Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Comentário sobre o filme de Luis Buñuel
“Pensai na noite e no frio tumular que reinam neste universo de danados!” (Brecht, A Ópera de Três Vinténs).
Ver Viridiana é uma experiência insólita e chocante. Vi desenrolar-se ante meus olhos um enredo digno do mais vulgar dramalhão mexicano, veiculado por imagens extremamente rudimentares, conquanto belas.
Nos entretenimentos de massa como o dramalhão mexicano, a telenovela e a fotonovela, pode-se discernir um objetivo comum que é a sua função. Visam eles propiciar a evasão, ou seja, satisfazer a necessidade de ficção sem correr o risco de perturbar os consumidores com a apresentação de contradições insolúveis que obriguem à reflexão sobre a ordem estabelecida e os valores que a garantem.
Neles se contam aos milhares as moças puras que querem ser freiras, a quem o tio rico tenta violentar para em seguida suicidar-se, ante o que a moça pura abandona tudo para dedicar-se aos pobrezinhos, tornando-se uma espécie de freira laica. Via de regra ela redime assim a sua responsabilidade no suicídio, casando-se mais tarde com o primo, rapaz de vida devassa que se regenera pelo exemplo da priminha.
Bons premiados, maus castigados – a empregada intrigante ou a ex-amante do primo que calunia a moça pura – nada foi posto em causa: não há resposta porque não houve pergunta. Ninguém perguntou que mundo é este em que uma moça bonita e sadia escolhe como destino a negação do mundo, fechando-se num convento; em que um pequeno senhor rural, nem sequer muito rico ou poderoso, tem direitos de vida e de morte; em que a esmola é o único contacto possível entre os que têm e os que não têm; em que os miseráveis cultivam sentimentos de gente rica – por isso mesmo chamados sentimentos nobres – como a gratidão, a hospitalidade, a amizade.
O filme de Buñuel tem um enredo irmão da fotonovela, da telenovela e do dramalhão mexicano: mas um irmão transviado. Pelo avesso, é a antievasão. É o mesmo enredo levado às últimas consequências, necessariamente a degradação geral. Só mesmo quem quer acreditar em milagres pode engolir a redenção pela caridade (redenção mútua, da moça pura e dos pobrezinhos), o casamento com o primo regenerado, a gratidão perpétua dos protegidos.
O contacto com o mundo, para quem nega o mundo, degrada mesmo: há necessidade na trajetória de Viridiana, desde o convento, de violência em violência, até o jogo de “tute” a três, Viridiana rebaixada ao nível moral do primo e ao nível social da empregada. Assim, Viridiana, em odor de santidade, causa o suicídio do tio; é mais que assassina: condena o tio à danação eterna, já que para os suicidas não há salvação. A moça pura é instrumento do Diabo.
Todo o horror desse mundo está encarnado nos mendigos. É o que as imagens do filme nos mostram, insistentemente. Viridiana é linda, o tio é um barbaças senhorial, o primo é bonitão, a empregada tem a elegância da correção: os mendigos são repugnantes. De aparência, são imundos, mutilados, desdentados, tortos. Abrigam os piores sentimentos: são desconfiados, ingratos, egoístas, revoltados, promíscuos. Esses, não são solidários nem no câncer: querem só para eles os benefícios, não aprendem o exercício da caridade, expulsam o leproso.
E até – é o cúmulo! – cobiçam o luxo dos senhores, também têm vontade de comer em toalha de renda, em cristais e pratarias. Não se contentam em ter a comida, o que já não é pouco para quem tem fome; querem a comida com os requintes daqueles que não têm fome. Já perderam toda humanidade. São animais de presa, não lhes basta uma farrinha às escondidas, querem destruir tudo. O crescendo da vileza culmina na tentativa de estuprar a protetora, tão ingênua, tão ignorante do mundo.
Difícil é imaginar uma desmistificação mais completa do enredo convencional, um filme dramalhão (ou fotonovela ou telenovela) mais às avessas. As personagens típicas estão ali, os meandros típicos do enredo também: mas o que o filme nos mostra é o contrário. Buñuel – não pacientemente, mas impetuosamente – desmistifica os laços de família, a caridade cristã, a etiqueta de relações entre as classes, os bons sentimentos. Despoja esses valores de qualquer necessidade, antes os coloca como mantos diáfanos a encobrir o monturo, que fede.
Buñuel procede pelo óbvio. O enredo de telenovela vai-se constituindo, aos olhos do espectador, mediante imagens metafóricas que aparentemente menosprezam seu quociente de inteligência. A uma metáfora óbvia se sucede outra metáfora óbvia; como se não bastasse, o diálogo corrobora a imagem. O espectador, desarvorado, vê o primo libertar o cachorro, vê passar outra carroça com outro cachorro preso, vê (e ouve) o primo repreender Viridiana por proteger um punhado de mendigos quando o mundo está cheio deles.
Perplexo, o espectador vê a menina pular corda no início, vê depois o tio enforcado na corda, vê a menina voltar a pular corda, vê a corda servir de cinto para o mendigo, vê a mão de Viridiana agarrar-se ao punho da corda no momento do estupro. (Exclamação geral do público: “Essa não!”). O espectador, na maior confusão, assiste a coisas incríveis e de gosto discutível: vê os aprestos autoflageladores de Viridiana, vê o tio calçar o sapato da defunta, vê Viridiana espalhar cinza na cama do tio, vê a terrível Santa Ceia e o retrato comemorativo, vê a menina tirar da fogueira a coroa de espinhos, vê obsessivamente os pés em detrimento da face. Que fazer? Indignar-se, ou achar que é uma experiência válida; não há outra saída.
A sensibilidade treinada nas sutilezas do cinema moderno se revolta naturalmente. Nada mais estranho à interiorização, à discrição, ao refinamento intelectual do melhor cinema da atualidade. Lembro-me que foi muito mal vista, por sua obviedade, a tomada do pássaro na gaiola enquanto o industrial tenta seduzir o escritor, em A Noite, de Antonioni. É claro que se trata de uma incoerência, pois a narração de Antonioni não recorre a esse tipo de metáfora mais direta e primária, outrora tão comum (nos filmes de Stroheim, por exemplo). Quando então o espectador é saturado até à náusea por imagens óbvias narrando coisas insólitas e pouco elegantes, o cheiro de obsoleta blasfêmia torna-se insuportável. Numa situação semelhante deve encontrar-se o leitor do nouveau roman que lê Henry Miller pela primeira vez. A sensação é mesmo desagradável e já foi também experimentada por Carlos Drummond de Andrade, em outra ocasião e a outro propósito: “A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia”.
Buñuel está de fato fora do filão seguido pelo cinema de nosso tempo (refiro-me ao bom cinema) e só pode causar estranheza. Viridiana é um filme marginal, tanto na matéria como nos processos narrativos. Mas que marginalidade magnífica! E quem pode dizer se Buñuel não segue uma linha recessiva, mas fundamental para o cinema do futuro, numa oposição fecunda à atmosfera por vezes rarefeita dos grandes filmes contemporâneos? Buñuel, o óbvio, pulveriza o mundo com violência e com fúria destruidora.
Resta discutir se este filme diz que somos todos danados ou que estamos todos danados. Se o Apocalipse criado por Buñuel é teológico ou cultural. Se a natureza humana está ali colocada metafisicamente ou historicamente. Numa palavra, se o monturo fede porque todo monturo fede ou se o monturo fede porque apodreceu. Eis a questão.
*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Saco de gatos (Duas Cidades).
Referência
Viridiana
Espanha / México, 1961, 90 minutos
Direção: Luis Buñuel
Elenco: Silvia Pinal, Victoria Zinny, Fernando Rey, Francisco Rabal
Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=ScqpbxCjZIw