À espera dos bárbaros

LEDA CATUNDA, Escamosa, 2021, acrílica e esmalte s/ tela, tecido e plástico, 400 x 70cm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Comentário sobre o filme dirigido por Ciro Guerra

O espectro de Kafka, e toda a coorte do teatro do absurdo, insiste em rondar o cinema.

É o que se verifica em À espera dos bárbaros, dirigido por Ciro Guerra, realizado sob a égide de Konstantínos Caváfis, o bardo de Alexandria e da decadência dos impérios, que lhe empresta o título. Num posto avançado colonial insignificante e remoto, no meio do deserto, o Magistrado legisla e, sem muita convicção, cuida de manter os bárbaros à distância. Mas estes são uns pobres-diabos, e não ameaçam ninguém. Até que surge um coronel interventor, que instaura a tortura e os interrogatórios brutais, sob pretexto de erradicar uma sedição. O conflito está armado, e seu desenvolvimento é o fulcro do filme. O entrecho lembra ainda O deserto dos tártaros, romance de Dino Buzzatti.

J. L. Coetzee, autor do romance em que o filme se inspira, é o sul-africano que, logo depois de Nadine Gordimer, ganhou o Prêmio Nobel. Ambos foram dedicados militantes que em sua ficção denunciaram os crimes do apartheid que, esse sim, era genocida e tremendamente cruel. Felizmente já se foi, e não sem luta, vide os 27 anos que Nelson Mandela passou encarcerado. O apartheid encontrou nesses e em outros escritores e artistas, como a cantora Miriam Makeba, opositores de peso e respeito, para maior glória da nação. Bela safra de filmes viria mais tarde, perpetuando os gloriosos fastos da resistência, mas o teatro, a canção e a literatura tiveram a honra de enfrentar a repressão ao vivo.

O diretor do filme é colombiano e já chamou a atenção com outra obra, O abraço da serpente, em que um índio, último remanescente de sua nação, e um explorador branco partem numa demanda um tanto vaga. Como se vê, o diretor insiste em revolver a dolorosa chaga da fricção étnica e das catástrofes que acarreta. Exige registro a escalação de um trio de atores que não podia ser melhor: Mark Rylance é o protagonista, o Magistrado, acolitado por Johnny Depp como o sádico coronel e por Robert Pattinson como seu lugar-tenente.

Dos três, o menos conhecido entre nós é Mark Rylance, aliás não só entre nós, em Hollywood também: um artista com seu currículo extraordinário só tardiamente ganhou um Oscar, e mesmo assim de ator coadjuvante. Isso ocorreu no filme A ponte dos espiões, de Steven Spielberg, em que faz o Coronel Abel, o espião russo que, julgado e condenado a 30 anos de prisão nos Estados Unidos, nunca abriu a boca, nem confessou nem se entregou à delação.

Desconhecido propriamente o ator não era, pois já ganhara nada menos que três Tonys, o maior prêmio teatral americano, nos palcos da Broadway. Grande ator shakespeareano, vem da Royal Shakespeare Company. Quando reconstruíram o Globe Theater consumido por um incêndio, de que o bardo inglês foi co-proprietário e ator, foi Mark Rylance seu primeiro diretor, e por dez anos, de 1995 a 2005.

O teatro reconstruído fica bem à vista no Embankment, na margem do Tâmisa e segue o modelo das casas de espetáculos à época. A plateia não tem assentos: todo mundo ficava de pé, com o palco à altura dos olhos. Ali se postava a plebe, em grande algazarra, torcendo conforme os lances do enredo. De planta arredondada, ao longo das paredes sobrepunham-se três ou quatro andares de lugares mais caros com bancos, tudo isso coberto por telhado de colmo, enquanto o centro do círculo ficava a céu aberto, por razões de iluminação e de oxigênio.

Durante toda a década em que Mark Rylance dirigiu a casa, não deixou de se apresentar como ator, e é possível apreciá-lo em documentários do Globe Theater. Assim o vemos em Twelfth night, com elenco masculino (obrigatório no teatro elisabetano), vivendo uma impagável Condessa Olivia, que desliza pela ribalta com passinhos miúdos encobertos pelas volumosas saias. Deve ter-se divertido à beça.

Este filme, feito agora, certamente é uma alegoria do fim do mundo, ou do Apocalipse, um dos gêneros cinematográficos mais numerosos atualmente. A pandemia e a ascensão da direita, decretando o fechamento dos horizontes que descortinavam o futuro, tornaram esse tipo de filme comum e banal – mas este À espera dos bárbaros nada tem de comum ou de banal. Ao contrário, convida à meditação.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).

Referência


À espera dos bárbaros (Waiting for the barbarians)
Itália, EUA, 2020, 114 minutos.
Direção: Ciro Guerra.
Elenco: Mark Rylance, Johnny Depp, Robert Pattinson.


O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Celso Favaretto Kátia Gerab Baggio Marcus Ianoni Daniel Costa André Márcio Neves Soares Lorenzo Vitral Marilena Chauí Bruno Machado Mariarosaria Fabris Ronaldo Tadeu de Souza José Machado Moita Neto Henry Burnett Marcelo Guimarães Lima Luis Felipe Miguel Valerio Arcary Daniel Brazil Rodrigo de Faria Anselm Jappe Eliziário Andrade Bernardo Ricupero Fábio Konder Comparato Leonardo Avritzer Carlos Tautz Ladislau Dowbor Sandra Bitencourt Samuel Kilsztajn Liszt Vieira Ronald Rocha Gerson Almeida Yuri Martins-Fontes Fernão Pessoa Ramos Antonio Martins Eduardo Borges Gilberto Lopes Luiz Renato Martins Matheus Silveira de Souza Osvaldo Coggiola Luiz Roberto Alves Heraldo Campos Dênis de Moraes Luiz Marques José Dirceu Michael Löwy Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Daniel Afonso da Silva Paulo Nogueira Batista Jr Luiz Werneck Vianna Ricardo Abramovay Luiz Bernardo Pericás João Carlos Salles Armando Boito Carla Teixeira Thomas Piketty Elias Jabbour Leonardo Boff Chico Alencar Ricardo Musse Lucas Fiaschetti Estevez Priscila Figueiredo Leonardo Sacramento Eleonora Albano Ronald León Núñez Caio Bugiato Andrew Korybko Denilson Cordeiro Julian Rodrigues Flávio Aguiar Jean Marc Von Der Weid Rubens Pinto Lyra Atilio A. Boron Valerio Arcary Paulo Fernandes Silveira Salem Nasser Gabriel Cohn Luís Fernando Vitagliano Airton Paschoa Tadeu Valadares Vanderlei Tenório João Carlos Loebens Sergio Amadeu da Silveira Otaviano Helene João Feres Júnior Tarso Genro Francisco Fernandes Ladeira Érico Andrade Eugênio Trivinho Marilia Pacheco Fiorillo Paulo Martins Igor Felippe Santos Ari Marcelo Solon Chico Whitaker José Luís Fiori João Sette Whitaker Ferreira Milton Pinheiro Tales Ab'Sáber Michael Roberts Luiz Carlos Bresser-Pereira Claudio Katz Antônio Sales Rios Neto Berenice Bento Alexandre de Freitas Barbosa Slavoj Žižek Plínio de Arruda Sampaio Jr. Bruno Fabricio Alcebino da Silva Alexandre de Lima Castro Tranjan José Costa Júnior Dennis Oliveira Francisco de Oliveira Barros Júnior Eleutério F. S. Prado Antonino Infranca Eugênio Bucci João Adolfo Hansen Remy José Fontana Luciano Nascimento Jorge Branco Henri Acselrad Luiz Eduardo Soares Lincoln Secco Boaventura de Sousa Santos Marcelo Módolo Celso Frederico André Singer Renato Dagnino Bento Prado Jr. Michel Goulart da Silva Marjorie C. Marona Juarez Guimarães Everaldo de Oliveira Andrade José Raimundo Trindade João Lanari Bo Manuel Domingos Neto Andrés del Río Paulo Sérgio Pinheiro Flávio R. Kothe Rafael R. Ioris Marcos Silva Vinício Carrilho Martinez Alexandre Aragão de Albuquerque Ricardo Antunes Paulo Capel Narvai Alysson Leandro Mascaro José Micaelson Lacerda Morais Jorge Luiz Souto Maior Mário Maestri Jean Pierre Chauvin Ricardo Fabbrini José Geraldo Couto Benicio Viero Schmidt Maria Rita Kehl Annateresa Fabris Manchetômetro João Paulo Ayub Fonseca Afrânio Catani Francisco Pereira de Farias Marcos Aurélio da Silva Vladimir Safatle Walnice Nogueira Galvão Fernando Nogueira da Costa Gilberto Maringoni Leda Maria Paulani

NOVAS PUBLICAÇÕES