Não queremos estar no mesmo barco

Bill Woodrow, Fósforo, 1994.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ALEXANDRE DE LIMA CASTRO TRANJAN*

O grito pela opacidade contra a ideologia da união de classes

1.

Soa belo e nobre todo discurso que pregue alguma espécie de união solidária entre indivíduos e grupos de diferentes identidades. Um ideal comunitário, em especial sem um fim muito definido – melhor falar pura e simplesmente em algo vazio, como o “progresso da nação” ou “colocar o país acima de tudo”. É muito bonito, sem dúvidas, querer que andemos de mãos dadas rumo a um futuro melhor. De Mussolini a Bolsonaro, mas passando por John Lennon, sempre foi comovente o discurso de que, independentemente de raça, cor, religião ou condição social, devemos nos unir em prol de um ideal comum — construído em torno, é claro, do projeto político pessoal e familiar de seus propagadores (talvez o Beatle não deva ser aqui inserido).

Evidentemente, não é a paupérrima retórica dos fascistas que encanta — aqui também não falamos da bela canção Imagine. A sedução da ideologia da união de classes pelo bem comum vem de outro lugar. Mais precisamente, da noção de que, com um simples ato de boa vontade, podemos nos livrar das profundas diferenças que nos separam. E, mais do que isso, que conseguiremos fazer com que o Outro abrace nosso norte político simplesmente porque, a partir do momento em que o aceitemos como nosso similar, ele já deverá se sentir parte de nosso grupo e, portanto, pensar como nós. Não importa se você é gay, abrace nossa histeria intolerante![i] Não ligamos para o fato de que você é asiático, contanto que ria conosco de nossas piadas sobre seu falo que supomos diminuto![ii] Tudo bem que você é negra, afinal meus filhos são bem educados o bastante para não namorar com você![iii]

É muito divertido pensar que, se dissermos para o objeto de nosso ódio e sarcasmo que ele pode se unir conosco, automaticamente ele não terá mais motivo para enxergar a barreira, o muro branco deleuziano, que nos separa. E, com isso, ganhamos o trunfo de poder dizer que, quando ele declara de alguma forma a existência dessas divisões, é ele quem está forçando esse tipo de ruptura. Solução Morgan Freeman para conflitos sociais: a apenas uma manobra discursiva de você!

O mais importante, nisso tudo, é que as divisões de que tanto falamos não são horizontais e, portanto, passíveis de solução por um mero ato pio de união. A própria colocação da questão como um problema de distinções horizontais já é um discurso que legitima o não-fazer-nada a respeito delas, já que o problema se torna a falta de interesse do Outro de ser nosso amigo. Ora, qualquer leitura mais ou menos científica da sociedade nos traz a noção da verticalidade dessas diferenças. O racismo, a LGBTfobia, o machismo, a xenofobia, em suma, a luta de classes são, todas elas, relações de dominação calcada em uma conflituosidade latente ou literal. Não se trata de uma mera distinção, de uma simples discordância, ou ainda de modos de vida diferentes. São questões de subjugo e opressão que, por óbvio, ao contrário do que insistem justamente os privilegiados pela manutenção desse status quo, não podem ser superados sem alterações sociais estruturais[iv].

 

2.

Quem teve a oportunidade de visitar a 34ª Bienal de Arte de São Paulo pôde encontrar um auditório em que era apresentado um filme que trazia uma entrevista com Édouard Glissant. Nela, falava-se acerca do Droit à l’opacité (direito à opacidade), uma inspiração para os povos marginalizados na dinâmica internacional do capital à não submissão aos paradigmas das potências centrais, colocados em termos de transparência, esta que consiste em um querer-entender o outro a partir de seus próprios paradigmas conceituais e culturais. Opondo-se a isso, opacidade é o não-querer-se-fazer-entender, a ser-como-se-é à revelia do entendimento alheio, construindo uma singularidade independente, e mesmo contrária, à construção ideológica das subjetividades operada no modo de produção capitalista.

É irônico quando Glissant cita um comentário que ouviu a respeito de seu trabalho: “então precisamos ir à ONU reclamar nosso direito à opacidade!”. Ora, a lógica das Nações Unidas, dos Direitos Humanos e afins, é exatamente a da transparência, da pretensão de subsunção de todas as peculiaridades regionais e sociais a uma lei universal. Pedir a ela que reconheça o direito a ser opaco já é, em si, uma atitude de transparência, de “veja como eu posso me enquadrar na sua lógica se você reconhecer ao menos minha existência”. Tal é a dialética da luta por direitos, de maneira geral: construir uma barreira contra a opressão através do próprio sistema (o jurídico) que serve a ela, ainda que tenha certa serventia prática, apresenta um horizonte por óbvio limitado à própria lógica estrutural de tal estrutura opressiva que, em última análise, é advinda do modo de produção capitalista[v].

Com o discurso da união de classes não é a mesma coisa? Claro, entre um liberal universalista onusiano e um fascista, há diferenças significativas, apesar da base material comum. Mas o discurso da superação das diferenças em torno de um ideal comum é constante no que diz respeito exatamente à sua ideologia conciliatória a que subjaz a dominação. Não se trata, para grupos oprimidos e marginalizados, simplesmente de uma união harmoniosa com seus dominadores, mas sim a própria aceitação de sua condição subalterna. Não, não queremos nos unir pelo Brasil de vocês.

*Alexandre L. C. Tranjan é graduando em direito na Universidade de São Paulo (USP).

 

Notas


[i] https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/10/30/interna_politica,1318523/bolsonaro-ninguem-gosta-de-homossexual-a-gente-suporta.shtml

[ii] https://istoe.com.br/video-tudo-pequenininho-ai-diz-bolsonaro-para-oriental-em-aeroporto/

[iii] https://oglobo.globo.com/politica/bolsonaro-diz-na-tv-que-seus-filhos-nao-correm-risco-de-namorar-negras-ou-virar-gays-porque-foram-muito-bem-educados-2804755

[iv] Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do Real! – cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003.

[v] Falei em tom um pouco mais otimista sobre esta questão, especificamente no que diz respeito aos direitos trabalhistas, em https://aterraeredonda.com.br/legislacao-trabalhista-uma-trincheira/. Para a crítica geral ao direito, é basilar: PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Hans Kelsen e o eros platônicoplatão 16/10/2024 Por ARI MARCELO SOLON & LEONARDO PASSINATO E SILVA: Para Kelsen, a doutrina política platônica está calcada na homossexualidade do filósofo, circunstância que explicaria uma tendência totalitária do projeto filosófico platônico
  • Genocídio sem hesitaçãoemaranhado 17/10/2024 Por ARUNDHATI ROY: Discurso de aceitação do prêmio PEN Pinter 2024, proferido na noite de 10 de outubro de 2024
  • A longa marcha da esquerda brasileiravermelho 371 19/10/2024 Por VALERIO ARCARY: Nos dois extremos estão avaliações de que ou a esquerda “morreu”, ou que ela permanece “intacta”, mas ambos, paradoxalmente, subestimam, por razões diferentes, o perigo bolsonarista
  • Influencer na Universidade públicapexels-mccutcheon-1212407 21/10/2024 Por JOHN KENNEDY FERREIRA: Considerações sobre a performance na Universidade Federal do Maranhão.
  • Forma-livreLuizito 2 20/10/2024 Por LUIZ RENATO MARTINS: O modo brasileiro de abstração ou mal-estar na história
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • A tragédia sem farsaestátua 17/10/2024 Por BARUC CARVALHO MARTINS: Breves comentários sobre a derrota da esquerda na eleição municipal
  • Van Gogh, o pintor que amava as letrasfig1samuel 12/10/2024 Por SAMUEL KILSZTAJN: Van Gogh costumava descrever literalmente seus quadros em detalhes, abusando de adjetivar as cores, tanto antes de pintá-los como depois de prontos
  • O belicismo de Sir Keir Starmer, o trabalhistabélico uk 18/10/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Sir Keir Starmer já conseguiu superar o chanceler alemão Olaf Scholz como a liderança mais belicista dentro da Europa, em relação à escalada da Guerra na Ucrânia

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES