Louis Althusser – a crítica da identidade

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Por CELSO FREDERICO*

Considerações sobre o modelo de reflexão dialética proposto pelo filósofo francês

Depois de 1960, a dialética, que até então era glorificada pelo marxismo existencial e pela fenomenologia, passou a ser duramente contestada nos meios intelectuais franceses, num momento em que o estruturalismo tornava-se a corrente hegemônica nas ciências humanas.

Um historiador das ideias atento, como Vicent Descombes, observou que a dialética passou a ser vista como “a forma mais insidiosa da ‘lógica da identidade’. (…). O que os estruturalistas chamam de ‘lógica da identidade’ é a forma de pensamento que não pode representar o outro sem reduzi-lo ao mesmo, que subordina a diferença à identidade. A esta lógica da identidade se opõe um “pensamento da diferença” (DESCOMBES: 1998, p. 105).

Althusser, por exemplo, afirma que “não é possível que uma forma de consciência ideológica contenha em si como sair de si pela sua própria dialética interna, que não há, no sentido estrito, dialética da consciência” (…) a consciência acede ao real não pelo seu desenvolvimento interno, mas pela descoberta radical de outra coisa que ela” (ALTHUSSER: 1967, p. 126).

O marxismo existencial de Sartre valorizava a consciência e as escolhas dos indivíduos – valorizava, assim, a experiência, o “vivido”. Essa relação estreita entre experiência e consciência será duramente criticada por todo o pensamento estruturalista. Separando o conhecimento do “vivido”, Althusser dirá, por exemplo, que a relação dos homens com o vivido se dá no interior da ideologia – esta, portanto, é uma representação imaginária dos homens com suas condições de existência. O fundamento do legado marxiano não deveria mais apoiar-se na práxis ou numa filosofia da liberdade, mas “em uma epistemologia, cuja tese central será a oposição entre a consciência e o conceito” (DESCOMBES: 1998, p. 158).

A filosofia marxista, doravante, abandonado a preocupação com o ser, precisaria tornar-se um discurso científico; e este, dedicar-se a “interrogar o objeto em vez de deixar-se guiar por ele” (p. 159). A ciência, assim, afasta-se da experiência sensível, do vivido, da consciência, do círculo fechado da ideologia. Contra a “lógica da identidade”, que segundo a fenomenologia permitiria o trânsito da experiência para o conhecimento. Althusser, retomando um conceito de Bachelard, propõe o “corte epistemológico”. Não há mais passagem entre o vivido e o conhecimento, (“lógica da identidade”, unidade dos diversos), com a instauração da ruptura epistemológica. A ciência, afirma Althusser, não é um espelho, um reflexo da realidade vivida. Ela não reproduz o objeto: ao contrário, o objeto é construído pelo pesquisador. O conhecimento deve ser entendido sempre como produção, como trabalho sobre uma matéria prima.

A crítica à identidade, no plano epistemológico, insiste na cisão entre ser e pensamento, objeto real e objeto do pensamento, história e lógica, replicando, no pensamento marxista, a lógica binária que caracteriza o estruturalismo. Antonio Candido, a propósito, observou: “Um traço curioso do Estruturalismo é o que se poderia chamar de fixação pelo número 2. A busca de modelos genéricos se associa nele a uma espécie de postulado latente de simetria, que o faz balançar entre o cru e o cozido, alto e baixo, frio e quente, claro e escuro, como se a ruptura da dualidade rompesse a confiança em si mesmo”. Assim fazendo, o estruturalismo se opõe à visão triádica da dialética hegeliana em seu movimento de tese-antítese-síntese, ritmo que “pressupõe equilíbrios fugazes; e isso permite dar conta dos conjuntos irregulares, mantendo um reflexo mais fiel da irregularidade dos fatos, que os esquemas diádicos tendem a simplificar, preferindo à visão dinâmica do processo a contemplação estática dos sistemas em equilíbrio”. (CANDIDO: 2002, p. 51).

Relacionar esse desejo de estabilidade com as metamorfoses do modo de produção capitalista é tema a ser tratado por quem se arriscar a uma história das ideias. Aqui, interessa-nos apenas apontar que, influenciado pela lógica binária, Althusser aproximou o marxismo com o que havia de mais avançado na epistemologia francesa do período: Bachelard, Foucault, Lacan, Canguilhem. Inserindo o marxismo nesse movimento estruturalista renovador, Althusser pretendia dar-lhe um estatuto de cientificidade após tantos anos de estreito relacionamento com as diversas filosofias da consciência.

Se o marxismo é um discurso científico, qual é o seu objeto, qual é a matéria prima sobre a qual trabalha? E ainda: uma vez rompida a ligação entre objeto real e conhecimento, qual a relação entre essas duas esferas?

Althusser enfrenta essas questões voltando suas baterias contra o empirismo e, principalmente, contra Hegel. O empirismo, segundo Althusser, identifica o conhecimento com a abstração. Conhecer é abstrair a essência do objeto real que passa a ser posse do sujeito. Trata-se, aqui, de uma verdadeira extração, à semelhança do ouro que é “extraído (ou abstraído, portanto, separado) da ganga da terra e da areia na qual ele é tomado e contido”. O conhecimento, no empirismo, está, portanto, contido no real como uma de suas partes, tendo por função “separar no objeto, as duas partes existentes nele: o essencial do inessencial”, sendo que “a parte inessencial ocupa todo o exterior do objeto, a sua superfície visível; por outro lado, a parte essencial ocupa a parte interior do objeto real, o seu núcleo invisível”. O conhecimento, nessa perspectiva, pode ser traduzido pela palavra descoberta em seu sentido real: “remover o que recobre, como se retira a casca que envolve a amêndoa, a casca que envolve o fruto, o véu que envolve a moça” (ALTHUSSER: 1979, p. 36 e p. 37).

Essa concepção empirista que entende o conhecimento como uma parte do objeto real (“lógica da identidade”), diz Althusser, está “no cerne da problemática da filosofia clássica” e, “por mais paradoxal que isso possa parecer, na filosofia hegeliana”. E, através dela – para desgosto de Althusser – no pensamento de Marx que, na falta de conceitos novos, apropriou-se do vocabulário hegeliano: aparência e essência, exterior e interior, movimento aparente e movimento real etc.

Salta aos olhos o despropósito da inclusão de Hegel no empirismo. O filósofo, como se sabe, não se furtou a elogiar o empirismo que, diferentemente da metafísica, que buscava a verdade no próprio pensamento, vai encontrá-la na experiência. Essa “ternura pelos fatos”, expressa pelo empirismo e encampada por Hegel, entretanto, é apenas um momento que deve ser superado pela razão dialética que rompe o isolamento dos fatos, sua finitude, ao considerá-los como momentos de um processo. Na lógica, o empirismo comparece na seção dedicada à “segunda posição do pensamento em relação à realidade”. Indo além dessa segunda posição, Hegel afirma: “pensar o mundo empírico significa (…) essencialmente, transformar sua forma empírica e torná-la algo universal: o pensamento exerce uma atividade negativa sobre aquele fundamento; a matéria percebida, quando é determinada mediante a universalidade, não subsiste em sua primeira forma empírica” (HEGEL: 1968, p. 57).

A crítica althusseriana ao empirismo e a Hegel estende-se também para o marxismo existencial: “Não é por acaso que Sartre, e todos os que, sem possuir o seu talento, tendo necessidade de preencher um vazio entre categorias “abstratas” e o “concreto”, cometem esse erro de falar em origem, gênese e mediações. (…). O conceito de mediação está investido de uma última função: assegurar de modo mágico, num espaço vazio, a terra-de-ninguém entre princípios teóricos e o “concreto”, como os pedreiros fazem uma corrente para passar uns aos outros os tijolos” (ALTHUSSER: 1979, p. 67).

A partir dessa crítica generalizada, Althusser reafirma a distinção entre o objeto real (por exemplo, o círculo) e objeto do conhecimento (a ideia de círculo, que não é circular), do mesmo modo que “conhecimento da história não é histórico, tanto quanto não é açucarado o conhecimento do açúcar” (ALTHUSSER: 1980, p. 46). A distinção objeto real/objeto do pensamento é uma das mais complexas da obra de Althusser, aparecendo indicada nos ensaios de Pour Marx, ganhando uma densidade teórica em Ler O capital, em que o tema aparece em diversos momentos, mas sempre com a ressalva de que as indicações são ainda preliminares, e ganham finalmente uma retificação nos Elementos de auto-crítica.

Para os fins de nossa pesquisa, interessa basicamente a escorregadia conceituação apresentada em Ler O Capital em sua insistência em criticar a “lógica da identidade” e em manter distante o pensamento da realidade empírica. “Jamais”, afirma Althusser, “o conhecimento se acha, como o quereria desesperadamente o empirismo, diante de um objeto puro que fosse então idêntico ao objeto real do qual o conhecimento visa justamente produzir… o conhecimento. Trabalhando sobre o seu “objeto”, o conhecimento não o faz então com o objeto real, mas com sua própria matéria-prima, que constitui, no sentido rigoroso do termo, o seu “objeto” (de conhecimento) que é, desde as formas mais rudimentares do conhecimento, distinto do objeto real” (p. 44).

Althusser, em sua insistência em separar o pensamento da realidade, acaba numa raciocínio circular em que o conhecimento parece debruçar-se sobre si mesmo: “é perfeitamente lícito dizer que a produção do conhecimento, que é o peculiar da prática teórica, constitui um processo que se passa inteiramente no pensamento” (ALTHUSSER: 1979, p. 42). Sem o referente, o que validaria a verdade? Não é a adequação entre o pensamento e o real, como tradicionalmente postula a teoria do conhecimento: “a prática teórica é bem por si mesma seu próprio critério, contém precisamente em si protocolos determinados de validação da qualidade de seu produto, isto é, os critérios da cientificidade dos produtos da prática teórica” (p. 62).

Mas, o que seria afinal a matéria-prima do conhecimento, já que ela não é o objeto real? Althusser responde que a prática científica “se funda e se articula nas práticas econômicas, políticas e ideológicas já existentes, que lhe fornece direta ou indiretamente o essencial de sua “matéria-prima” (p. 43). Assim deve-se entender a leitura que Marx fez da economia política, transformando os seus produtos ideológicos, que lhe serviram de matéria-prima, em conhecimento (o que evidentemente só foi possível a partir da revolução teórica empreendida por Marx: a “ruptura epistemológica” com a economia clássica, a adoção de uma epistemologia científica, e a instauração de um discurso científico). Marx não é, portanto, um “continuador” da economia clássica que agregou novos conhecimentos e retificou erros: sua obra rompe com a ideologia, instaura uma nova problemática e propõe um novo objeto.

As páginas iniciais do primeiro tomo do livro Ler O capital são dedicadas ao tema da leitura: a leitura que Marx fez da economia clássica e a leitura que Althusser faz de Marx. No primeiro caso, Marx teria feito duas leituras. Na primeira, acompanhou o discurso de Adam Smith, mostrando seus sucessos e fracassos e apontando suas lacunas e falhas. É só na segunda leitura que Marx aponta a combinação entre os resultados de Smith, suas falhas e lacunas, pois a primeira leitura “não enxerga esse problema, precisamente porque esse problema só é visível enquanto invisível, porque esse problema diz respeito a coisa inteiramente diversa de objetos dados, para os quais bastaria ter vista clara para ver; uma relação invisível necessária entre o campo do visível e o campo do invisível, como um efeito necessário da estrutura do campo visível” (p. 18). Trata-se, assim, da identidade do não-ver e do ver no próprio ver. Essa leitura, que Althusser designa como “sintomal” remete a Freud que, na interpretação dos sonhos, discernia entre o “conteúdo manifesto” e o “conteúdo latente”, mas remete também ao prefácio da História da loucura de Michel Foucault e à ideia que o invisível, produto do visível, é o seu interdito que recalca a reflexão.

Marx, assim, seria um epistemólogo que se manteve distante do mundo empírico. Sua relação com a economia clássica, segundo Althusser, resume-se em denunciar a ideologia e fazer falar o recalcado. Mas Marx, além de se apropriar dos conceitos científicos e mostrar os limites que a ideologia impunha aos seus predecessores, estava atento também ao referente – a realidade da sociedade capitalista expressa também nos dados empíricos. Basta lembrar a atenção dispensada aos relatórios feitos por inspetores governamentais nas fábricas inglesas, os dados estatísticos recolhidos, as informações jornalísticas a que recorreu, sem contar a enquête ouvrière de 1880 (o questionário que elaborou para que os operários discorressem sobre as condições de trabalho vividas no interior das fábricas). Sua obra não é um exercício de exegese epistemológica, restrita à abstração – o pensamento que interpela o pensamento anterior denunciando seu viés ideológico e, através de um corte epistemológico, instituindo o discurso científico.

Mas, assim fazendo, Althusser recalca a distinção feita por Marx no prefácio de O capital entre modo de exposição-apresentação (darstellung) e modo de pesquisa. Somente assim torna-se possível abstrair a fundamentação histórica baseada nos dados do real e transformar Marx num epistemólogo às voltas com o discurso científico autonomizado.

Althusser, em seu horror ao empírico, apega-se à leitura sintomal, aplicando-a aos textos de Marx, autor que, segundo afirma, “não dispunha, na época em que vivia, e não se dispôs a isso enquanto viveu, do conceito adequado para pensar aquilo que produzia: o conceito de eficácia de uma estrutura sobre seus elementos” (p. 29).

Trata-se, como afirma no segundo volume de Ler O capital, de propor a Marx “a questão do seu objeto”. Desse modo, Althusser detecta os silêncios de Marx para obrigar esses silêncios a falar. A plena compreensão da teoria científica de Marx precisou assim esperar muitas décadas até poder ser finalmente compreendida graças à epistemologia francesa dos anos 1960…

*Celso Frederico é professor aposentado sênior da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Ensaios sobre marxismo e cultura (Mórula).

 

Referências


ALTHUSSER, Louis. Análise crítica da teoria marxista (Rio de Janeiro: Zahar, 1967).

ALTHUSSER, Louis. Ler O Capital, 2 volumes.(Rio de Janeiro: Zahar, 1979, 1980).

CANDIDO, Antonio. “A passagem do dois ao três (Contribuição para o estudo das mediações na análise literária)”, in Textos de intervenção (São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002).

COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da razão (São Paulo: Expressão Poular, 2010).

DESCOMBES, Vicent, Lo mismo y lo otro. Cuarenta y cinco años de filosofia francesa (1933-1978), (Madrid: Catedra, 1998).

DOSSE, François. História do estruturalismo, 2 vol. (São Paulo: Ensaio, 1993).

GIANOTTI, José Arthur. “Contra Althusser”, in Exercícios de filosofia (São Paulo: Brasiliense/Cebrap, 1977).

 

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