em 2017, de suas anotações particulares nos Cadernos negros, não faltaram tentativas de excluí-lo da lista de filósofos a serem levados a sério, devido a seus laços nazistas e antissemitas.

No entanto, por este mesmo motivo, devemos insistir que Heidegger continua pertinente: mesmo quando o encontramos em seus piores momentos, associações inesperadas se abrem. Em meados dos anos 1930, ele disse: “Existem seres humanos e grupos humanos (negros, por exemplo, como os Cafres) que não têm história… não obstante, a vida animal e vegetal possui uma história milenar e plena de acontecimentos … no interior da região humana, a história pode estar ausente, como é o caso dos negros.” (“Cafre” era, no período do apartheid, um insulto étnico utilizado para se referir aos africanos negros na África do Sul).

São frases estranhas, até mesmo para os padrões de Heidegger: quer dizer que animais e plantas possuem uma história, mas os “negros” não? “A vida animal e vegetal possui uma história milenar e plena de acontecimentos” – mas, certamente, não no sentido heideggeriano estrito de revelação histórica do ente. Além do mais, qual é, então, a situação de países como a China e a Índia, já que eles também não são históricos no sentido específico de Heidegger?

É isso, então? Devemos dispensar o caso de Grant Farred, um notório filósofo negro contemporâneo, nascido na África do Sul e que leciona na Universidade de Cornell, em Ithaca, Nova York, como um simples caso de mal entendimento?

Seu pequeno livro, Martin Heidegger salvou a minha vida, foi escrito em resposta a um encontro racista. No outono de 2013, enquanto Farred varria folhas secas na parte externa de sua casa, uma mulher branca parou e lhe perguntou: “Você gostaria de ter outro emprego?”, obviamente o confundindo com algum jardineiro pago pela família que ela assumira residir naquela casa. Farred respondeu sarcasticamente: “Apenas se você puder equiparar o pagamento com o meu salário de professor na universidade de Cornell.” Para compreender o que ocorreu, Farred se voltou a Heidegger: “Heidegger me salvou porque me deu a linguagem necessária para escrever sobre raça de uma maneira que eu nunca havia escrito antes. Heidegger me permitiu escrever desta forma porque me fez pensar sobre como se pensa.”

O que ele encontrou tão útil em Heidegger foi a noção de linguagem enquanto “casa do ser” – não a linguagem abstrata e universal da ciência e da administração estatal, mas a linguagem enraizada em uma forma de vida particular, linguagem como o meio de uma experiência de vida sempre-única que nos revela a realidade de uma maneira historicamente específica. É fácil imaginar como tal posicionamento permite que um sujeito resista a ser engolido por um universo global de dominação tecnológica. No entanto, é esta a forma de lutar contra o que é frequentemente chamado de “americanização” das nossas vidas? Para responder a essa pergunta, precisamos pensar – e, como Farred aponta repetidamente, foi isso que ele aprendeu com Heidegger – mas não apenas pensar, pensar sobre como se pensa.

Que fique claro, não sou um heideggeriano. O que eu sei, porém, é que vivemos em um momento único que abre caminho para a urgência de se pensar. Não se trata de um tempo de paz que oferece a oportunidade de abster-se confortavelmente em reflexões sobre o mundo, mas de um tempo em que nossa sobrevivência enquanto humanos é ameaçada por diferentes lados: o prospecto de total controle digital que planeja invadir nossas mentes (“cérebro conectado”), infecções virais fora de controle, os efeitos do aquecimento global. Somos todos afetados por essas ameaças – e as ditas “pessoas comuns” o são ainda mais do que as outras.

Portanto, devemos celebrar milagres como aquele envolvendo Chen Zi. Eles demonstram que a filosofia é muito mais do que uma disciplina acadêmica – ela é algo que pode, subitamente, interromper o andamento de nossa vida cotidiana e nos deixar perplexos.

O filósofo francês Alain Badiou abre seu livro A vida verdadeira com a afirmação provocativa de que, de Sócrates em diante, a função da filosofia é “corromper a juventude”, aliená-la da ordem político-ideológica predominante. Hoje, tal “corrupção” é necessária, especialmente no Ocidente liberal e permissivo, onde a maioria das pessoas não tem sequer consciência da maneira como o establishment as controla precisamente nos momentos em que elas parecem ser livres. Afinal, a mais perigosa ausência de liberdade é aquela que vivenciamos como liberdade.

Um populista “livre” que destrói a densa rede social de costumes é realmente livre? Existe uma famosa frase dita por Mao Tsé-Tung nos anos 1950: “Que flores de todos os tipos desabrochem, que diversas escolas de pensamento se enfrentem!” Hoje, devemos dizer: Que Chen Zis de todos os tipos estudem filosofia – pois apenas assim encontraremos uma saída para nossa difícil situação.

*Slavoj Žižek é professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana (Eslovênia). Autor, entre outros livros, de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo).

Tradução de Daniel Pavan.

Publicado originalmente no Portal RT.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES