Por BEN FINE & ALFREDO SAAD FILHO*
Prefácios dos autores para o livro recém-editado.
Prefácio da edição brasileira
A teoria do valor é o núcleo da economia política marxista e Marx explica sua teoria do valor em grande detalhe em sua magnum opus, O Capital. Ali são examinadas as formas do valor e os processos capitalistas de produção, extração, circulação e distribuição de (mais) valor, em todas as suas formas. Ao fazê-lo, Marx destaca as conexões entre diferentes aspectos do capitalismo e é essa integração que garante à sua economia política seu poder analítico e o potencial de explicar as características sistêmicas do capitalismo que outras escolas de pensamento nas ciências sociais têm dificuldade em analisar.
A economia política marxista se concentra no estudo das condições materiais de reprodução social no capitalismo. Segue-se que a teoria do valor, conforme apresentada em O capital – e resumida e explicada neste livro – é uma teoria das classes, das relações de classe e da exploração no capitalismo. O exame dessas relações de produção e exploração, assim como dos conflitos aos quais elas inevitavelmente dão origem, permite-nos compreender as contradições do capitalismo como um modo de produção, lançando luz sobre sua dinâmica, desdobramentos históricos, crises, limitações e a possibilidade de transcendê-lo.
Como explicado em O capital, a teoria do valor de Marx é necessariamente dinâmica e, portanto, incompatível com o conceito – fundamental à tradição neoclássica – de “equilíbrio”. Em vez disso, o foco de Marx está nas forças e tendências intrínsecas ao capitalismo e em sua interação com as contratendências que lhes correspondem, da qual emerge uma gama de resultados complexos. A abordagem de Marx reconhece também os limites da análise abstrata e a necessidade de incorporar a ela materiais historicamente específicos, seja no que se refere a fenômenos amplos, como os estágios do capitalismo, seja em relação a aspectos mais concretos, como as relações entre indústria e finanças, ou os conflitos de classe próprios a cada país.
Por conta disso, a economia política de Marx pode nos ajudar a superar o caráter fragmentário da experiência da exploração em sociedades capitalistas, além de mostrar que a produção capitalista necessariamente envolve conflitos sociais na produção e na distribuição. Marx desenvolveu a abordagem apresentada em O capital com o intuito de fornecer subsídios às ações voltadas à superação desse sistema de produção, não apenas como resultado de um trabalho teórico consistente, mas – e com urgência – a fim de articular a possibilidade da liberdade humana, e também da sobrevivência biológica da humanidade que se encontra ameaçada pela rápida degradação ambiental promovida pelo capitalismo moderno.
No Brasil, como em outros lugares, se faz necessária uma ação em massa informada, coordenada e organizada para enfrentar esses e outros problemas importantes de nossa época, entre eles o desemprego estrutural, a pobreza em meio à abundância, a disseminação de doenças curáveis ou controláveis (cujo poder destrutivo revelou-se de maneira dramática em 2020 com a pandemia do coronavírus), o analfabetismo funcional, a opressão cultural, étnica e econômica. Ao abordar esses desafios e suas possíveis soluções, Karl Marx oferece uma análise dos preconceitos atuais e que pode inspirar soluções criativas. Esperamos que este livro possa dar suporte a esse esforço, fomentando o debate e contribuindo para a busca de soluções radicais para os desafios colocados pelo capitalismo global.
Prefácio da sexta edição em inglês
O Capital de Marx foi escrito originalmente no início dos anos 1970. O livro era um produto do seu tempo. Na Grã-Bretanha e em outros lugares, o interesse na economia política de Marx havia sido despertado após vários anos de uma intensa repressão, realizada sob o pretexto de culpar os trabalhadores e os movimentos de esquerda pelo fim da expansão econômica do pós-guerra. Esse interesse cresceu e foi alimentado pelo evidente declínio da economia capitalista mundial e pela rejeição das explicações então vigentes do crescente mal-estar econômico associado à estagflação. Muita coisa mudou desde então e as edições sucessivas deste livro, a seu modo, refletiram as transformações da economia global e da economia política.
A terceira edição foi lançada em 1989 e a quarta, publicada em 2004 pela Pluto Press, introduziu este pequeno livro a novos tempos e a uma nova audiência. A ascensão do neoliberalismo nas décadas de 1980 e 1990 reformulou o mundo capitalista, expandiu a dominância do capital global para quase todos os cantos do planeta e – com o intuito de dar suporte a essas transformações – remodelou o sistema político. As expectativas de mudanças econômicas, políticas e sociais foram reduzidas ao longo do tempo, num processo de esvaziamento do Estado em face da redução da força e da organização dos movimentos progressistas.
Conforme as grandes mobilizações das décadas de 1960 e 1970 ficavam no passado, uma nova geração cresceu com esperanças, demandas e expectativas muito reduzidas. Pela primeira vez desde meados do século XIX, parecia não haver alternativas ao capitalismo e as exceções, invariavelmente marginais, só conseguiam subsistir – de maneira precária e pouco atraente – nas fendas do admirável mundo “globalizado”. A quarta edição, que oferecia uma pequena contribuição para a elaboração de respostas a esses enormes desafios, foi bem recebida por um amplo público em vários países.
A publicação da quinta e, agora, da sexta edição de nosso livro parece ter antecipado – e, espera-se, pode contribuir para – um processo de renascimento da economia política em geral e da economia política marxista em particular. Uma série de fatores fundamentam essa visão otimista.
Em primeiro lugar, embora a economia ortodoxa tenha reforçado seu domínio excludente sobre a disciplina – descartando a heterodoxia, que, segundo ela, não satisfaz as normas do rigor matemático e estatístico –, há crescentes sinais de insatisfação com a ortodoxia, bem como uma procura cada vez mais intensa de alternativas entre os que estudam economia e outras ciências sociais. Isso se manifesta, entre outras coisas, nas demandas por heterodoxia, pluralismo e alternativas no ensino de economia.
Em segundo lugar, após duas décadas de dominância do pós-modernismo e, principalmente, do neoliberalismo na definição de agendas intelectuais nas ciências sociais, vemos agora uma reação contra os extremos de seus piores excessos, tanto na teoria quanto na prática. O pensamento crítico voltou-se para a compreensão da natureza do capitalismo contemporâneo, algo que se reflete, entre outras coisas, na ascensão de conceitos como neoliberalismo, financeirização, globalização e capital social. Promove-se assim, inevitavelmente, a reflexão acerca de questões econômicas fora da própria disciplina da economia, o que, por sua vez, fomenta a busca por orientação na economia política.
Em terceiro lugar, o interesse na economia política tem sido promovido por uma série de desenvolvimentos materiais recentes. Entre eles, inclui-se a crescente percepção de que a degradação ambiental, principalmente através do aquecimento global, está intimamente relacionada ao capitalismo; as consequências do colapso da União Soviética e o reconhecimento de que o capitalismo não forneceu uma alternativa progressista, mesmo em seus próprios e estreitos termos; e a erupção de guerras e ocupações que, mesmo quando travadas em nome do antiterrorismo ou dos direitos humanos, não escondem seu caráter imperial.
Em quarto lugar, o longo período de relativa estagnação após o colapso do boom do pós-guerra e a ascensão do pós-modernismo e do neoliberalismo teve o efeito paradoxal de permitir que, apesar do baixo crescimento, a economia capitalista fosse vista como minimamente bem-sucedida. A erupção das crises financeiras na última década – em particular, e de maneira mais dramática, a crise global iniciada em meados de 2007 – abalou essa perspectiva. Ela trouxe à tona o papel central desempenhado pelas finanças no capitalismo contemporâneo. As relações sistêmicas entre finanças, indústria e o resto da economia devem ocupar um lugar de destaque na temática da economia política. O capitalismo fracassou de maneira evidente em seus próprios termos, mesmo sob condições excepcionalmente favoráveis. Por isso mesmo, a defesa do socialismo precisa ser promovida como nunca antes. E essa defesa deve se fundamentar numa análise marxista, tanto por sua crítica do capitalismo quanto pela luz que ela lança sobre o potencial de alternativas.
Cada uma dessas questões é analisada em maior ou menor grau nesta nova edição. Mas o principal objetivo do livro continua sendo o de fornecer uma exposição tão simples e concisa da economia política de Marx quanto a complexidade de suas ideias permite. Como concebemos um livro curto, os argumentos são condensados, mas apresentados de maneira simples; é importante enfatizar, porém, que parte do material exigirá uma leitura cuidadosa, principalmente nos capítulos finais. Não é de surpreender que, ao longo de suas várias edições, o texto tenha crescido consideravelmente. Seu tamanho original de 25.000 palavras mais do que dobrou à medida que novos tópicos foram adicionados, com base tanto na economia política de Marx quanto em sua relevância contemporânea.
Além disso, com o tempo, novos trechos foram incluídos com o intuito de ressaltar, em cada capítulo, as controvérsias e debates que permearam a recepção da obra de Marx, além de apresentar sugestões de leituras adicionais que oferecerão orientação àquelas e àqueles interessados em textos mais acadêmicos. Infelizmente, isso fez com que edições sucessivas perdessem um pouco da simplicidade das anteriores (embora, para facilitar a leitura, notas de rodapé continuem sendo omitidas). Essas dificuldades (que esperamos não ser de grande monta) talvez sejam agravadas por referências ocasionais às diferenças entre a economia política de Marx e a economia ortodoxa, que podem complicar um pouco a leitura por parte dos não-economistas. Mas essas complexidades podem ser negligenciadas quando necessário – além de oferecer, caso haja persistência, alguns insights compensadores.
Esta sexta edição, cuidadosamente revisada, chega em um momento particularmente desafiador. O capitalismo neoliberal está no meio de uma crise sem precedentes, a qual não apenas revelou os limites da finança “liberalizada”, mas, de maneira mais significativa, colocou o projeto neoliberal global pela primeira vez na defensiva – embora ele pareça extraordinariamente resistente.
Agora é possível para o grande público questionar abertamente a coerência e sustentabilidade do neoliberalismo, e até a conveniência do próprio capitalismo. Esses debates emergentes e o crescimento simultâneo, embora dolorosamente lento, de movimentos e organizações sociais radicais, foram apoiados pela gradual constatação de que o capitalismo tem desestabilizado fundamentalmente o meio ambiente do planeta, e de que ele representa uma ameaça imediata à sobrevivência de inúmeras espécies, inclusive a nossa.
O Capital de Marx não é um livro sobre o meio ambiente, nem sobre o neoliberalismo, embora inclua uma breve seção sobre o primeiro e um capítulo atualizado sobre a crise financeira global. Seus objetivos são mais estreitos e, ao mesmo tempo, mais abstratos e ambiciosos: ele analisa e explica os elementos cruciais da crítica mais sustentada, consistente e intransigente já feita do capitalismo como um sistema – a qual foi, originalmente, desenvolvida por Karl Marx.
Conforme o capitalismo luta para conter suas crises mais recentes, crescem a relevância e a urgência dos escritos de Marx – e também a sua popularidade. Eles agora estão bem classificados em várias listas de livros mais vendidos e várias edições diferentes podem ser encontradas mesmo nas principais livrarias, não obstante o fato de que as obras de Marx estejam, também, amplamente disponíveis na internet, onde podem ser baixadas gratuitamente.
Esperamos que você faça uso dessas obras. O Capital de Marx não pretende substituir a obra original; em vez disso, nosso objetivo é facilitar sua leitura dos escritos econômicos de Marx, fornecendo uma visão estruturada de seus principais temas e conclusões. Esperamos que este livro apoie a sua própria tentativa de compreender o capitalismo, seus pontos fortes e fracos, e que ele dê suporte a suas lutas contra ele. Gostaríamos de agradecer e incentivar aqueles que continuam a estudar e ensinar seriamente a economia marxista, num período em que isso tem sido extraordinariamente difícil.
Ben Fine é professor de economia na School of Oriental and African Studies (SOAS)-University of London. Autor, entre outros livros, de Microeconomics: A Critical Companion (Pluto Press).
*Alfredo Saad Filho é professor no Departamento de Desenvolvimento Internacional do King’s College London. Autor, entre outros livros, de O valor de Marx (Unicamp).
Referência
Ben Fine & Alfredo Saad Filho. “O Capital” de Marx. Tradução: Bruno Höfig, Guilherme Leite Gonçalves, Renato Gomes e Leonardo Paes Müller. São Paulo, Contracorrente, 2021, 216 págs.