A luta de classes na URSS

Jackson Pollock, Untitled, (c. 1945)
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Por SÉRGIO SILVA*

Comentário sobre o livro clássico de Charles Bettelheim.

O primeiro tomo de A luta de classes na União Soviética marca a intervenção de Charles Bettelheim na ampla discussão sobre uma revolução socialista.

A posição do autor sobre os caminhos seguidos pelo regime instaurado pela revolução de outubro de 1917 vem se definindo, de forma implícita, desde La transition vers l’économie socialiste (1968). Novos elementos sobre o mesmo tema foram desenvolvidos no trabalho Calcul économique et formes de proprieté (1970). Nesses dois livros, Bettelheim mantém no centro das suas atenções os problemas mais estritamente econômicos, em particular aqueles relacionados com o planejamento, limitando-se assim ao campo no qual é conhecido nos meios acadêmicos e no qual trabalha desde antes da Segunda Guerra Mundial.

No final dos anos sessenta, em cartas trocadas com Paul Sweezy por ocasião da invasão da Tchecoslováquia, Bettelheim torna mais explícita sua posição e intervém de modo aberto sobre a questão fundamental relativa à natureza da União Soviética. Agora Bettelheim propõe-se diretamente a contribuir para responder à necessidade de determinar as relações econômicas atualmente dominantes na União Soviética e as condições da formação dessas relações.

Sua posição é apresentada com todas as letras desde o Avant-Propos, quando esclarece os objetivos de seu trabalho: “A análise das transformações realizadas na União Soviética é, pelo menos, tão importante quanto a análise da sua situação atual: ele pode ser uma fonte insubstituível de ensinamentos e ajudar a evitar que outras revoluções proletárias sigam o mesmo caminho e cheguem, não ao socialismo, mas a uma forma específica de capitalismo tão opressora e agressiva quanto suas formas clássicas” (p. 15 da edição francesa). Seu objetivo é compreender como “uma revolução proletária pode se transformar em seu contrário: uma contrarrevolução burguesa” (idem).

Construção do socialismo

O livro de Bettelheim não é o de um historiador no sentido restrito do termo. No entanto, o livro certamente também representa uma contribuição à história desse país, seja pela apresentação original dos acontecimentos marcantes da fase estudada, seja pela periodização proposta, seja pela análise da vasta bibliografia, que vai dos clássicos sobre o tema (entre os quais destacam-se os diversos, livros de E. H.Carr), até trabalhos recentes, entre os quais vale a pena assinalar os de M. Grumbach (Contribution à l’étude du développement du capitalisme en Russie) e de Sigrid Grosskopf (Le pròbleme des cércales en Russie et la NEP), preparados na antiga École Pratique des Hautes Études.

Para o leitor brasileiro, o livro possui um valor particular, dada a quase inexistência de trabalhos interessantes sobre a história da União Soviética, mais precisamente de reexaminar cada história em função dos ensinamentos da própria história, ensinamentos esses consubstanciados em questões colocadas pelo presente, pelas lutas políticas atuais. Ora, na verdade essa é a principal tarefa do historiador. Segundo uma boa parte dos melhores historiadores “de oficio”, a história só tem sentido em função do presente.

Bettelheim é perfeitamente explícito. Ele afirma partir das questões colocadas pelas revoltas operárias nos países da Europa do Leste, pela política interna e externa atualmente seguida pela União Soviética (com destaque especial para a invasão da Tchecoslováquia), pelas questões sobre o “caminho para o socialismo” levadas pelo movimento socialista em todo o mundo, pela evolução do Terceiro Mundo e, finalmente, pela evolução da Revolução Chinesa, em particular após a revolução cultural.

Comecemos por um dos aspectos mais controversos. Será justo analisar a revolução bolchevique à luz da revolução chinesa? Ora, queiramos ou não, a segunda representa, historicamente, uma “continuação” da primeira. Como analisar a “construção do socialismo” na primeira sem considerar o que foi feito na segunda? Afinal, os próprios contornos específicos do socialismo só podem ser delineados a partir da própria prática social de construção dessa sociedade. Por isso, durante muito tempo, a ideia de socialismo, para ser desenvolvida, tinha como ponto de referência obrigatório o que era feito na União Soviética.

A revolução chinesa, a evolução da construção do socialismo na China, mudou essa realidade. E, hoje, quando se tenta uma análise da própria revolução bolchevique; quando se tenta entender o processo de transformação da União Soviética, é indispensável considerar a revolução chinesa. Se o socialismo não se reduz a uma simples utopia, se o consideramos como um resultado concreto da história, esse procedimento é indispensável para que saibamos, vamos dizer, do que estamos falando, isto é, para que saibamos o que, concretamente, podemos considerar como socialismo. Não se trata de comparar o “modelo” chinês com o “modelo” soviético, o que não possui praticamente nenhuma utilidade. Trata-se de saber o que é socialismo, a partir do próprio desenvolvimento histórico, sem o qual a palavra não tem sentido.

Por exemplo, a ideia que se tinha sobre o papel da industrialização na construção do socialismo, sobre o papel dos camponeses e dos trabalhadores rurais em geral, as ideias sobre a chamada “acumulação socialista” se transformaram profundamente. É evidente que as “soluções” chinesas são o resultado de determinadas condições histórias que alguns indicam como “favoráveis”. Seria estultice pensar que os conflitos com os camponeses e a pequena burguesia rural foram desejados pelos dirigentes bolcheviques ou que estes conflitos aconteceram devido à pouca inteligência destes dirigentes. Não é por acaso que o partido comunista chinês se desenvolveu no campo, enquanto os bolcheviques praticamente não conseguiram implantar-se no meio rural.

Esperando a revolução

Todas as experiências históricas são relativas. Mas não se pode, por isso, cair num relativismo total que consiste, em última análise, na negação da contribuição de qualquer experiência na medida em que ela foi obrigatoriamente desenvolvida em condições particulares. Essa posição conduz a um “objetivismo” histórico perfeitamente estéril, onde toda experiência é “interessante” e, ao mesmo tempo nada nos ensina concretamente.

Não devemos negar que muitos tendem a utilizar de modo simplista a experiência alheia, a analisar, por exemplo, o desenvolvimento da União Soviética ou outras realidades em função de um “modelo” chinês. Esse não é, entretanto, o caso de Bettelheim que, por isso, deve ser lido com atenção devida por aqueles que não estão dispostos, a como se diz, “jogar fora a criança com a água do banho”.

A crítica do “economicismo” ocupa um lugar central em A luta de classes na União Soviética. Economicismo que Bettelheim define através da “problemática das forças produtivas” e da subestimação das relações sociais de produção. Seria ingênuo pensar que a crítica é endereçada aos dirigentes bolcheviques e tentar respondê-la através da listagem das mil e uma condições históricas “adversas” que explicariam esse “desvio”. O destinatário não é outro senão o chamado pensamento marxista moderno. Maia uma vez, o Autor se coloca em função da atualidade.

Ao apresentar essa crítica, o Autor tem em vista – e disso adverte o leitor desde o Avant-propos a situação do movimento socialista atual, em particular nos países capitalistas avançados. Ele tem em vista consequências precisas da “problemática das forças produtivas”: o fato de que nos países capitalistas avançados, dirigentes políticos e intelectuais socialistas, com raríssimas exceções, se limitam a ficar “marcando passo”, esperando que “a crise geral do capitalismo” produza os seus efeitos. Colocando em primeiro plano o desenvolvimento das forças produtivas considera-se que “as condições objetivas” da revolução já estão dadas e só falta uma conjuntura favorável. Note-se o efeito devastador dessa ideia ao nível da análise, que se torna de antemão desnecessária ou puramente ilustrativa.

O planejamento e as relações sociais de produção

A colocação do desenvolvimento das forças produtivas em primeiro plano, sem a sua subordinação ao desenvolvimento das relações sociais de produção de novo tipo, conduz a uma ideia errônea do papel do planejamento (e, mais em geral, da intervenção econômica do Estado e, em última análise, do próprio Estado). A tal ponto que as relações sociais de tipo novo são simplesmente confundidas com o planejamento. Bettelheim fala sobre isso com a autoridade de quem opera, dessa forma, uma revisão importante no seu próprio pensamento.

Mas quantos não chegaram a reduzir e quantos ainda não se sentem autorizados a resumir as diferenças econômicas entre socialismo e capitalismo às diferenças entre o planejamento centralizado e planejamento indicativo? No início dos anos sessenta Bettelheim foi levado a combater a ilusão dos dirigentes cubanos sobre a possibilidade de centralizar a fixação de todos os preços e, assim, “eliminar a economia de mercado”. A ilusão do planejamento faz pensar que as relações sociais podem ser abolidas por decreto.

Quantos embarcaram, mesmo se por períodos de tempo limitados, na canoa do socialismo árabe, do socialismo africano, ou mesmo do socialismo indiano? Quantos não confundem, à esquerda e à direita, socialismo com intervenção direta do Estado na economia? O livro de Bettelheim, ao falar da União Soviética de 1917 a 1928, tem todas essas questões, presentes. E o Autor, que se coloca essas questões, embora principalmente como acadêmico, as viveu como assessor ou pesquisador trabalhando em vários países do Terceiro Mundo, de Cuba à China e Argélia, passando pela Índia.

Analisar a história à luz do presente parece-me o ponto de vista correto. Só podemos lamentar que esse método não tenha levado mais adiante, de tal modo que o reexame da história da revolução russa pudesse ser realizado em função de questões mais diretamente relacionadas com a situação dos países capitalistas avançados. Isso certamente contribuiria para evitar interpretações simplistas. O fato de que a análise não tenha chegado a tal ponto não deve, entretanto, ser atribuído unicamente ao Autor. As suas raízes encontram-se, sem dúvida, nas próprias debilidades do movimento socialista europeu.

Nenhuma das questões fundamentais que o livro levanta poderia ser levantada se o Autor não tratasse a história com a objetividade de quem analisa um processo de lutas sociais, excluindo as explicações simplistas como as que veem a história enquanto realização de ideia de um punhado de líderes. Dessa forma contribui para enterrar os mitos do stalinismo, as explicações ilusórias sobre a dominação da burocracia, assim como as velhas e amarrotadas ideias que tentam explicar a evolução dos países socialistas a partir dos efeitos congenitais encontrados em Marx, Lenin ou no partido bolchevique, considerados como demiurgos autoritários. No livro de Betteilheim, os conflitos sociais ganham o primeiro plano e os homens, mesmo os mais ilustres, aparecem no seu devido lugar: como atores da história.

*Sérgio Salomé Silva (1946-2021) foi professor do departamento de sociologia da Unicamp. Autor, entre outros, do livro Expansão Cafeeira e Origens da Indústria (Alfa Omega).

Publicado originalmente no jornal Movimento, no. 90, 1977.

Referência


Charles Bettelheim. A luta de classes na URSS. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

 

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