A cúpula do clima

Wols (Alfred Otto Wolfgang Schulze), [sem título], 1988
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Por LEONARDO BOFF*

Ou mudamos ou corremos o risco de desaparecer da face da Terra

Em Glasgow, nesse final de 2021, com a COP26 se discute como reduzir os níveis de gases de efeito estufa para não chegarmos em 2030 a 1,5 graus Celsius e então a um caminho sem retorno. A maioria está cética, pois os grandes emissores não cumpriram o Acordo de Paris. Reduzirem apenas até 7% e o Brasil, ao contrário, cresceu em 9% sua emissão. Dada a engrenagem do processo produtivo mundial de viés capitalista que tende a não assumir nenhum limite em seus ganhos, provavelmente não alcançaremos esta meta. Nossos filhos e netos herdarão uma Terra devastada e poderão nos amaldiçoar por não termos feito a lição de casa. A situação dramática da Terra está ausente nos debates. Não se fala da relação destrutiva para com a natureza. Vejamos rapidamente, no curso da história, como chegamos ao drama atual.

 

A interação com a natureza

Nossos ancestrais que se perdem na penumbra dos tempos imemoriais, entretinham uma interação não destrutiva: tomavam o que a natureza fartamente lhes oferecia. Esse tempo durou milênios, começando na África, onde surgiu o ser humano, pela primeira vez há alguns milhões de anos. Por isso, somos todos, de alguma forma, africanos.

 

A intervenção na natureza

Há mais de dois milhões de anos, irrompeu, no processo da antrogênese (a gênese do ser humano na evolução) o homem hábil  (homo habilis). Aqui ocorreu uma primeira virada. Inicia-se aquilo que culminou de forma extrema nos nossos dias.  O homem hábil inventou instrumentos com os quais operava uma intervenção na natureza: um pau pontiagudo, uma pedra afiada e outros recursos semelhantes. Com eles podia ferir e matar um animal ou podia cortar plantas. Essa intervenção se desenvolveu muito mais intensamente com a introdução da agricultura e da irrigação, ocorrida por volta de 10-12 mil atrás na era chamada do neolítico. Desviavam-se águas dos rios, melhoravam colheitas, criavam animais e aves para serem abatidos.

É o tempo em que os humanos deixaram de ser nômades e se fizeram sedentários, com  vilas e cidades, geralmente, junto aos rios como ao Nilo no Egito, ao Tigre e ao Eufrates no Oriente Médio, ao Indo a o Tanges na Índia e ao redor do imenso lago interno, o  Amazonas que há milhares de anos, desaguava no Pacífico.

 

A agressão à natureza

Da intervenção passamos à agressão da natureza, na era industrial a partir do século XVIII. Surgiram as fábricas com a produção em massa. Forjou-se todo tipo de instrumentos técnicos que permitiam extrair enormes riquezas da natureza. Partia-se da premissa de que o ser humano é “senhor e dono” da natureza, não se sentindo mais como hóspede e parte dela. A ideia-força era a vontade de poder, entendida como capacidade de dominar tudo: outras pessoas, classes sociais, povos, continentes, a natureza, a matéria, a vida e a própria Terra como um todo. Foram produzidas armas de destruição em massa, químicas, biológicas e nucleares.

O inglês Francis Bacon, tido como o fundador do método científico moderno, chegou a escrever: “Deve-se torturar a natureza como o torturador tortura a sua vítima, até ela entregar todos os seus segredos”. Os conhecimentos científicos foram logo transformados em técnicas de extração de bens naturais, cada vez mais aperfeiçoadas, para realizar o propósito de acumulação ilimitada. Aqui a agressão ganho estatuto oficial. Foi e continua sendo aplicada até os dias atuais.

 

A destruição da natureza

Nos últimos tempos de modo especial, depois da segunda guerra mundial (1939-1945) a sistemática agressão ganhou dimensões de verdadeira destruição de ecossistemas, da biodiversidade, dos bens e serviços escassos da natureza, até da Mãe Terra  agredida em todas as suas frentes.

Segundo notáveis cientistas, inauguramos uma nova era geológica, chamada de antropoceno, na qual o ser humano emerge como a maior ameaça à natureza e ao equilíbrio da Terra, particularmente de seus climas. Chegou-se ao ponto de nosso processo industrialista e o estilo consumista de vida dizimar anualmente cerca de 100 mil organismos vivos. Mais de um milhão deles estão sob grave ameaça de desaparecimento.

A partir desta verdadeira tragédia biológica começou-se a falar de necroceno, quer dizer, a morte (necro) em massa de vidas da natureza e de vidas humanas por miséria, fome de milhões e milhões e agora pelo Covid-19 planetário.

 

A erosão da matriz relacional

Perdeu-se a perspectiva do Todo. Ocorreu uma verdadeira fragmentação e atomização da realidade e dos respectivos saberes. Sabe-se cada vez mais sobre cada vez menos. Tal fato possui suas vantagens, mas também seus limites. A realidade não é fragmentada. Por isso os saberes também não podem ser fragmentados. Falamos da aliança entre todos os saberes, também dos populares (Prigogine).

Deixou-se de considerar as relações de interdependência que todas as coisas guardam entre si. Numa palavra: erodiu-se a matriz relacional de todos com todos, que envolvem o próprio universo. Nada existe fora da relação. Numa poética formulação do Papa Francisco em sua encíclica Laudato si: sobre o cuidado da Casa Comum (2015) se afirma: “O Sol e a Lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal, o espetáculo de suas diversidades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma; elas são interdependentes uma das outras para se completarem mutuamente no serviço uma das outras!” (n. 86).

Se realmente todos estamos entrelaçados, então devemos concluir que o modo de produção capitalista, individualista, depredador da natureza, visando o maior lucro possível sem se dar conta das relações existentes entre todas as coisas, emitindo gases de efeito estufa, está na contramão da lógica da natureza e do próprio universo.

A Terra nos criou um lugar amigável para viver mas nós não estamos nos mostrando amigáveis para com ela. Ao contrário, movemos-lhe uma guerra, sem chance de ganhá-la, a ponto de ela não aguentar mais e começar a reagir numa espécie de contra-ataque. Este é o significado maior da intrusão de toda uma gama de vírus, especialmente do Covid-19. De cuidadores da natureza nos fizemos em seu Satã ameaçador.

 

Ou mudamos ou podemos correr o risco de desaparecer

Até o advento da modernidade o ser humano percebia-se ligado ao Todo. Agora a Mãe Terra foi transformada “num banheiro” e “estamos cavando nossa sepultura” disse o Secretário Geral da ONU António Guterres ao abrir os trabalhos na COP26 no dia 31/10/2021, ou num baú cheio de recursos a serem explorados. Nessa compreensão que acabou por se impor, as coisas e os seres humanos estão desconectados entre si, cada qual seguindo um curso próprio.

A ausência do sentimento de pertença a um Todo maior, o descaso pelas teias de relações que ligam todos os seres, tornou-nos desenraizados e mergulhados numa profunda solidão, coisa que o impedia uma visão integradora do mundo, que existia anteriormente.

Por que fizemos esta inversão de rumo? Não será uma única causa, mas um complexo delas. A mais importante e danosa foi termos abandonado a referida “matriz relacional”, vale dizer, a percepção da teia de relações que entrelaçam todos os seres. Ela nos conferia a sensação de sermos parte de um Todo maior, de que estávamos inseridos na natureza como parte dela, como irmãos e irmãs, como afirma a Fratelli tutti do Papa Francisco e não simplesmente seus usuários e com interesses meramente utilitaristas. Perdemos a capacidade de admiração pela grandeur da criação, de reverência face ao céu estrelado, de respeito por todo tipo de vida e da capacidade de chorar pelo sofrimento da maioria da humanidade

Se não fizermos esta virada de “senhores e donos” (dominus) da natureza para “irmãos e irmãs (frater) entre todos, da humanidade e da natureza, não serão eventuais acordos alcançados na COP26 de diminuição de gases de efeito estufa que irão nos salvar. A questão é a mudança de paradigma. Ou mudamos ou corremos o risco de desaparecer da face da Terra.

*Leonardo Boff é eco-teólogo. Autor, entre outros livros, de Como cuidar da Casa Comum (Vozes).

 

 

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