A Comuna de Paris – a tradição dos oprimidos

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Por MICHAEL LÖWY*

Um momento privilegiado da história em que as classes subalternas conseguiram romper com a continuidade da opressão; período de liberdade, emancipação e justiça

Há no cemitério Père Lachaise de Paris um muro, conhecido como “O Muro dos Federados”. Lá foram fuzilados, em maio de 1871, pelas tropas versalhesas, os últimos combatentes da Comuna de Paris. Todos os anos, milhares – e às vezes, como em 1971, dezenas de milhares – de pessoas, no mais das vezes franceses, mas também gente do mundo inteiro, visitam esse relevante lugar de memória do movimento dos trabalhadores e trabalhadoras3. Elas vêm sós ou em manifestações coletivas, com bandeiras vermelhas ou flores, e cantam por vezes uma antiga canção de amor, que se tornou hino dos communards: “Le Temps des Cérises“. Não rendem homenagem a um homem, um herói ou a um grande pensador, mas a uma multidão de anônimos que nos recusamos a esquecer.

Como disse Walter Benjamin em suas teses “Sobre o conceito de história” (1940), a luta emancipatória se faz não somente em nome do futuro, mas também em nome das gerações vencidas; a lembrança dos ancestrais assujeitados e de seus combates é uma das grandes fontes de inspiração moral e política do pensamento e da ação revolucionários.

A Comuna de Paris faz, portanto, parte do que Benjamin chama de “a tradição dos oprimidos”, ou seja, desses momentos privilegiados (“messiânicos”) da história em que as classes subalternas conseguiram, por um momento, romper a continuidade da história, a continuidade da opressão; curtos – bem curtos – períodos de liberdade, emancipação e justiça que irão, sempre, servir de referência e de exemplos para os novos combates. Desde 1871, ela [a Comuna de Paris, G.S.] não cessa de alimentar a reflexão e a prática das revolucionárias e dos revolucionários, a começar pelo próprio Marx – assim como Bakunin – e depois, no século XX, Trotsky e Lenin.

Marx e a Comuna de 1871

Apesar de suas divergências no seio da Primeira Internacional, marxistas e libertários cooperarão fraternalmente no apoio à Comuna de Paris, a primeira grande tentativa de “poder proletário” na história moderna. Certamente, as respectivas análises de Marx e Bakunin sobre este evento revolucionário eram opostas.

Podemos resumir as teses do primeiro nos termos seguintes: “A situação do pequeno número de socialistas convictos que faziam parte da Comuna era extremamente difícil… Precisaram opor um governo e um exército revolucionários ao governo e ao exército de Versalhes”.

Diante desta leitura da guerra civil na França, que opõe dois governos e dois exércitos, o ponto de vista anti-estatista do segundo era bastante explícito: “A Comuna de Paris foi uma revolução contra o próprio Estado, esta aberração sobrenatural da sociedade”. O leitor atento e informado terá, ele mesmo, feito a correção: a primeira opinião é de… Bakunin, em seu ensaio “A Comuna de Paris e a noção de Estado”4. Enquanto a segunda é uma citação de… Marx, no primeiro ensaio de “A Guerra Civil na França, 1871”5. Nós propositalmente baralhamos as cartas, para mostrar que as divergências – certamente bem reais – entre Marx e Bakunin, marxistas e libertários, não são tão simples e evidentes como cremos…

Aliás, Marx alegrou-se com o fato de que, no curso dos eventos da Comuna, os proudhonianos terem esquecido as teses de seu mestre, enquanto certos libertários observam com prazer que os escritos de Marx sobre a Comuna se afastam do centralismo em prestígio do federalismo.

Karl Marx tinha proposto, como palavra de ordem política central da Associação Internacional dos Trabalhadores – a Primeira Internacional – esta fórmula que ele registrou no Discurso Inaugural da AIT, em 1864: “A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Se a Comuna de 1871 era tão importante a seus olhos, isso se dava precisamente por ter sido a primeira manifestação revolucionária deste princípio fundador do movimento dos trabalhadores e trabalhadoras e socialista moderno.

A Comuna – escreve Marx no discurso que redigiu em nome da Primeira Internacional em 1871, “A Guerra Civil na França” (e nos textos preparatórios) – não foi o poder de um partido ou um grupo, mas “essencialmente o governo da classe trabalhadora”, um “governo do povo pelo povo”, isto é, “a retomada pelo povo e para o povo de sua própria vocação social” 6. Para isso, não poderíamos nos contentar em “conquistar” o aparelho de Estado existente: era necessário “quebrá-lo” e substituí-lo por outra forma de poder político, como fizeram os Communards desde seu primeiro decreto – a supressão do exército permanente e sua substituição pelo povo em armas. Eis o que escreve Marx em uma carta ao seu amigo Kugelmann em 17 de abril de 1871, ou seja, durante as primeiras semanas da Comuna: “No último capítulo do meu “18 de |Brumário”, noto, como você verá se o reler, que a próxima tentativa de revolução na França consistirá não mais em passar a máquina burocrática e militar para outras mãos, como tem sido o caso até agora, mas em destruí-la. Esta é a condição primeira de toda revolução verdadeiramente popular no continente. Foi também o que fizeram nossos heroicos camaradas de Paris”7. O que parece decisivo para Marx não é só a legislação social da Comuna – trazendo algumas medidas, como a transformação de fábricas abandonadas por seus proprietários em cooperativas operárias, com dinâmica socialista – mas, sobretudo, seu significado político como poder dos trabalhadores. Comoele escreve no Discurso de 1871, “essa nova Comuna, que quebra o poder do Estado moderno” foi obra de “trabalhadores simples”, que, “pela primeira vez, ousaram tocar no privilégio governamental de seus ‘superiores naturais’, os proprietários”.8

A Comuna não era nem uma conspiração nem um golpe, ela era “o povo agindo por si mesmo e para si mesmo”. O correspondente do jornal Daily News não encontra por lá nenhum chefe exercitando a “autoridade suprema”, o que leva a um comentário irônico de Marx: “Isso choca o burguês que tem imensa necessidade de ídolos políticos e de ‘grandes homens'” 9 . Certamente, os militantes da Primeira Internacional tiveram papel importante nos eventos, mas a Comuna não pode ser explicada pela intervenção de um grupo de vanguarda. Em resposta às calúnias da reação, que apresentou o levante como uma conspiração tramada pela AIT, Marx escreveu: “O entendimento burguês, todo impregnado pelo espírito policial, imagina naturalmente a Associação Internacional dos Trabalhadores como um tipo de conjuração secreta, cuja autoridade central comanda, de tempos em tempos, explosões em diferentes países. Nossa Associação não é, de fato, nada mais que o vínculo internacional que une os trabalhadores mais avançados dos diversos países do mundo civilizado. Em qualquer lugar, sob qualquer forma e sob quaisquer condições que a luta de classes ganhe consistência, é bem natural que os membros de nossa Associação se encontrem na linha de frente”.10

Se Marx fala às vezes de trabalhadores e às vezes de “povo” é porque está ciente de que a Comuna não é obra apenas da classe proletária no sentido estrito, mas também de setores da classe média empobrecida, de intelectuais, de mulheres de diversos grupos sociais, de estudantes e soldados, todos unidos em torno da bandeira vermelha e do sonho de uma República social. Sem falar os camponeses, ausentes do movimento, mas que por falta de seu apoio a Comuna estava condenada à derrota.

Outro aspecto da Comuna em que insiste Marx é seu caráter internacionalista. Certamente, o povo de Paris se insurge em 1871 contra os políticos burgueses capituladores que se reconciliaram com Bismarck e o exército prussiano. Mas esse sobressalto nacional de modo algum assume uma forma nacionalista; não apenas por razão do papel dos militantes da seção francesa da Primeira Internacional, mas também porque a Comuna convoca combatentes de todas as nações. A solidariedade da Associação Internacional dos Trabalhadores e as reuniões de apoio à Comuna realizadas em Breslau e outras cidades alemãs, por iniciativa dos trabalhadores socialistas, são demonstrações desse significado internacionalista do levante do povo parisiense. Como escreve Marx em uma resolução adotada por uma reunião de comemoração do aniversário da Comuna em março de 1872, os communards eram “a heróica vanguarda… do exército ameaçador do proletariado universal”. 11

O salto de tigre em direção ao passado: Outubro de 1917

Há, segundo Walter Benjamin, em suas Teses de 1940, uma constelação única entre um momento presente na luta dos oprimidos e um acontecimento preciso do passado, uma imagem única desse passado que corre o risco de desaparecer se não for reconhecida. Foi o que aconteceu durante a Revolução Russa de 1905. Somente Leon Trotsky viu a constelação entre a Comuna de 1871 e o combate dos Soviets russos em 1905: em seu prefácio, escrito em dezembro de 1905, à edição russa dos escritos de Marx sobre a Comuna, ele observa que o exemplo de 1871 mostra que “em um país economicamente mais atrasado, o proletariado pode chegar ao poder mais cedo do que em um país capitalista avançado”. No entanto, uma vez no poder, os trabalhadores russos serão levados, como os da Comuna, a tomar medidas que combinam a liquidação do absolutismo com a revolução socialista.12

Em 1905-1906, Trotsky estava bastante isolado na defesa do modelo de 1871 para a revolução russa. Mesmo Lenin, apesar de suas críticas às táticas mencheviques de apoio à burguesia anti-czarista, se recusa a considerar a Comuna um exemplo para o movimento operário na Rússia. Em sua obra de 1905, As Duas Táticas da Socialdemocracia, ele criticou a Comuna de Paris por ter “confundido os objetivos da luta pela república com os da luta pelo socialismo”; por esta razão é “um governo com o qual o nosso [futuro governo democrático revolucionário russo] não deve se assemelhar”. 13

As coisas serão bem diferentes em 1917. Desde as Teses de Abril, Lenin toma a Comuna de Paris como modelo para a República dos Sovietes que ele propôs como meta para os revolucionários russos, precisamente porque ela operou a fusão dialética entre a luta pela república democrática e a luta pelo socialismo. Esta ideia será também amplamente desenvolvida em O Estado e a Revolução e todos os outros escritos de Lenin no curso do ano de 1917. A identificação com os communards foi tão forte que, segundo as lembranças dos contemporâneos, Lenin celebrou, com orgulho, o dia em que – poucos meses depois de outubro de 1917 – o poder dos soviéticos conseguira subsistir um dia a mais que a Comuna de 1871 …

A revolução de Outubro é, portanto, um exemplo notável dessa ideia proposta por Walter Benjamin em suas Teses: toda revolução autêntica não é apenas um salto para o futuro, mas também “um salto de tigre em direção ao passado”, um salto dialético em direção a um momento no passado carregado de “tempo presente” (Jetztzeit).

Tanto Marx como Engels, Lenin ou Trotsky criticaram certos erros políticos ou estratégicos da Comuna: por exemplo, não tirar o dinheiro do Banco da França, não atacar Versalhes, esperar o inimigo nas barricadas de cada distrito. Isso não impediu de reconhecerem neste evento um momento sem precedentes na história moderna, a primeira tentativa de “tomar o céu de assalto”, a primeira experiência de emancipação social e política das classes oprimidas.

Atualidade da Comuna de Paris no século XXI

Cada geração tem sua própria leitura, sua própria interpretação da Comuna de 1871, em função de sua experiência histórica, das necessidades da sua luta presente, das aspirações e utopias que as motivam. O que faria sua atualidade hoje, do ponto de vista da esquerda radical e dos movimentos sociais e políticos do início do século XXI, desde os zapatistas de Chiapas ao “movimento dos movimentos”, o movimento altermundialista?

Certamente, a grande maioria dos militantes e ativistas hoje conhece pouca coisa sobre a Comuna. Não são poucas as certas afinidades entre a experiência da primavera parisiense de 1871 e a das lutas de hoje, sendo algumas ressonâncias que merecem destaque:

(a) A Comuna foi um movimento de auto-emancipação, auto-organização, iniciativa desde baixo. Nenhum partido tentou substituir as classes populares, nenhuma vanguarda quis “tomar o poder” no lugar dos trabalhadores. Os militantes da seção francesa da Primeira Internacional estavam entre os apoiadores mais ativos da insurreição popular, mas nunca quiseram se erigir enquanto “direção” auto-proclamada do movimento, nunca tentaram monopolizar o poder ou marginalizar outras correntes políticas. Os representantes da Comuna foram democraticamente eleitos nos arrondissements e submetidos ao controle permanente de sua base popular.

(b) Em outros termos: a Comuna de 1871 foi um movimento pluralista e unitário, no qual participaram os partidários de Proudhon ou (mais raros) de Marx, libertários e jacobinos, blanquistas e “republicanos sociais”. Certamente houve debates e diferenças, às vezes até confrontos políticos nas instâncias democraticamente eleitos da Comuna. Mas na prática agíamos comumente, nos respeitávamos, concentrávamos o fogo no inimigo e não no irmão de combate com os quais tínhamos desacordos. Os dogmas ideológicos de uns e de outros pesavam menos que os objetivos comuns: a emancipação social, a abolição dos privilégios de classe. Como reconheceu o próprio Marx, os jacobinos esqueceram seu centralismo autoritário e os proudhonianos seus princípios “antipolíticos”.

(c) Como vimos acima, foi um movimento autenticamente internacionalista, com a participação de lutadores de vários países. A Comuna elege para a direção de sua milícia um revolucionário polonês (Dombrowicz); faz de um trabalhador húngaro-alemão (Leo Frankel) seu comissário do trabalho. Certamente, a resistência à ocupação prussiana desempenhou um papel decisivo no desencadeamento da Comuna, mas o apelo dos insurgentes franceses ao povo e à socialdemocracia alemã, inspirado na utopia dos “Estados Unidos da Europa”, testemunha essa sensibilidade internacionalista.

(d) Apesar do peso do patriarcado na cultura popular, a Comuna se distingue por uma participação ativa e combativa das mulheres. A militante libertária Louise Michel e a revolucionária russa Elisabeth Dmitrieff estão entre as mais conhecidas, mas milhares de outras mulheres – designadas com raiva e ódio como pétroléuses pela reação versalhesa – participaram da luta de abril e maio de 1871. No dia 13 de abril, os delegados dos cidadãos enviaram à Comissão Executiva do Município um comunicadoo que afirma a vontade de muitas mulheres de participar da defesa de Paris, considerando que “a Comuna, representante do grande princípio que proclama a aniquilação de todo privilégio, de todas desigualdade, ao mesmo tempo se engaja a levar em conta as justas reivindicações da população inteira, sem distinção de sexo – distinção criada e mantida pela necessidade do antagonismo sobre o qual repousam os privilégios das classes dominantes”. O apelo foi assinado pelas delegadas, membras do Comitê Central de Mulheres Cidadãs: Adélaïde Valentin, Noëmie Colleville, Marcand, Sophie Graix, Joséphine Pratt, Céline Delvainquier, Aimée Delvainquier, Elisabeth Dmitrieff.

(e) Sem ter um programa socialista preciso, as medidas sociais da Comuna – por exemplo, a restituição aos trabalhadores das fábricas abandonadas pelos patrões – tinham uma dinâmica anti-capitalista radical.

É evidente que as características dos levantes populares de nosso tempo – por exemplo, a insurreição zapatista de 1994, ou do povo de Buenos Aires em 2001, aquele que abortou o golpe anti-Chavez na Venezuela em 2002, ou o do povo chileno em 2019, para citar apenas alguns exemplos recentes da América Latina – são muito diferentes daqueles da Paris insurgente de 1871. Mas muitos aspectos dessa primeira tentativa de emancipação social dos oprimidos permanecem de uma espantosa atualidades e merecem alimentar a reflexão das novas gerações. Sem memória do passado e suas lutas, não haverá combate pela utopia do futuro.

*Michael Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (França). Autor, entre outros livros, de Marxismo contra positivismo (Cortez)

Tradução: Gustavo Seferian.

Notas


3 No original, “mouvement ouvrier”. Sobre as particularidades e nuances da tradução da expressão e sua significância política, vide MATTOS, Marcelo Badaró. A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo. São Paulo: Boitempo, 2019 (N.T.).

4 M.Bakunine, De la Guerre à la Commune, textes établis par Fernand Rudé, Paris, Anthropos, 1972, p. 412.

5 Marx, Engels, Lénine, Sur la Commune de Paris, Moscou, Ed. du Progrès, 1971, p. 45.

6 K .Marx, La Guerre civile en France 1871, Paris, Editions Sociales, 1953, p.5&, 56 e « Prémier essai de rédaction », in La Guerre civile en France 1871, p.212.

7 Marx, Engels, Lénine, Sur la Commune de Paris, Moscou, Editions du Progrès, 1970, p. 284.
8 K.Marx, La Guerre civile en France, pp. 50,53.
9 K.Marx, « Prémier essai de rédaction »…pp. 192, 206.
10 .K.Marx, La guerre civile en France, pp. 68-69.
11Marx, Engels, Lénine, Sur la Commune de Paris, p.267.

12 L.Trotsky, Préface à Marx, Parizskaya Komuna, St. Petersburg, 1906, p.XX, in Leon Trotsky on the Paris Commune, Pathfinder Press, 1970, pp. 12-13.
13 Lenine, Les deux tactiques de la social-démocratie dans la révolution russe, ch. 10

 

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