Por DAVI R. MARTINS*
O sistema prisional consolida-se como a zona de exceção permanente onde a humanidade é revogada, transformando corpos indesejados em objetos dóceis sob o poder biopolítico do Estado
O encarceramento em massa e a crise prisional tornaram-se tópicos proeminentes em discussões sobre justiça e direitos humanos em muitos países, inclusive no Brasil. O rápido crescimento exponencial da população carcerária em décadas recentes, combinado com as terríveis condições das prisões e as políticas de criminalização contra as mais vulneráveis populações, como a negra, mostra uma estrutura de poder que vai além da simples punição pelos crimes cometidos.
Nesse sentido, pode-se examinar a atual crise das prisões à luz do conceito foucaultiano de biopolítica, referindo-se à descrição de Michel Foucault da relação do poder moderno não com a morte, mas com a vida dos indivíduos e populações. Ao mesmo tempo, o conceito de estado de exceção elaborado por Giorgio Agamben explica o mecanismo por meio do qual certas populações, especialmente negras e pobres, são empurradas para a margem da sociedade legal e tratadas como vidas descartáveis no sistema prisional. Neste artigo, busco argumentar que o encarceramento em massa constitui uma manifestação contemporânea da biopolítica, enquanto o sistema prisional funciona como um lugar de estado de exceção, um espaço em que os direitos são suspensos e a violência se torna ‘’tão natural quanto a luz do dia’’ (CHORÃO, 1999).
Biopolítica
A biopolítica, conceito desenvolvido por Michel Foucault, refere-se a um modo de poder moderno que opera sobre a vida das pessoas, controlando e regulando as populações. A forma de poder que havia antes, por exemplo, era percebida nas práticas soberanas, como a execução dos condenados em praça pública, porém agora se apresenta de modo mais sutil e diretamente sobre os corpos e mais amplamente sobre a vida coletiva da sociedade, regulamentando esta por normas e políticas de administração da vida.
No entendimento de Michel Foucault, a partir do século XVIII, o poder se transformou: passando a se preocupar menos em apenas reprimir e mais em organizar, gerenciar e otimizar a vida, além de não mais pretender simplesmente castigar seus indivíduos a partir do crime de cada um, mas sim regular e controlar a vida de todos. Essa transformação, Michel Foucault a descreve em sua obra História da sexualidade como uma ‘’entrada da vida no domínio do poder’’, o que significa que as instituições passaram a passaram a buscar controlar todos os aspectos da vida: nascimento, morte e saúde das populações.
O sistema penal moderno é uma das mais claras expressões da biopolítica. De acordo com Michel Foucault, o sistema prisional constitui um “sistema de controle permanente”, voltado para moldar os corpos e a mente dos internos (FOUCAULT, 1975). O encarceramento em massa, notadamente de populações vulneráveis, como os jovens negros e pobres, evidencia que o sistema penal consiste em um meio de controle social, na medida em que exclui e torna criminosos alguns grupos.
A prisão não é apenas uma instituição de reclusão, mas um artefato que opera para manter essas populações sob vigilância e afastá-las da sociedade. Por isso, o sistema carcerário moderno talvez possa ser melhor entendido como uma manifestação da biopolítica, pois não apenas retira os sujeitos do convívio social, mas também regula suas vidas, impondo sobre eles uma disciplina que busca ‘’socializa-los’’, conforme os interesses do Estado.
Estado de exceção
O conceito de Estado de exceção foi introduzido pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, a partir da obra de Carl Schmitt. O Estado de exceção é uma situação em que, em razão de crises e ameaças, o Estado suspende temporariamente as leis e o funcionamento da normalidade do direito. Neste quadro, o soberano (quem detém o poder) vale-se do direito de agir fora da lei, justificando situações de exceção a partir da necessidade de garantir a ordem pública.
Giorgio Agamben observa que o Estado de exceção, embora apareça como uma situação temporária tende a se transformar em uma norma “permanente”, uma zona indefinida em que a aplicabilidade do direito se torna desigual ou, ainda, o direito se suspende na sua plenitude. O conceito de Estado de exceção é particularmente adequado para o âmbito prisional, pois é o retrato da maneira pela qual certos grupos — em especial, jovens negros, pobres e marginalizados — são tratados diferentemente pela lei.
Eles são frequentemente submetidos a processos de violência e exclusão que se aproximam do que Giorgio Agamben conceitua como “homo sacer“, que se refere a uma figura da Roma Antiga: um indivíduo que poderia ser morto, sem crime, mas que nunca poderia ser sacrificado. No estado de exceção moderno, o homo sacer é exatamente o sujeito cuja vida pode ser relegada, ao arrepio da ordem jurídica, pois são vistos como seres mais dispensáveis, ou simplesmente dispensáveis, a ordem social.
No contexto prisional, isso se configura no fato de que estas populações estão sujeitas a condições desumanas, frequentemente sem despertar uma grande reação ou indignação pública. O tratamento brutal, a violência estatal e as condições desumanas se tornaram (norma)l no sistema carcerário de muitos países, como o Brasil.
O sistema prisional como controle de populações
De acordo com Giorgio Agamben, o sistema prisional pode ser caracterizado como um dos principais dispositivos de biopolítica em nossos dias. Este conceito foi trabalhado, igualmente, por Michel Foucault, e se refere ao modo como o poder moderno se manifesta, essencialmente, na regulação e controle da vida das pessoas. Segundo Foucault (2014), “o poder disciplinar, ao contrário do poder soberano, que se exercia de maneira visível e espetacular, é um poder que se faz presente de maneira difusa e contínua, sendo aplicado por uma multiplicidade de instituições, entre elas, a prisão.”
Assim, o encarceramento em massa não apenas retira indivíduos do convívio social, mas também regula suas vidas de forma rigorosa, impondo sobre eles uma disciplina que visa moldá-los para que se conformem às normas impostas pela sociedade. A prisão, então, não é um espaço meramente punitivo, mas um dispositivo que visa transformar e docilizar os corpos. A explosão da população de presos nos últimos anos no Brasil revela nesse contexto o caráter biopolítico do sistema penal.
A maioria dos detidos é constituída por jovens, negros e de baixa renda, e é uma prova da criminalização seletiva das populações, já marginalizadas. O sistema penal não se limita a isolar os indivíduos transgressores, mas se torna um instrumento de exclusão de segmentos populacionais a quem a ordem social considera ‘indesejáveis’.
Como afirma Wacquant (2001), “o crescimento das prisões nos Estados Unidos e outros países não é somente uma resposta ao crime em ascensão, mas uma estratégia deliberada de contenção e regulação das populações pobres e racialmente estigmatizadas”. Essa função de controle das populações, como referida por Foucault, traduz o conceito de biopolítica, que se relaciona com o poder sobre a vida, que visa conduzir e disciplinar a vida do homem em seus aspectos mais fundamentais. A prisão é uma das mais evidentes manifestações de tal controle, em que literalmente os corpos são confinados, monitorados e disciplinados.
O “direito de punir” moderno, para Foucault, não se relaciona mais a uma ‘punição’ como retribuição, vingança, mas sim como um meio de fazer política sobre a vida dos indivíduos. Ele diz que “punir é dirigir, e administrar a vida o comportamento” (FOUCAULT, 2014, p. 31). Outrossim, o conceito de “estado de exceção”, como o descreve Giorgio Agamben (2005), é o sistema penitenciário que se tornou um espaço em que as leis do Estado foram suspendidas, e os presos viveram num estado de exclusão e destituição dos direitos humanos.
O Estado de exceção no sistema carcerário
O sistema carcerário, tal como se encontra no Brasil, pode ser traduzido por meio do conceito de “estado de exceção”, descrito por Giorgio Agamben, que postula uma realidade de suspensão da lei para alguns indivíduos ou grupos. No domínio do encarceramento, isto significa que os encarcerados, especialmente aqueles das minorias raciais e sociais, encontram-se em uma realidade onde seus direitos são suspensos ou violados. As prisões, portanto, se apresentam como espaços de exceção de permanente natureza, nas quais o Estado desenvolve o controle total e a violência de direitos fundamentais tornaram-se comum.
A brutalidade policial encontrável nos casos precedentes ao encarceramento em massa é um dos principais exemplos deste estado de exceção. As populações marginalizadas (negras e pobres) são as preferidas das políticas de violência do Estado e que evidenciam um processo de criminalização contínua de tais comunidades. O conceito de “vida nua” formulado por Agamben é crucial para compreender como o sistema prisional desumaniza as pessoas que estão encarceradas.
Como argumenta Agamben, o homo sacer é uma figura que pode ser morta, ou deixada viver, sem que sua morte comporte consequências jurídicas ou políticas. No interior das prisões, os prisioneiros, em especial aqueles das minorias raciais, vivem como “vidas nuas”, despojadas de qualquer proteção do Estado e tratadas como seres sem plenos direitos; suas vidas são tratadas como descartáveis e a lógica perpetuada pelo sistema prisional é a de que eles devem ser privados até das mais mínimas condições de dignidade e justiça.
A violência institucionalizada das prisões é outra clara manifestação desse estado de exceção. O sistema prisional não só tolera como legitima a violência como meio de manutenção da ordem. A força física e psicológica utilizada pelos guardas prisionais (no Brasil chamados de agentes penitenciários) em combinação com a complacência do próprio sistema de justiça, é a forma encontrada por estes agentes para subjugar os encarcerados. O silêncio a respeito dessas práticas denota que o Estado de exceção se encontra em pleno funcionamento, visto que a violência torna-se parte intrínseca da estrutura prisional. Wacquant (2001) assinala que “as prisões se tornaram uma espécie de zona de guerra social, onde as regras normais da sociedade civil não se aplicam”.
Considerações finais
As ideias sobre as prisões, pensando nos temas de biopolítica e estado de exceção, mostram bem quanto o prender gente em massa no Brasil é um jeito de manter controle social e deixar certos grupos por baixo. A prisão, mais que um lugar para punir, virou um meio para disciplinar, guiar e manter controle sobre os corpos, mais ainda os dos negros e pobres, que sempre foram marcados. O conceito de “homo sacer“, de Agamben, serve para ver como essas pessoas são vistas como vidas que não importam, jogadas fora e tratadas como menos gente.
Com isso, é vital pensar de novo sobre o tipo de justiça que não só isola, mas também oprime e machuca, tratando seres humanos como se fossem só números. A crítica ao sistema prisional vai além da necessidade de reforma, ela exige uma reavaliação profunda da forma como a sociedade encara o papel do Estado em relação às populações marginalizadas. Somente com esse reconhecimento poderemos vislumbrar um futuro onde a justiça se oriente pela dignidade humana.
*Davi R. Martins é graduando em direito na Universidade Federal do Pará (UFPA).
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
CHORÃO. Céu azul. [S.l.]: BMG Ariola, 1999. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chorao/ceu-azul. Acesso em: 27 out. 2024.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 38. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
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