Por GUILHERME RODRIGUES*
Lutamos pelo acesso universal e gratuito à educação de alta qualidade, e algo assim não será atingido mudando o currículo do vestibular, mas sim abolindo de uma vez por todas a sua existência
Existem certas ocasiões em que um debate, se aprofundando em alguns pontos que podem inicialmente parecer interessantes, acaba deslocado para além do ponto central da crítica, e, por isso, envolvido por um “manto diáfano da fantasia” –para usar das palavras de Eça de Queirós. Esse parece ter sido justamente o caso já famigerado da lista de obras de leitura obrigatória selecionadas pela fundação responsável por elaborar o vestibular da maior universidade da América Latina, a Universidade de São Paulo.
Desde o anúncio feito pela fundação de alteração de tal lista para uma que fosse constituída exclusivamente por textos de autorias femininas, circularam algumas produções aqui e acolá e uma série de argumentos que buscaram, cada um à sua maneira, desenvolver defesas, críticas e levantamentos que questionassem a legitimidade literária da coleção.
Com o seu valor, este debate, porém, parece ter passado ao largo de duas questões que talvez sejam anteriores, colocadas então em segundo plano ou mesmo ignoradas por alguns. Tais questões seriam: (i) o acesso a livros no Brasil; e (ii) o absurdo completo da existência mesma de um vestibular. Se se passar a vista nestes dois pontos, talvez chegue-se à conclusão que seria necessário deslocar tal debate para outro lugar e para outro sentido, enquanto os esforços sejam concentrados em eliminar por completo e de uma vez por todas uma barreira que impede os sujeitos de estudar.
Comece-se afirmando, então, o óbvio: não é fácil acessar livros no Brasil. Em verdade, nunca foi. Nos tempos da colônia havia a virtual impossibilidade pelo impedimento da coroa portuguesa, ao mesmo tempo em que a escassez de papel e tinta para se publicar dificultavam a circulação de qualquer espécie de texto – veja-se, por exemplo, a maneira pela qual circulavam os poemas atribuídos a Gregório de Matos.
Durante o século XIX, o número de livreiros era diminuto demais, de modo que até mesmo um escritor respeitado como Machado de Assis devia servir como publisher de si mesmo[i]. Mais recente, malgrado o número considerável de editoras e a ubiquidade da internet para algumas classes sociais e em alguns centros urbanos, os fatores que envolvem a desigualdade social (sejam eles financeiros ou de outra natureza) dificultam o acesso material ao livro.
É claro que não se trataria, diante de tais dificuldades, de abolir o livro; ao contrário, seria o caso de expandir e espalhar seu uso de modo mais significativo, considerando justamente esta realidade de pauperização, assim levando o objeto-livro em especial a comunidades mais carentes de sua presença. Há de se lembrar hoje quais condições materiais existem que impedem a aproximação ao livro – dados como o número de escolas que têm biblioteca, a quantidade de livros por aluno, o estado precário em que se encontram os materiais e o lugar; não se esqueça também a fome, o trabalho exaustivo, as condições sanitárias inadequadas, a situação de medo constante diante de violência policial e doméstica, dados que, sem dúvida, afetam a possibilidade de um sujeito tomar um tempo para sentar e ler com concentração um romance como As meninas de Lygia Fagundes Telles.
Como instituição de ensino, pesquisa e extensão, não faltam dados nem mesmo pessoas que não somente têm disposição mas também conhecimento para que se tensione a sociedade em direção à ampliação do acesso ao livro, bem como à formação literária das comunidades que podem estar ao alcance dos campi dos nossos institutos e departamentos que cuidam de tais assuntos.
Em outro aspecto do problema, seria o caso de se recordar que, longe da escolha curricular de um vestibular ou outro, o verdadeiro absurdo é a existência de um aparelho cujo funcionamento real é o impedimento de centenas de pessoas ao estudo: o que se faz, em verdade, é proibir alguém de estudar. Vejamos bem: estas pessoas não estão buscando o crime organizado, a exploração sistemática de pessoas em estado de vulnerabilidade, o rentismo próprio daqueles que querem extrair do couro dos outros e da destruição ambiental riquezas para se lançar ao espaço ou explorar o fundo do oceano num traço clássico de megalomania.
Estas pessoas querem apenas estudar. Querem ter acesso a laboratórios, moradia estudantil (por mais precária que seja), alimentação e… bibliotecas. Lá mesmo onde encontrarão o esgotadíssimo Opúsculo Humanitário de Nísia Floresta; além disso, será neste lugar em que poderão aprender francês para ler os textos de Olympe de Gouges, ou inglês para ler Mary Woolstonecraft e Margareth Cavendish. Muitas das oportunidades que a universidade pública oferece e que boa parte dos alunos do ensino básico (inclusive aqueles mais endinheirados das altas classes caracteristicamente medíocres do Brasil) sequer sabem da existência.
Tudo isso que é impedido por este aparelho produtor de sofrimento chamado vestibular – se etimologicamente o termo designa uma entrada, seria interessante observar o que o vocábulo esconde e o que ele materialmente é: uma trava, uma cadeia; um impedimento.
Para aqueles ainda absorvidos pelo realismo capitalista, gostaria de lembrar três fatores. O primeiro deles é que este aparelho desumano não é fruto da natureza e, por isso, não existe em todos os lugares. Há exemplos em países ocidentais e orientais, ricos e explorados, antigos colonizados e antigos colonizadores de acesso ao ensino superior sem qualquer espécie de trava como o vestibular – o mal exemplo, como é comum à educação de um modo geral em todos os níveis, vem dos EUA; lugar em que o ensino, em especial o superior, se torna uma fonte de endividamento virtualmente infinito.
Um segundo ponto seria lembrar que o orçamento anual da Universidade de São Paulo (a maior universidade da América Latina, que conta com cerca de 97 mil estudantes, cinco mil professores e treze mil funcionários técnico-administrativos), gira em torno de R$ 8,6 bilhões; enquanto isso, o dinheiro empenhado para sustentar as Forças Armadas no Brasil, que protagonizaram pela enésima vez desde a fundação da República uma tentativa de golpe de Estado, através do Ministério da Defesa, é de R$ 126,69 bilhões. Ou seja, seria possível sustentar 14 universidades como a USP com tal orçamento.
Por último, gostaria de afirmar que diante da falência de nossos sonhos, a esquerda perdeu até mesmo a capacidade de enunciar nossas propostas para a construção de uma forma de vida igualitária e com poder popular (como vem reafirmando Vladimir Safatle nos últimos anos e, em especial, recentemente em ocasião do lançamento de seu novo livro). Neste sentido é preciso pontuar a todo momento que o que precisamos não é uma faculdade particular que vampiriza seus funcionários e entrega uma educação de baixíssima qualidade, com poucos recursos e praticamente sem nenhum espaço para pesquisa e extensão, para apenas formar mais pessoas que serão brutalizadas no mercado de trabalho.
Lutamos em verdade pelo acesso universal e gratuito à educação de alta qualidade, com bons recursos, bons trabalhadores e bons professores (levando em conta a legião de doutores desempregados ou subempregados no Brasil, não é difícil encontrar pessoal para assumir tais cargos). Algo assim não será atingido mudando o currículo do vestibular, mas sim abolindo de uma vez por todas a sua existência.
*Guilherme Rodrigues é doutor em teoria literária pelo IEL da Unicamp.
Nota
[i] Leia-se neste sentido as últimas investigações de Lúcia Granja.
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