Direita brasileira

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Por FLAVIO AGUIAR*

Um desastre atrás do outro

Vamos dar uma olhada no dossiê da direita brasileira, de 1945 para cá. Algo acontece com ela, em crescente estado degenerativo de putrefação. Se estivesse numa escada rolante, ela seria certamente de descida. 29 de outubro daquele ano: cai Getúlio, devido a uma conspiração militar. Não cai pela esquerda, nem pelo centro: cai mesmo empurrado pela direita, insatisfeita com sua política “populista” em relação aos trabalhadores e com sua política nacionalista, que afastava o Brasil do aprisco dos Estados Unidos, a potência imperialista do Ocidente, emergindo dos escombros da Segunda Guerra e se contrapondo ao comunismo soviético.

Esta direita que derrubou Getúlio em outubro apoia, na eleição prevista para 2 de dezembro, o Brigadeiro Eduardo Gomes. Bonitão, bem falante, Eduardo Gomes empolga mocinhas, que vendem o docinho de chocolate que guardará seu nome no Brasil inteiro, exceto no Rio Grande do Sul (onde é chamado de “negrinho”), e divulgam um refrão dos mais cafonas da política brasileira: “vote no Brigadeiro, ele é bonito e é solteiro”. O Brigadeiro comete uma gafe mortal: em comício, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, diz que “não precisa dessa malta de desocupados que apoia o ditador” para se eleger presidente.

A “malta” não era de desocupados: era composta, em grande parte, pelos trabalhadores que, pela primeira vez na história do país, tinham uma legislação em seu favor, a CLT, que, apesar de alguns desmandos autoritários, os protegiam dos desmandos maiores do empresariado sedento de mais-valia escorchante. Desde seu “exílio” em São Borja, Getúlio manobra, executa o gambito do rei (ele mesmo) no xadrez político, apoia na última hora o adversário do Brigadeiro, o Marechal Eurico Gaspar Dutra, que ajudara a depô-lo, e reverte o quadro de expectativas.

Contra todas as previsões, Dutra derrota Eduardo Gomes. Mas faz um governo algo desastroso. Alia incondicionalmente o Brasil à política norte-americana, que joga a América Latina inteira para segundo plano, diante da necessidade de reerguer a Europa combalida e destroçada para se contrapor ao comunismo russo e também precisa se concentrar em combater o comunismo chinês na Ásia, primeiro na Coreia e depois do Vietnã. Dutra governa contra os trabalhadores, e abre caminho para a volta triunfal de Vargas em 1950, com seu “nacionalismo populista”.

A direita, frustrada, continua atrás de líderes que a espelhem. São vários, de Eduardo Gomes, que continua bonitão e solteiro, a Ademar de Barros, também apontado como “populista”, mas do lado de lá. Porém a cereja do bolo da direita vai ser mesmo o incansável Carlos Lacerda. Sinistra figura, destrutiva, mas de qualquer modo um intelectual, orador brilhante, igualmente bonitão, vai terminar, inclusive, fundando uma das mais importantes casas editoriais do Brasil, viva até hoje. Os Diários Associados, liderados por Assis Chateaubriand, protege e estimula Lacerda e sua Tribuna da Imprensa, contra Getúlio. O jornalismo nacional começa assim sua saga de desmandos editoriais que o levarão, em grande parte, à conspiração pelo golpe de 1964. A direita insufla também os militares, embora a caserna esteja dividida entre “nacionalistas” e “americanófilos”.

Suicidado Getúlio, em 24 de agosto de 1954, das cinzas de seu féretro sai Juscelino Kubitschek, que derrota simultaneamente Juarez Távora (outro bonitão), Ademar de Barros e Plínio Salgado. Ao fim do mandato de Juscelino a direita consegue finalmente um líder “popular” e “populista”: Jânio Quadros, que rouba de Lacerda o mote da propaganda anti-corrupção, tendo sua “vassoura” como símbolo. Mas algo acontece nesta passagem: embora fosse professor de português e tivesse carisma, Jânio estava mais para o excêntrico do que para o “bonitão” dos candidatos de antanho, e também para o errático: rompeu com Lacerda devido a um mal entendido sobre uma audiência, condecorou Guevara e talvez deprimido pela solidão de Brasília, renunciou, provocando a crise de 1961.

Nesta altura já despontava, no campo da direita, um gênio do mal, com sua lâmpada de Aladim, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, fundamental na conspiração que levou ao golpe de 1964: o então coronel, depois general da Reserva, Golbery do Couto e Silva. Bem articulado, autor de um livro de renome, “Geopolítica do Brasil”, Golbery posava de intelectual e liderava, com outros militares, entre eles o futuro presidente Castello Branco, o grupo chamado arrogantemente de “Sorbonne”. Golbery era uma figura de bastidor, um misto de feiticeiro fardado e Mágico de Oz; não tinha o brilho demagógico de seus comparsas Eduardo Gomes e Juarez Távora. Compartilhava a moldura de uma geração de direita que contava com gente como Gustavo Corção, catolicão e carola como poucos, cujos detestáveis artigos reacionários eram, no entanto, brilhantes aulas de português bem escrito, como os discursos de Lacerda.

Aqueles e estes eram ícones de um tempo em que a direita brasileira ainda falava um português apresentável, embora de salão. Quando optou pela caserna, esta aura começou a decair, e nunca mais se recuperou. Não por causa do Golbery, nem do Castello Branco, mas por causa dos sucedâneos, os opacos Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e finalmente o adorador de cavalos João Batista Figueiredo. De todos o menos opaco foi Geisel, mas assim mesmo era um osso duro de roer.

Redemocratizado o país, os próceres do conservadorismo reacenderam algum facho intelectual. Por exemplo: você pode não gostar de “Os marimbondos de fogo”, de José Sarney (“Irmãos:/perdoai-me/o sonho da morte é uma nuvem/que não cobre as eternas noites da vida”), mas perto de “Anônima intimidade”, de Michel Temer (“Quando parei/Para pensar/Todos os pensamentos/Já haviam acontecido”), o maranhense parece um poeta de fôlego superior e inesgotável.

Depois do vice improvisado em presidente, e do fracasso rotundo do Plano Cruzado, veio outro bonitinho: Fernando Collor, que a mídia conservadora consagrou como “o caçador de marajás”. Ao invés de caçar os marajás, cassou a poupança de todo mundo. Sem qualquer plano de saída para a crise que provocou, enrolou-se nas próprias pernas e seu governo desaguou em novo vice improvisado em presidente: Itamar Franco que, pelo menos, nada fez de relevante nem de irrelevante.

Daí nova invenção: Fernando Henrique Cardoso vestiu-se de paraquedista ou fuzileiro naval na capa de Veja e saiu dando bordoadas nos petroleiros em greve, querendo imitar a cruzada de Margaret Thatcher contra os mineiros ingleses. Outro fracasso, no fim de contas: Fernando Henrique transformou-se em FHC, a borboleta pariu a lagarta, o antigo “Príncipe da Sociologia” virou o “baronete de Higienópolis” que fazia reverência para o PFL e seu rei ACM. No apagar das luzes, depois do mais brilhoso que brioso Plano Real, entregou a nova moeda e um país quebrado para o Lula na quarta eleição que este disputou e desta vez ganhou.

Daí em diante começou a série de vitórias petistas; a direita entrou em desespero e, ladeira abaixo, foi inventando um nome atrás do outro: Serra, Alckmin, Serra de novo, Aécio. Nada deu certo; só restaram mesmo uma aberração chamada Cunha e um bolha esperto chamado Temer, com sua “Ponte para o Futuro” que, na verdade, revelou-se uma “pinguela para o passado”, no dizer feliz de Alejandro Acosta e Carlos Alberto Bezerra (não sei se foram eles que inventaram a expressão, mas foi em seus artigos que a li pelas primeiras vezes).

Tivemos novamente um vice improvisado em presidente, mas ao contrário de Sarney e Itamar, Temer subiu na escada de um golpe parlamentar, midiático, jurídico e acobertado, depois, por parte do estamento militar. A todas estas, a nossa mídia mainstream também perdia os freios e descia encosta abaixo na esteira da “retórica do ódio”, inventado mentiras e mais mentiras – fake news, em português elegante de salão – contra o PT. Deslumbrou-se ela diante de juízes tão obtusos como provincianos no caso do suposto “Mensalão” e depois na “Lava-Jato”, que só lavou mesmo o bom senso, dando sua contribuição para destruir a indústria e a ordenação jurídica nacionais, com o beneplácito dos Conselheiros Acácios elevados (alguns pelo próprio governo petista) às praias togadas do Supremo Tribunal Federal.

A foto que melhor espelha este deslumbramento obscurantista é aquela dos procuradores de Curitiba, todos de pé, fardados de executivos, encarando a câmera, com Deltan Ness Wolverine Dallagnol no meio e à frente, reunidos numa pose que não sei se imita a foto dos Intocáveis dos anos 60, Robert Stack em destaque, se a dos Intocáveis mais recentes, com Kevin Kostner no papel de Eliot Ness, ou ainda se a foto dos X-Men. De todo modo, a foto ilustra o nível intelectual daquela trupe.

Mas o melhor, ou pior, ainda estava por vir. Desossado o PSDB, com o DEM e o MDB na UTI (naquela altura, em termos de eleição para a presidência), só restou mesmo a opção de apoiar a chapa liderada pelo ex-capitão, miliciano e adulador de torturadores, secundada pelo aprendiz de economista que fez o primário em Chicago e formou-se no Chile de Pinochet, ambos de nível intelectual próximo do zero, senão abaixo.

O primeiro, além de anunciar que veio destruir tudo o que foi construído desde – não apenas dos governos do PT, não somente a partir da Constituição de 1988, nem apenas dos governos de Vargas ou de D. Pedro II, mas desde os tempos de Pindorama, já que se empenha contra povos indígenas em geral, também veio destruir a língua portuguesa desde que Pero Vaz de Caminha a trouxe para cá. Está conseguindo fazer um governo pior do que os das Capitanias Hereditárias. Como neste caso histórico, quer deixar o botim para seus filhos.

E o segundo veio para arrasar, sem qualquer prática nem habilidade, os escombros econômicos e sociais que a Lava Jato e Temer deixaram mal e mal de pé. São, com a boiada que os acompanha, o termômetro mais fiel da indigência mental a que chegou a direita no Brasil. Pois o estilo miliciano deste governo contaminou toda a direita: o que vemos está mais para uma guerra de quadrilheiros para ocupar os paços de governo a partir de 2022 do que uma disputa política de projetos e projeções, com ou sem vacina. A hecatombe é geral.

Se examinarmos bem de perto o que dizem todas as figuras que estão despontando nos arraiais da direita, não se vê um único projeto para o Brasil que mereça este nome. Tudo o que se vê são ideias e promessas vagas de continuar administrando a iniquidade, a bruta desigualdade, a promoção do ignorância, o desmonte do sistema de saúde, etc. e a subserviência no plano internacional. Até os milhares de fardados que foram convocados para ocupar postos no governo federal – com o ministro e “campeão da logística” da pandemia à frente – são sombras descoradas dos tempos do Golbery e da Sorbonne.

Ao invés de colaboradores da Guerra Fria, parecem mais uma turma da boquinha preocupada em condecorar seus futuros pijamas com alguns mirréis a mais. Em resumo, a direita não tem mais nada a oferecer ao país, senão ignorância, brutalismo, falta de futuro, saque de seus recursos, bla-bla-bla religioso obscurantista como ópio para o povão.

No momento, arautos midiáticos desta direita esperneiam contra o mostrengo que ajudaram a criar, mas num clima de “eu nem sei o que fiz no verão passado, não quero saber e continuo tendo raiva de quem sabe”. Promovem o estrelinha da Globo como simulacro de estadista, olham desconfiados para o governador da vacina em São Paulo, sem saber muito bem o que fazer. Ajudam a passar o atestado de falência intelectual e moral da direita brasileira. E ainda não se vacinaram contra as tentações dos novos golpes estilosos dados pela via parlamentar ou judiciária. Embora comecem a temer a possibilidade de um golpe no velho estilo, dado a partir do Palácio do Planalto.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

 

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