Por LAURA CARVALHO*
O cenário atual não é muito distinto do que assistimos no governo Temer
Com a eleição de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco para a presidência da Câmara e do Senado, o presidente Jair M. Bolsonaro poderia passar a ditar os rumos da política econômica do país na segunda metade de seu governo. É o que se poderia esperar de um governo com uma agenda econômica clara. Entretanto, a vitória do centrão parece trazer mais perguntas do que respostas. No campo da política fiscal, por exemplo, o eixo daqui para frente será a manutenção do teto de gastos e a aprovação das reformas propostas pelo Ministério da Economia, ou a conquista de maior popularidade para o presidente por meio da expansão significativa de programas de transferência de renda?
A dificuldade em responder a essa pergunta deriva de uma contradição presente no projeto bolsonarista desde 2018. Apesar de um histórico errático e fisiológico nas votações de medidas econômicas, típico do centrão que ele agora assume como seu, Bolsonaro delegou para seu “Posto Ipiranga” o discurso na área econômica nas eleições presidenciais e transformou assim sua plataforma em um casamento de conveniência entre fundamentalismo de mercado e conservadorismo autoritário nos costumes. A aliança fazia sentido naquele contexto. Afinal, a grave crise econômica de 2015-2016 era atribuída no senso comum aos escândalos de corrupção que invadiam o noticiário. Bolsonaro conseguiu se vender como aquele que não apenas livraria o país do establishment político, mas do próprio Estado, tido como intrinsecamente corrupto, por meio de medidas ultraliberais.
Nos primeiros dois anos de seu governo, o pouco que foi aprovado da agenda reformista (essencialmente a última versão da reforma da Previdência proposta pelo governo Temer) se deveu aos esforços de Rodrigo Maia. As medidas anunciadas por Paulo Guedes e sua equipe econômica não parecem nem ter sido desenhadas para sair do papel. A postura oposicionista da presidência da Câmara ajudava a manter as aparências do casamento de fachada entre Guedes e Bolsonaro. Afinal, no jogo de faz de conta que ajudou a mobilizar sua base mais fiel em meio às sucessivas frustrações nos indicadores econômicos, Bolsonaro podia continuar fingindo que apoiava seu ministro da Economia enquanto Guedes podia continuar atribuindo a um boicote do parlamento sua dificuldade em levar adiante uma ambiciosa agenda de reformas e privatizações, e seu fracasso em entregar uma melhora na economia mesmo antes da crise pandêmica.
Em 2020, a realidade se impôs e exigiu o abandono abrupto do fundamentalismo de mercado de Guedes e do reformismo de Rodrigo Maia. O decreto de calamidade pública e a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do orçamento de guerra abriram as portas para que o Brasil se tornasse o 16° país entre 176 analisados no Monitor Fiscal do FMI (Fundo Monetário Internacional) a mais gastar no enfrentamento à pandemia, atenuando substancialmente a queda do PIB (Produto Interno Bruto). O maior desses estímulos, o auxílio emergencial, foi capaz de criar uma situação um tanto paradoxal, na qual indicadores de pobreza e desigualdade caíram de forma expressiva enquanto vivíamos uma das mais graves crises da história.
O ganho de popularidade de Bolsonaro entre brasileiros da base da pirâmide exacerbou as divisões internas no projeto. Alas do governo se viram tentadas a abandonar o fiscalismo de Guedes e descontentar o mercado em prol de uma agenda mais voltada à geração de emprego e renda. Livrar-se do pilar do fundamentalismo de mercado aproximaria, em alguma medida, o projeto bolsonarista de outras experiências recentes de extrema direita ao redor do mundo, que combinaram o autoritarismo com discursos mais antissistêmicos na economia (como Viktor Orbán na Hungria, por exemplo).
Ao adentrar 2021 com o Congresso jogando a favor, a encruzilhada na área econômica torna-se ainda mais nítida. De um lado, a equipe econômica deixou de ter desculpas para não andar com sua agenda de reformas. De outro, a própria manutenção do centrão na base do governo custa caro. A autorização do TCU (Tribunal de Contas da União) para usar as sobras do Orçamento de 2020 (restos a pagar dos créditos extraordinários criados) pode nem ser suficiente para atender às demandas dos parlamentares do bloco por muito tempo, que dirá para expandir transferências de renda para a população mais vulnerável.
É provável que o governo não faça nem uma coisa nem outra, ou seja, que fiquemos mesmo sem rumo de política econômica até 2022. Nesse cenário, Bolsonaro manteria Paulo Guedes em seu papel de “cheerleader” do mercado: continuaria a defender o teto de gastos, as reformas e as privatizações, mas aprovaria apenas as medidas de precarização do trabalho (alguma versão da tal carteira verde e amarela), de destruição ambiental (regularização das terras públicas invadidas por grileiros na Amazônia, por exemplo) e cortes pouco expressivos de despesas obrigatórias. Enquanto isso, os parlamentares do centrão manobrariam o teto de gastos para manterem-se de barriga cheia.
Se olharmos com atenção, esse cenário não é muito distinto do que assistimos no governo Temer, que ao fim e ao cabo aprovou apenas uma reforma trabalhista e um teto de gastos que só se tornaria restritivo para seu sucessor. O “dream team” da equipe econômica se encarregava de animar o mercado enquanto a base no Congresso cobrava caro para evitar as investigações por corrupção do presidente, que ganharam prioridade em relação à aprovação da reforma da Previdência. Ao contrário da ex-presidente Dilma em 2015, que cortou o que pôde de despesas discricionárias na gestão Joaquim Levy na Fazenda, Temer não chegou nem a fazer ajuste fiscal. Tampouco optou por gastar com rubricas com altos efeitos multiplicadores sobre a renda e o emprego, que teriam contribuído para uma recuperação mais rápida da economia brasileira.
Mas Temer não precisava de popularidade, pois não disputaria a reeleição. É possível que no caso de Bolsonaro, as manobras voltadas a abrir espaço no Orçamento para o expansionismo fiscal fisiológico típico do centrão acabem encontrando um lugarzinho também para a prorrogação do auxílio emergencial ou a expansão do programa Bolsa Família. Qualquer que seja o cenário, está claro que passaremos longe mais uma vez do que a economia brasileira precisa para retornar mais rápido aos níveis de renda média de 2014: uma agenda de recuperação inclusiva e sustentável.
*Laura Carvalho é professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Autora, entre outros livros, de Valsa brasileira: Do boom ao caos econômico (Todavia).
Publicado originalmente no Nexo Jornal.