O Brasil não tem perdão

Guillaume-Benjamin-Amand Duchenne de Boulogne (1806-1875), Expressão de terror, Fotografia, 1862.
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Por ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES*

O sagrado, o profano e o psicológico: Em nenhuma dessas dimensões estivemos perto do patamar civilizatório mínimo para a dignidade da pessoa humana

A infame chacina de Jacarezinho mostrou aos brasileiros dotados de um mínimo de emotividade – os outros merecem ser submetidos a estudos psicológicos sérios -, três coisas de maneira definitiva: 1) “Deus” não é brasileiro, apesar das narrativas religiosas sempre justificarem acontecimentos como esse, desde a escravidão; 2) a luta de classes aqui é apenas um pano de fundo para esconder a verdadeira luta pela vida; e 3) a sociedade brasileira jamais foi progressista, no sentido de almejar uma profunda reforma da vontade coletiva para a redução das imensas desigualdades entre as diversas camadas sociais dentro das nossas fronteiras. Aqui estão reunidas as três reais dimensões de um país que jamais foi digno de pena: o sagrado, o profano e o psicológico. Em nenhuma dessas dimensões estivemos perto do patamar civilizatório mínimo para a dignidade da pessoa humana.

Destarte, se realmente somos um país de pulsões messiânicas, como demonstra a nossa história, ainda não tivemos a sorte de ter um líder antissistema que rompesse os grilhões da forma como nos enxergamos, forma esta afiançada por uma ínfima parte da população brasileira: a mais abastada. Os intelectuais de todas as estirpes, em qualquer tempo, sempre buscaram formas de apascentar o rebanho nacional, respondendo a uma das três questões acima pelo menos. Nada resta claro até hoje. Nesses 130 anos de República, talvez aquele que mais chegou perto de todos – sendo um dos mais ignorados, obviamente – foi o intelectual Jessé Souza. Ele, nos seus diversos livros publicados, especialmente sobre o tema a “elite do atraso” (1), conseguiu mostrar a verdadeira face de quem realmente manda nesse país: a face do ódio das elites dominantes pelos pobres.

Ora, não foi justamente esse ódio, disseminado historicamente por uma classe dominante, que alcançou com seus tentáculos a classe que vive-do-trabalho (2) para entronizar um sentimento de podridão pelos menos favorecidos? Deus, através dos seus representantes terrestres, não corroborou com as diversas formas repugnantes de opressão ao longo da nossa história? Se o divino é um só, por que ele agiu tão diferentemente nos países do norte em relação aos países do hemisfério sul? Mais. Por que no norte do planeta o cisma cristão, séculos e séculos atrás, propiciou tantos benefícios para a maioria da população, a despeito das duas grandes guerras mundiais, e aqui estamos hoje com uma parte dessas seitas como anfitriões de narcomilícias neopentecostais(3)?

Deve estar complicado agora para a maioria dos que se pré-julgam religiosos explicar os desígnios de deus para as famílias que perderam seus entes queridos em uma repressão irracional de um Estado corrompido pelos endinheirados e voltado deliberadamente para o extermínio dessa “ralé”, como diz Jessé Souza. Afinal, que pai celestial permitiria tal atrocidade contra os seus favoritos? Não, senhores. Deus – para quem nele acredita – não tem a ver com isso. Além disso, por que “o todo poderoso” seria mestiço de origem? A elite deste país não aceitaria tal vergonha: ter um deus impuro. Logo, retirando do cenário tupiniquim tal ignomínia, a fé predominante por estas bandas sempre esteve muito mais restrita ao imaginário do colonizador, do que propriamente nas ações de fato da religião cristã, salvo por alguns indivíduos inspirados por uma centelha inexplicável(4).

Por conseguinte, restam as outras duas hipóteses do porquê não somos ainda dignos de perdão, seja lá de quem ou de onde esse perdão virá. Se é que um dia virá! Confesso não ter mais esperanças de presenciar nosso remir como nação. Essa descrença pessoal talvez seja por verificar, na prática, que a necropolítica(5) entre nós não está apenas vinculada aos dispositivos inerentes do capitalismo neoliberal, mas permeou nossa construção social desde que entramos no mapa das grandes potências, há mais de quiunhentos anos. Nessa toada, a necropolítica nacional é a “alma” ou, se preferirem, a “razão” de ser dessa jornada. De nada adianta falar em democracia, em justiça social e redução da desigualdade econômica entre classes, se não entendermos que a configuração do Brasil sempre esteve moldada pela necropolítica, apesar desse termo ser recente.

Tentativas de explicar a dinâmica da sociedade brasileira houve muitas. Jessé Souza retrata muito bem o culturalismo racista de Gilberto Freyre, a cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda e o patrimonialismo de Raymundo Faoro. A meu ver, ele peca um pouco quando tenta generalizar o que é impossível em termos psicológicos e materiais. Melhor faria se entendesse que as prerrogativas até agora dadas como fato, ou seja, a necropolítica como “alma” nacional, não necessariamente esteve presente nas classes e suas frações como um ente isolado das transversalidades intra/inter classes, ou seja, a permissão de quem pode viver e de quem deve morrer. Isso é estigmatizar a própria história da luta de classes.

Realmente, se existe alguma verdade, estaria ele mais perto dela se puxasse o freio de mão da histórica(6) e verificasse que a fase principal da luta de classes nesse país, e no mundo por extensão, já não importa mais tanto para o capital. O progresso tecnológico sem volta das empresas globais distribui apenas migalhas para a “classe-que-vive-e-precisa-do-trabalho”, compelindo os seus integrantes a se digladiarem por elas pelo mundo afora. Para os periféricos como nós, sem direito à fé ou à pulsão da violência interna para justificar os direitos e deveres de todos os cidadãos (como as grandes revoluções), resta a luta pela vida. Nesse aspecto, o assassinato de 28 pessoas em Jacarezinho/RJ mostra, até o momento, de maneira voraz, implacável e improvisada, que estamos diariamente promovendo o “historicídio” da nossa própria história enquanto povo reunido sob o mesmo céu.

Por último, não menos importante, a vontade coletiva da igualdade ampla – civil, política, social e econômica – também nunca foi um traço personalístico da nossa sociedade. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer(7) considerava a “Vontade” a representação da “coisa-em-si”, mas que nada tinha a ver com a subjetividade humana. Ela, “Vontade”, seria uma força impessoal que nos impulsionaria para uma vida transcendental, já que ele acreditava ser a existência de uma fonte de sofrimentos, pois o ser humano é um escravo do seu próprio desejo inesgotável. A saída, para esse filósofo ateu, seria a arte como transcendência desse suplício material e a alteridade como forma de compaixão e amor pelos nossos semelhantes, já que, para ele, e para além da mera aparência, somos uno.

Essa breve digressão filosófica foi necessária para mostrar tudo o que nunca fomos, no reino do que não está posto, ou melhor, do que não foi, e não é, a verdade da nossa história. Assim, quando uma força policial desproporcional entra numa comunidade como a de Jacarezinho e solta mais uma vez todos os demônios de uma guerra particular nossa, como aconteceu na chacina de Eldorado dos Carajás, há 24 anos; ou no massacre do Carandiru, em 1992; quiçá na Chacina da Candelária, em 1993, etc., não se trata apenas de procurar os culpados e, doce ilusão, puni-los com o rigor da lei. Mas, de qual lei estamos falando? A do papel, escrita pela elite dominante, ou a da nossa história de sangue, através das chacinas do povo do abismo, como escrevia Jack London(8), das grilagens de terra e dos massacres de nossos povos originários?

Para usar um termo da moda, não está no nosso DNA o compromisso com a busca por uma sociedade mais justa, menos desigual e mais feliz. Nesse sentido, a muito pertinente crítica de Jessé Souza ao legado de Holanda sobre a “cordialidade” brasileira, que justificará o nosso complexo de vira-lata, pode ser estendida ainda mais para o que entendo ser o nosso “pecado original”, ou seja, a falta de uma construção histórica das bases orgânicas unindo os diversos povos que aqui se misturaram para um projeto maior de cidadania. Como querer que violências, inclusive do tipo já citado, parem de acontecer de um dia para o outro, se não construímos jamais uma ponte mínima de civilidade entre as classes sociais? A democracia entre nós é mais do que um mal-entendido, como nos aponta Jessé, pois como entender a democracia sem cidadania? Ora, jamais houve cidadania para todos nesse país. Jamais haverá democracia com esse modelo.

Daí a falta de perdão para o nosso gigante verde e amarelo. Gigante para quem? Para os perdedores locais, pegando emprestado o conceito de perdedores globais de Kurz(9), o Brasil é minúsculo, restrito às comunidades do tipo da que foi invadida. É lá que a maioria do povo brasileiro se vê amparada, seja por traficantes ou milícias que comandam o local. O Estado virou as costas para esse povo há séculos, a elite gostaria de bombardear as favelas como nos filmes de guerra do “Tio Sam” e a classe média não se olha no espelho para não ver suas origens ali.

Portanto, entendo a raiva de Jessé ao enaltecer os povos escandinavos com suas sociedades tão mais igualitárias, em relação ao temos no nosso país. Porém, é preciso não perder o foco da trajetória histórica de cada um. O Brasil não se constituiu como nação vivenciando as etapas “genéticas” desses povos. Explico melhor: as fases históricas que Engels nos relatou(10), quais foram, a fase comunal, a fase da barbárie e a fase da civilização não se deram em solo pátrio pelo mesmo povo, sequer pela vontade schopenhaueriana de seres humanos com a mesma etnia. Ao contrário, somos frutos de diferentes povos, em diferentes momentos da nossa própria trajetória. E mais. A cada fase ultrapassada, o rastro que deixamos foi de sangue, suor e lágrimas. Em outras palavras, assassinatos, massacres e chacinas; escravidão e superexploração; espoliação, humilhação e naturalização de tudo isso.

O perdão, ou o acerto de contas entre as classes, tão comum nas histórias das atuais nações desenvolvidas, não foi fruto da intervenção divina. Muito menos do líder messiânico que até hoje esperamos. Todos os povos se construíram socialmente através das fases engelianas. Não será diferente conosco. Eu imagino o quão difícil seja imaginar isso. Afinal, para quem conhece um pouco da história mundial, essas fases ensejaram guerras civis, revoluções de verdade (e não falácias como ditaduras) e até desmembramentos de territórios. Só assim se penitenciaram com os seus semelhantes e se perdoaram. Hoje são alvos da nossa inveja. Mas não chegaremos a esta etapa que suscita inveja sem trilhar o mesmo caminho de todos, ainda que com nossas peculiaridades e singularidades. Não seremos perdoados pela história se não perdoarmos nossos irmãos de cidadania menos favorecidos. Eldorado dos Carajás, Carandiru, Candelária, Jacarezinho, entre tantos outros, precisam acabar.

*André Márcio Neves Soares é doutorando em Políticas Sociais e Cidadania na Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

Notas


(1) SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.

(2) ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? São Paulo, Cortez, 2007.

(3) https://www.opendemocracy.net/pt/ascensao-narcomilicia-neopentecostal-brasil/;

(4) https://brasil.elpais.com/brasil/2020-09-20/padre-julio-lancellotti-nao-se-humaniza-a-vida-numa-sociedade-como-a-nossa-sem-conflito.html;

(5) MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo, N -1 Edições, 2018.

(6) LOWY, Michael. Aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo, Boitempo, 2005.

(7) SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro, Contraponto, 2016.

(8) LONDON, Jack. O povo do abismo. São Paulo. Expressão Popular. 2020.

(9) KURZ, Robert. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/10/01/mais!/16.html;

(10) ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo. Boitempo. 2019.

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