Por SAMUEL KILSZTAJN*
Comentário sobre o pintor holandes
Vincent Willem van Gogh, este homem movido a paixões, de espírito solidário e irreverente, produziu mais de 900 pinturas e 1.110 esboços e desenhos, além de duas mil cartas (820 das quais foram encontradas). As pinturas foram realizadas em seus dez últimos anos de vida, principalmente nos dois últimos. As obras completas, pinturas, esboços, desenhos etc. estão classificadas em http://www.vggallery.com/. As cartas manuscritas, digitadas no idioma original e traduzidas para o inglês estão disponíveis em https://vangoghletters.org/vg/.
Os quadros de Van Gogh estão entre os mais cobiçados e valorizados do mundo, alguns superando a marca dos 100 milhões de dólares. Mesmos suas cartas são comercializadas a preços vultuosos. Em 2020, o Museu Van Gogh de Amsterdam adquiriu a carta escrita em Arles a Émile Bernard a 1-2 de novembro de 1888, com um adendo de Paul Gauguin, por mais de 200 mil dólares.
O preço por metro quadrado de um Van Gogh supera em muito o metro quadrado de um apartamento em Nova York. Boa parte de seus quadros foram pintados em telas de 72 por 90 cm, ou seja, 0,65 metros quadrados. O metro quadrado de um Van Gogh atinge, portanto, mais de 150 milhões de dólares. Um apartamento de 100 metros quadrados na 5ª Avenida, na altura do Hotel Plaza, pode ser adquirido por uma bagatela de dois milhões de dólares, míseros 20 mil dólares por metro quadrado. Ou seja, o metro quadrado de um van Gogh é 7.500 vezes maior que o metro quadrado na 5ª Avenida.
Todo este economês para falar da cultura e do mercado da arte e dizer que Vincent van Gogh, que vendeu apenas uma de suas mais de 900 obras, passou a vida na miséria, sendo amparado emocional e financeiramente por seu irmão Theo van Gogh, um marchand que apoiou o impressionismo. Vincent pintava (e escrevia) compulsiva e convulsivamente. Vivia para pintar, embora não ganhasse um centavo com isso, ao contrário, gastava sua saúde e o dinheiro do irmão que o sustentava, casa, comida, tintas, pincéis e telas. Sua ansiedade o compelia a pintar de forma frenética.
Era obstinado e obcecado a ponto de ser repelido pelas pessoas que o cercavam, o que ainda o levava a ter que enfrentar a solidão. Louco varrido em vida, transformou-se em um deus da arte depois de morto, dando razão a Aristóteles que inicia A política dizendo que um homem solitário é um monstro ou uma divindade.
Em 23 de dezembro de 1888, quando Gauguin estava vivendo com ele em Arles, Vincent teve a sua primeira crise, que o levou a decepar parcialmente o lóbulo de sua orelha direita. Dois dias antes, em 21 de dezembro, Theo havia pedido o consentimento de sua mãe, Anna von Gogh, para o noivado com Johanna Bonger. O noivado foi celebrado em 9 de janeiro de 1889 e o casamento em 17 de abril de 1889. O filho de Theo e Jo, nomeado Vincent Willem em homenagem ao tio, nasceu em 31 de janeiro de 1890. Em 19 de fevereiro de 1890, Vincent escreveu para Anna van Gogh, “… comecei imediatamente a fazer uma pintura para ele, para pendurar no quarto deles. Grandes ramos de flor de amendoeira branca contra um céu azul”.
Em carta de 16 de março de 1889, Theo havia escrito a Vincent, “Você fez tanto por mim que lamento saber que agora que provavelmente terei dias felizes com minha querida Jo, você certamente terá dias muito ruins.” Em carta de 10 de julho de 1889, Vincent escreveu a Theo e Jo, “Eu temia – não inteiramente – mas um pouco, assim mesmo – que eu era um perigo para você, vivendo às suas custas…” Sentindo-se emocionalmente desamparado e um peso para seu irmão, após recorrentes crises, Vincent van Gogh faleceu em Auvers-sur-Oise a 29 de julho de 1890, aos 37 anos de idade. Theo van Gogh, que era devotado ao irmão, assim como o irmão era devotado à arte, e vivia em Paris cercado por uma profusão de quadros encalhados e imerso em mais de 650 longas cartas deste gênio da pintura, partiu seis meses mais tarde, foi ao encontro do irmão em 25 de janeiro de 1891, aos 33 anos de idade.
Embora oficialmente considerada morte por suicídio, a versão de que o polêmico Vincent foi vítima de um homicídio acidental foi levantada em 1930 pelo historiador John Rewald e, em 2012, por Steven Naifeh e Gregory White em Van Gogh: a vida (Companhia das Letras). A versão de homicídio também é apresentada nos filmes Com amor, van Gogh, de 2017, e No portal da eternidade, de 2018. Em carta a Theo de Saint-Remy em 10 de setembro de 1889, após uma crise, Vincent escreveu que ficou assustado e resolveu se alimentar melhor e decididamente investir em sua saúde, “… procuro me curar no presente como quem gostaria de se suicidar, achando a água muito fria, busca alcançar a margem.”
Além de testemunhos de pessoas de Auvers, há vários indícios que desqualificam a versão de suicídio. Ele saíra para pintar, não possuía arma de fogo e o tiro no abdômen em ângulo oblíquo descartava a possibilidade de suicídio; além disso, todos estes materiais, tela, tintas, cavalete e a arma utilizada jamais foram localizados. Antes de morrer, teria afirmado, em consonância com o seu espírito solidário, que fora suicídio para proteger os adolescentes autores do homicídio acidental. De qualquer forma, a versão de suicídio prevaleceu e continua prevalecendo porque, além de atender à disposição de van Gogh, é consonante com a trajetória de um homem que viveu incompreendido e revolucionou a arte moderna.
Vincent vivia reclamando que precisava urgentemente de modelos que, infelizmente, não tinha condições de pagar. Embora tenha pintado 35 autorretratos e mais de 50 retratos de amigos e conhecidos, nunca retratou Theo van Gogh, ainda que tivessem morado juntos em Paris de março de 1886 a fevereiro de 1888 (há quem defenda, entretanto, que o retrato abaixo seja de Theo). O retrato do Dr. Félix Rey Bust, que cuidou de Vincent em sua primeira crise em Arles, o médico usou para tapar um buraco no galinheiro.
* Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Partir c’est garder son équilibre [https://amzn.to/48lv9G9]
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