Por OSVALDO COGGIOLA*
A mobilização colombiana está só em seu estágio inicial. Ela faz cambalear um regime chave para a manutenção da ordem imperial na América Latina
En la noche, después del toque de queda, derribaban puertas a culatazos, sacaban a los sospechosos de sus camas y se los llevaban a un viaje sin regreso. Era todavía la búsqueda y el exterminio de los malhechores, asesinos, incendiarios y revoltosos del Decreto Número Cuatro, pero los militares lo negaban a los propios parientes de sus víctimas, que desbordaban la oficina de los comandantes en busca de noticias. “Seguro que fue un sueño”, insistían los oficiales. “En Macondo no ha pasado nada, ni está pasando ni pasará nunca. Este es un pueblo feliz”. Así consumaron el exterminio de los jefes sindicales.
Gabriel Garcia Márques, Cien años de soledad
Em Colômbia, na última semana, um povo se levantou, não só contra o governo (Iván Duque), último avatar de uma dinastia de narco-criminosos, mas contra todo um regime político, cuja fachada “democrática” mal oculta sua raiz policial/militar, conivente com o acionar assassino de grupos paramilitares, e apoiado pelo capital financeiro internacional e o FMI. O regime que, nas últimas décadas, ostenta o recorde latino-americano e mundial de assassinatos de dirigentes e ativistas sindicais.
……………………….Violência contra sindicalistas na Colômbia (1971 – 2018)
Segundo informações de 2013, desde 1984, mais de 2.800 sindicalistas haviam sido assassinados, quase 100 sindicalistas por ano, com um percentual de impunidade de 94,4%; houve também 3.400 ameaças de morte, 1.292 deslocamentos, 529 detenções, 192 ataques a sindicatos, 208 assédios, 216 desaparecimentos forçados, 83 casos de tortura e 163 sequestros de sindicalistas, segundo dados da Confederação Geral do Trabalho (CGT); 64% dos assassinatos de sindicalistas em todo o mundo eram cometidos na Colômbia. Entre janeiro de 1973 até dezembro de 2018, foram registradas 14.992 violações à vida, liberdade e integridade física de sindicalistas, com 3.240 homicídios que vitimaram mais de 480 sindicatos. No ano e meio que nos separa dessa estatística, as coisas só pioraram. De acordo com um levantamento recente, em 2020 foram mais de 250 crimes cometidos por grupos paramilitares e gangues criminosas, operando em conluio com o Estado. Duque, além disso, reativou a pulverização com glifosato de cultivos de folha de coca, interrompida em 2015 por recomendação da Organização Mundial da Saúde e depois de múltiplos protestos de camponeses. Duque insistiu na importância dos militares nos controles de protestos populares, dando continuidade ao “uribismo” – termo que identifica o grupo ligado ao ex-presidente Álvaro Uribe, mandante da atual marionete presidencial.
Na última semana, os protestos contra o projeto reacionário de reforma tributária do governo, que elevava brutalmente os impostos pagos pelos trabalhadores, deixaram, até agora, um saldo de 24 mortos e mais de 800 feridos, 89 desaparecidos, além de pelo menos seis estupros, segundo informações da Defensoria Pública colombiana. Muitos dos feridos foram vítimas de armas de fogo. O Escritório de Direitos Humanos da ONU acusou as agências de segurança colombianas de “uso excessivo da força”, devido ao ocorrido em Cali na noite de 3 de maio, quando a polícia abriu fogo contra os manifestantes. O ministro da Defesa da Colômbia, Diego Molano, acusou grupos armados “criminosos” pela violência nos protestos. Diante dos protestos, o presidente Iván Duque pediu que o Congresso tirasse da pauta de votação o projeto de lei da reforma tributária para que este fosse revisado e virasse “fruto de consenso, de modo a evitar incerteza financeira”. “A reforma não é um capricho, é uma necessidade”, insistiu, no entanto, Duque.
Como se chegou a isso? A partir de 28 de abril, uma grande greve nacional contra a reforma paralisou a capital colombiana e o resto do país. Mais de 130 piquetes e mobilizações foram registrados em toda a Colômbia. Em Bogotá, o tráfego foi paralisado desde o início com piquetes nas entradas da cidade, garantidos por trabalhadores, estudantes e transportadores que aderiram à greve. Os cortes foram realizados atravessando caminhões, com pedras nas estradas e com pneus em chamas. A cidade foi o epicentro de uma grande mobilização que reuniu as centrais sindicais do país, as confederações de aposentados, estudantes públicos e privados, indígenas e camponeses. Houve confrontos com o esquadrão da morte Esmad, responsável por mais de uma dezena de assassinatos no ano passado, após a rebelião popular ocorrida na capital pelo assassinato de um jovem trabalhador pela polícia local. Medellín fechou o metrô. Em Bucaramanga, Tunja, Cartagena e outras cidades houve várias mobilizações e um panelaço a partir das 6 da tarde.
Com a reforma tributária, o governo tentava enfrentar um quadro de falência fiscal. A Colômbia teve um déficit fiscal de 7,8% em 2020, seu pior desempenho em meio século. Com a reforma, o governo pretendia arrecadar 6.300 milhões de dólares entre 2022 e 2031, às custas do bolso dos trabalhadores e do povo; 87% da arrecadação viria dos salários e apenas 13% dos lucros capitalistas, em um quadro onde a pobreza já atinge 42,5% da população. Em 2019, havia 17,4 milhões de pobres; atualmente, há 21 milhões, em meio a um colapso da saúde causado pelo coronavírus. Os hospitais estão à beira do colapso e os profissionais de saúde estão exaustos. A Colômbia acumula mais de 2,8 milhões de infecções e quase 74.000 mortes: é o quarto país com mais infecções e o quinto com mais mortes na América Latina e no Caribe.
O projeto de reforma estabelecia o aumento de impostos sobre a renda e sobre produtos básicos, de forma a aumentar a arrecadação tributária e evitar que a dívida colombiana gerasse a perda de mais pontos nas avaliações de risco de agências internacionais, além de criar uma renda básica e um fundo de conservação ambiental. O governo defendia a necessidade de arrecadar o equivalente a 2% do PIB e “sustentar os programas sociais implementados durante a pandemia de Covid-19”. Sem falar em que a histórica corrupção colombiana iria engolir as migalhas destinadas às “cenouras” do projeto (meio ambiente, “renda básica” – auxílio emergencial), a parte do leão da nova arrecadação seria destinada à remuneração do grande capital financeiro – usurário, em especial internacional, o que foi confirmado, entre linhas, por informações da grande mídia colombiana: “Economistas de diferentes vertentes concordam que a Colômbia necessita de uma reforma tributária que permita arrecadar mais para manter suas contas em dia e também preservar a reputação de estabilidade colombiana perante credores internacionais” (grifo nosso). Ou seja, saque ao povo para remunerar a dívida usurária com os bancos e fundos de investimento, especialmente internacionais. O povo foi para a rua.
A greve geral nos dias 28 e 29 de abril foi estendida durante os dias 30 de abril e 1º de maio. Tornou-se assim uma greve geral e uma rebelião popular com mobilizações, panelaços e lutas de rua contra as forças repressivas. O alcance das medidas de força, convocadas pela Comissão Nacional de Desemprego, que reúne as centrais sindicais (CUT, CGT e CTC), provocou uma primeira reação do presidente. Na sexta-feira 30, o governo anunciou uma modificação no projeto: as massas populares, já lançadas ao combate, insistiram na retirada total do projeto. Em 1º de maio, a rebelião se espalhou por todo o país e ganhou novo ímpeto. Além das manifestações na capital Bogotá, que se dirigiram à Plaza de Bolívar, próximo à sede do Poder Executivo, e à casa do presidente Duque, ocorreram enormes passeatas em Barranquilla, Medellín, Cali e Neiva. À tarde, as organizações camponesas anunciaram sua adesão ao protesto.
Mesmo a mídia de direita pediu a retirada da reforma, que só fez acender a faísca da rebelião popular. Nos dias anteriores o governo e a mídia tentaram desativar a mobilização dizendo que ela não atendia às necessidades de luta contra a Covid-19. Os professores participantes responderam que o combate à presença era o que faltava para reduzir as infecções e esse era um dos objetivos da greve educativa nacional. Finalmente, no domingo 2 de maio, o governo foi forçado a retirar totalmente o projeto de reforma. Mesmo quando Duque anunciou a suspensão do projeto, manteve-se o clamor popular, com o slogan “a greve segue” – em referência ao nome do movimento que encabeçou os protestos: Greve Nacional. Duque é uma testa de ferro do grande capital e seu agora ex-ministro da Fazenda, Alberto Carrasquilla, que renunciou sob pressão das manifestações, é famoso por sua ortodoxia neoliberal em favor de grandes empresas. Ambos personificam o “modelo econômico” que os protestos têm como alvo, que faz do país um dos mais desiguais da América Latina e do mundo. O movimento popular argumenta que a economia colombiana está “fincada no clientelismo político” que eximiu de impostos os grandes oligopólios da agricultura e da mineração, entre outros setores.
Mas a reforma tributária foi só a faísca. A raiva dos manifestantes se manifesta, centralmente, contra as “forças de segurança” de um regime de características policiais firmadas ao longo de mais de meio século, que sob pretexto de combater à guerrilha (hoje quase totalmente integrada ao regime político: Juan Manuel Santos, Timochenko, líder das Farc, firmou um acordo de paz em 2016, mediado pelo governo cubano) usou-o para expropriar e deslocar milhões de camponeses, deixando-os na miséria e favorecendo a concentração fundiária. Em setembro de 2020, antecipando a indignação atual, e também durante protestos, o assassinato de 13 pessoas sob repressão policial em Bogotá despertou o debate sobre a necessidade de “reforma da polícia”, incluindo o desmantelamento de um esquadrão encarregado de reprimir manifestações. A polícia colombiana faz parte do Ministério da Defesa e está estruturada – em sua capacitação e objetivos – para o contexto de conflito armado contra um inimigo concreto: as “forças marxistas”.
A rebelião popular foi respondida com a militarização das ruas. Senadores do partido no poder (o “Centro Democrático”) propuseram que se estabelecesse um estado de comoção interna, um estado de sítio. A “Frente Progressista”, de oposição, não mobilizou forças no dia 28, e apenas quebrou seu silêncio para repudiar os “saques” durante as mobilizações. A substituição de Carrasquilla busca gerar “consenso em torno da reforma tributária” com setores de direita e de centro e formar um “conselho consultivo”. Apesar da retirada da reforma e da renúncia do ministro, a greve continua transformada em greve política sob a palavra de ordem de “Fora Duque “. Em declaração conjunta, as centrais sindicais apelaram à desmilitarização das cidades, à vacinação massiva e ao fim da presencialidade escolar. O movimento indígena Minga, junto com outras organizações sociais, passou a defender a “renúncia do presidente Duque”. Caravanas de caminhões cortam os acessos e mobilizações às praças e parques, buscando o apoio da população. A resposta à repressão em Cali foi de centenas de milhares nas ruas, a cidade foi batizada de “capital nacional da Resistência”.
Em Popayán, capital de Cauca (departamento com o maior número de deslocados camponeses e violência paramilitar), os manifestantes atearam fogo a estabelecimentos policiais. A Esmad ingressou na Universidade Industrial de Santander, reprimindo os alunos. Duas semanas atrás, Duque havia criado uma Justiça militar “com independência financeira, administrativa e operacional” que não estaria sob o mando do militarizado Ministério da Defesa. No entanto, a iniciativa foi mal recebida, porque os membros da polícia seguirão sendo julgados por militares, a exemplo da PM no Brasil, que possui fórum judicial próprio. Uribe reivindicou por meio de sua conta no Twitter o “direito dos soldados e policiais de usarem suas armas para defender sua integridade”. A força executora dos massacres é o serviço de segurança e espionagem – Esmad (Escuadrón Móvil Anti Disturbios), cuja dissolução é exigida pelos manifestantes. A mobilização colombiana está só em seu estágio inicial. Ela faz cambalear um regime chave para a manutenção da ordem imperial na América Latina, no único país da América do Sul com costas no Atlântico e no Pacífico, com cinco bases militares norte-americanas, e, também, no Caribe. Uma nova etapa política pode começar no nosso continente. O combate contra o regime mais reacionário da região, o do genocida Bolsonaro, ganha um aliado de peso decisivo onde menos o capitão e sua corte militar o esperavam.
*Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História e Revolução (Xamã).