Por THIAGO DE OLIVEIRA MACHADO*
A democracia digital exige não apenas conectividade, mas também regulação, educação crítica, soberania tecnológica e capacidade de organização coletiva
Introdução
A participação social é um dos pilares de qualquer democracia viva e ativa. Tradicionalmente articulada por meio da militância partidária, dos movimentos sociais, das organizações da sociedade civil e da ocupação dos espaços públicos, essa participação tem assumido, nas últimas décadas, novas formas impulsionadas pelas transformações tecnológicas e culturais. Em especial, com o advento das redes sociais digitais, observamos uma mutação nos modos de engajamento e mobilização social, que coloca em questão os modelos clássicos de ação política.
Neste cenário, emerge um novo sujeito político, conectado, instantâneo e multifacetado, representado sobretudo pelas camadas mais jovens da população – a chamada Geração Z. Esse grupo, formado por nativos digitais, compreende as redes sociais não apenas como plataformas de entretenimento, mas também como arenas de debate, formação de opinião, contestação e, em muitos casos, de articulação de ações coletivas. Assim, o artigo busca refletir sobre como a participação social tem sido ressignificada a partir do uso das redes sociais, problematizando os efeitos dessa transformação sobre a democracia, a cidadania e o papel das instituições políticas.
Para tanto, o presente texto dialoga com referenciais das ciências sociais, da ciência política, das ciências humanas e da geografia política, buscando articular a teoria à prática concreta da mobilização digital. Parte-se da premissa de que compreender as transformações na cultura política contemporânea exige atenção tanto aos mecanismos clássicos de participação quanto às novas dinâmicas mediadas por tecnologias digitais.
Cidadania e participação
A participação social, em seu sentido mais amplo, pode ser entendida como a atuação dos indivíduos na esfera pública com o objetivo de influenciar decisões coletivas e promover transformações sociais. T.H. Marshall (1967), ao discutir o conceito de cidadania, propõe sua divisão em três dimensões fundamentais: a cidadania civil (direitos individuais, como liberdade de expressão), a cidadania política (direito à participação política, como votar e ser votado) e a cidadania social (direito ao bem-estar, como saúde, educação e trabalho). A efetivação dessas três dimensões é condição para a realização plena da democracia.
Entretanto, autores como Pierre Bourdieu (1990) e Boaventura de Sousa Santos (2002) nos alertam para o caráter desigual dessa participação. Para Pierre Bourdieu, o capital cultural e o capital social influenciam diretamente a capacidade dos sujeitos de acessar os espaços legítimos de participação. Já Boaventura propõe a ideia de “democracia de alta intensidade”, que depende da ampliação dos canais participativos para além dos mecanismos representativos tradicionais, como eleições.
No campo da geografia política, Milton Santos (1996) destaca a relação entre território, técnica e informação, e como os fluxos informacionais moldam a vida social. Nesse sentido, o espaço digital aparece como um novo território de disputa política, no qual as redes sociais funcionam como ferramentas de territorialização simbólica e de articulação de ações. Esse espaço, por ser menos institucionalizado, tende a ser mais acessível para grupos historicamente excluídos dos canais tradicionais de poder – embora também possa ser colonizado por interesses econômicos e políticos hegemônicos.
Assim, discutir a participação hoje implica revisitar os fundamentos clássicos da cidadania e da ação coletiva, mas também reconhecer que vivemos uma era de reconfiguração desses conceitos. A internet e, particularmente, as redes sociais, surgem como um novo campo de possibilidades e contradições, onde se manifesta uma forma emergente de engajamento: a participação em rede.
A emergência das redes sociais como ferramenta de mobilização
Com o avanço das tecnologias de informação e comunicação, especialmente após a popularização dos smartphones e o acesso massivo à internet, as redes sociais passaram a desempenhar um papel central na vida cotidiana e, consequentemente, na organização social. Plataformas como Instagram, X (antigo Twitter), TikTok, Facebook e WhatsApp se tornaram, além de espaços de sociabilidade, arenas de disputa política e mobilização social.
A socióloga Zeynep Tufekci (2017), em sua análise sobre os protestos do século XXI, destaca que as redes sociais permitem uma mobilização “sem organização”, ou seja, sem a mediação de instituições tradicionais como sindicatos ou partidos políticos. Essa característica permite que causas diversas ganhem visibilidade de maneira rápida e descentralizada. No entanto, Tufekci também alerta que essa facilidade de articulação não substitui a construção de estratégias de longo prazo e a consolidação de lideranças políticas, o que pode comprometer a sustentabilidade das lutas.
Na mesma direção, Manuel Castells (2013) argumenta que vivemos a era das “redes de indignação e esperança”, onde as redes digitais têm a capacidade de catalisar sentimentos difusos em ações concretas. Exemplo disso foi o movimento Occupy Wall Street (2011), a Primavera Árabe (2010–2012), e as Jornadas de Junho no Brasil (2013), que se organizaram em grande medida pelas redes sociais, evidenciando seu potencial de mobilização.
Contudo, o espaço digital é também marcado pela dispersão, pela superficialidade e pela lógica algorítmica que favorece a viralização de conteúdos sensacionalistas. A efemeridade das pautas, a fragmentação do discurso político e o fenômeno das fake news são sintomas de uma nova ecologia informacional que impacta diretamente a qualidade do debate público e a formação da opinião política.
A disputa política nas redes – o caso brasileiro
O caso brasileiro oferece um exemplo emblemático do poder das redes sociais na disputa política. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 representou uma virada na forma de fazer política no país, com uma campanha baseada majoritariamente em estratégias digitais, desintermediação da mídia tradicional e uso intensivo de mensagens direcionadas por meio do WhatsApp e do Facebook.
Pesquisadores como Esther Solano e Pablo Ortellado demonstram que a base bolsonarista soube explorar com eficiência as brechas dos sistemas algorítmicos para propagar conteúdos virais, muitas vezes baseados em desinformação. A desinstitucionalização da política tradicional foi acompanhada por uma nova forma de comunicação direta, emocional e polarizadora, que capturou o ressentimento de parte expressiva da população.
Enquanto isso, setores da esquerda enfrentaram dificuldades para se adaptar às novas lógicas das redes. A dependência dos meios tradicionais, a comunicação burocratizada e a dificuldade de dialogar com a linguagem da cultura digital afastaram segmentos importantes, sobretudo os mais jovens. A ausência de um “imaginário digital” progressista permitiu que as redes fossem hegemonizadas por discursos conservadores.
Essa assimetria comunicacional revela que não basta estar presente nas redes: é necessário compreender sua lógica, seus códigos culturais, suas estéticas e suas gramáticas. A política digital exige rapidez, criatividade, afetividade e capilaridade – elementos que demandam uma renovação nas formas de atuação política e institucional.
A Geração Z
A chamada Geração Z, formada por jovens nascidos a partir do final dos anos 1990, é o primeiro grupo social verdadeiramente nativo digital. Cresceram conectados, com acesso a múltiplas fontes de informação, expostos a discursos plurais e contraditórios. Essa geração desenvolve formas próprias de se engajar politicamente, que muitas vezes escapam aos formatos tradicionais da militância.
Estudos em ciências sociais aplicadas indicam que o engajamento dessa geração está mais ligado a causas do que a ideologias. A luta por direitos LGBTQIA+, o combate ao racismo, a pauta ambiental, o feminismo e o anticapacitismo são temas que mobilizam jovens por meio de vídeos curtos, memes, desafios e outras linguagens da cultura digital.
Embora essa forma de participação seja, por vezes, criticada como “superficial” ou “instantânea”, é preciso reconhecer que ela traduz um novo modo de ser político, que valoriza o engajamento simbólico, a performance digital e o ativismo de rede. A filósofa Judith Butler (2004) já apontava para a dimensão performativa da ação política, em que o corpo, a imagem e a linguagem se tornam instrumentos de resistência.
Portanto, a questão central não é julgar a “profundidade” da participação, mas entender os códigos dessa nova cultura política. Ignorar isso significa perder a oportunidade de mobilizar uma geração que, embora crítica e conectada, carece de estruturas de acolhimento político mais horizontais e abertas à inovação.
Considerações finais
A participação social na era das redes digitais não substitui as formas tradicionais de mobilização, como as manifestações de rua, os conselhos participativos, os partidos políticos ou os sindicatos. Ao contrário, ela se soma a essas formas, oferecendo novas possibilidades de articulação, de visibilidade e de resistência.
No entanto, essas possibilidades trazem também desafios: a desinformação, a polarização, a vigilância de dados e a fragilidade das instituições diante do poder das plataformas privadas. A democracia digital exige, portanto, não apenas conectividade, mas também regulação, educação crítica, soberania tecnológica e capacidade de organização coletiva.
Mobilizar a Geração Z e os novos sujeitos digitais é tarefa urgente. Isso requer ouvir, dialogar e aprender com os modos contemporâneos de engajamento. As redes sociais, embora capturadas muitas vezes por lógicas mercantis, ainda são terreno fértil para a construção de uma esfera pública mais inclusiva, diversa e potente. Entre a rua e o feed, a luta política continua – e se reinventa.
*Thiago de Oliveira Machado, assistente social, é doutor em Política social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Democracia e participação: o exemplo do orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2002.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
SOLANO, Esther; ORTELLADO, Pablo. Bolsonarismo: da cultura do ressentimento à política do ódio. In: MORAES, Reginaldo Prandi (org.). Direita, volver! O retorno do autoritarismo no Brasil atual. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2018. p. 89–108.
TUFEKCI, Zeynep. Twitter and Tear Gas: The Power and Fragility of Networked Protest. New Haven: Yale University Press, 2017.
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