Colômbia, um mês de greve nacional

Gabriela Pinilla, Manuel Quintín Lame jovem, Óleo sobre cobre, 18 X 20 centímetros, 2015, Bogotá, Colombia
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Por LAURA CARLSEN*

Para o governo colombiano, seu povo é o inimigo

A greve nacional na Colômbia já completa um mês, sua mobilização alcançando proporções históricas para a nação e para a América Latina. Os protestos contra o governo nunca cessam. Esta fase da resistência começou como um grito de protesto contra uma reforma tributária que iria aumentar impostos de produtos básicos e serviços, encarecendo o custo de vida em um país onde o desemprego, a pobreza e a desigualdade estão em níveis sem precedentes. Agora se tornou uma luta entre o extermínio e a emancipação.

Mesmo depois de o governo de Iván Duque recuar de sua proposta de taxar a “cesta básica familiar”, as manifestações se espalharam rapidamente para incluir demandas populares relacionadas a uma série de queixas, incluindo a falta de educação, emprego e atendimento à saúde; a constante violência, seja governamental, paramilitar, criminosa, patriarcal ou racista; sabotagem do processo de paz; execuções em curso de defensores dos direitos humanos e líderes sociais; ocupação militar de territórios indígenas; e, mais recentemente, repressão aos manifestantes. Milhões colocam a vida em risco ao participarem dos protestos, destacadamente os jovens, porque, como um grupo na cidade de Cali disse à jornalista Angélica Peñuela, “a fome nos trouxe até aqui, não temos mais nada a perder”.

Jhoe Sauca, da Autoridade Tradicional do Povo Kokonuco e do Conselho Regional Indígena de Cauca, explica que a reforma tributária era inaceitável e se tornou um fator agravante que finalmente provocou a mobilização de milhões. “Não podemos suportar mais”, afirmou. “Com a pandemia temos passado fome, e nossos negócios faliram, enquanto o governo dá apoio aos bancos e grandes companhias”. Segundo ele, os povos da Colômbia têm lutado há 50 anos sob o princípio da unidade, e a reforma “fez a balança pender em favor da mensagem que temos transmitido para a sociedade colombiana – que temos de lutar por nossos direitos”.

E acrescentou que “dentro deste quadro, podemos elevar a capacidade de organização no nível de um movimento indígena, mas também no nível da sociedade em geral”. Ele destacou que em 2017 foi organizada a Minga Social em Defesa da Vida, do Território, da Democracia, da Justiça e da Paz. Enquanto mobilizava seus territórios, a Minga [trabalho coletivo em quechua] levou grandes contingentes aos protestos, especialmente em Cali.

Na mesma discussão, Vilma Almendra Quiguanás, do povo Nasa-Misak e integrante do Pueblos en Camino, sublinhou a histórica natureza da unidade que foi alcançada. “Muitas pessoas da área rural estão no movimento. De acordo com dados da Indepaz, das 1.123 municipalidades do país, 800 se mobilizaram. Somos 15 milhões num movimento sem precedentes”. Ela vê os protestos como a culminação de 529 anos de colonização e resistência, de milênios de patriarcado, e de falsas promessas e expectativas que surgiram com o Acordo de Paz.

“Quase cinco anos depois da assinatura do Acordo de Paz, bem, sim, o desenvolvimento em ‘áreas inóspitas” foi garantido. Mas o que é desenvolvimento? É concessão de mineração, concessão petrolífera, expansão das fronteiras agrícolas, monocultura, concessão de água – projetos de morte que estão desapropriando, matando e criminalizando os movimentos dos camponeses e populares. Eles nos enganaram dizendo que haveria paz. Não existe nem paz nem dinheiro”, explicou Vilma.

Para o governo colombiano, seu povo é o inimigo. O Instituto para o Desenvolvimento e Paz (Indepaz) registrou 71 mortos desde o início da greve em 31 de maio, quase todos nas mãos das forças de segurança e milícias aliadas. Cerca de 65% das mortes ocorreram em Cali, “o centro da resistência”. Em 30 de maio, um domingo, o presidente ordenou “o máximo deslocamento de assistência militar para a polícia” em Cali e Popayán. Negociações com o Comitê de Greve não vão a lugar nenhum, enquanto o governo insiste que bloqueios sejam desmantelados como pré-condição, sem se comprometer com qualquer medida de desmilitarização. O fracasso do diálogo não é o problema – as negociações nem começaram formalmente – e sim a falta de vontade política por parte do governo.

A extrema-direita torna cada vez mais pública sua preferência pela guerra como uma estratégia para justificar o controle autoritário e o extermínio da oposição e de grande parte da população. Fernando Londoño, um ex-ministro, colocou isso em forma de desafio ao presidente Duque: “… se você não é capaz de usar a legítima força do Estado para desbloquear o porto de Buenaventura pelo bem ou pelo mal, você não tem escolha a não ser renunciar”. Isto não se trata de mero discurso político; as forças da extrema-direita de Álvaro Uribe, o ex-presidente que é o poder por trás do trono, são especialistas em fazerem as coisas “pelo mal”. Nestes dias voltaram à tona práticas perversas, como forjar provas para executar ou criminalizar indivíduos ao os rotularem de terroristas, a reativação dos paramilitares que na verdade nunca se desmobilizaram, e massacres seletivos. Abunda na internet evidência de paramilitares e agentes a paisana atirando contra manifestantes a sangue frio. O uso de grupos paramilitares e operações secretas por parte das forças de segurança para suprimir protestos são uma violação da Constituição.

Manuel Rozental, um doutor colombiano e integrante do Pueblos en Camino, adverte: “Se esse processo de levante popular permitir que o Estado colombiano extermine maciçamente o povo, ele exterminará. A questão é se os que dizem que ‘negócios são negócios’ vão se tornar cúmplices mesmo enquanto clamam que sentem muito”.

A resposta internacional à crise de direitos humanos na Colômbia será um fator determinante.

“Enquanto Joe Biden e o governo dos EUA não se manifestarem a favor da suspensão da ajuda militar ao governo genocida da Colômbia, eles serão não apenas cúmplices, mas muito mais do que isso”, frisou Rozental. “Não existe uma bala da polícia, um gás lançado, uma política de repressão que não foi financiada, promovida e apoiada pelos Estados Unidos”.

É importante destacar que Biden foi o principal arquiteto e promotor do Plano Colômbia e continua a exaltá-lo como um grande sucesso da política estadunidense na América Latina.

Rozental enfatiza que as causas estruturais do conflito são bem anteriores ao atual confronto entre o levante popular e as autoridades. Mais que isso, explica, o capitalismo chegou a um estágio no qual o próprio povo é um obstáculo ao Estado e a uma grande parte da comunidade empresarial. “Nossa história, como a história do capitalismo, pode ser resumida dizendo que aqui houve a exploração por parte deles, então o que é útil para eles é explorado, então o que sobra de pessoas no território é excluído. Eles acabam se engajando em extermínio porque quando a ganância é sagrada, roubar e matar é lei”. Ele explica que existe um excesso de população na Colômbia que faz com que seja imperativo capturar recursos escassos.

Que o povo é considerado um incômodo fica patente nas ações do governo. Autoridades estatais se sentem incomodadas com os jovens, que são reprimidos a bala por protestarem contra a falta de oportunidades num país que se coloca entre os mais desiguais do mundo, com um índice oficial de desemprego de mais de 15%. Elas se sentem incomodadas com os defensores dos direitos humanos exigidos pelo povo. O Indepaz registra que apenas este ano elas mataram 67 defensores dos direitos humanos que assinaram o Acordo de Paz, tornando a Colômbia o país que mais assassinou tais ativistas no mundo. Elas se sentem incomodadas pelos povos indígenas que tentam proteger os recursos naturais que os sustentam e o planeta, assim como se protegerem da desapropriação por parte de grandes companhias e da elite política. Elas se sentem incomodadas pela exigência das mulheres por seus direitos, que têm sido duramente atacados pelo governo conservador e pela brutal reafirmação do patriarcado. A ideia de paz parece também incomodá-las – 25 ex-combatentes das Farc que assinaram o Acordo de Paz foram assassinados ou desapareceram este ano, enviando uma clara mensagem que a paz não está na agenda do governo. Houve, na verdade, 41 massacres só este ano, com 158 vítimas.

O povo colombiano está arriscando tudo em sua luta contra o sistema neoliberal de morte em seu país; ele representa a luta de toda a América Latina. É uma responsabilidade geral não deixá-los sozinhos. Um muro na mídia está bloqueando informação sobre o que acontece nessa histórica mobilização, enquanto a narrativa governamental tenta desviar a atenção para bloqueios e vandalismo, e para longe da vida humana e das legítimas demandas do povo.

Devido à falta de mobilidade, poucos jornalistas têm sido capazes de reportar de muitas áreas para a imprensa internacional e ocorrem ataques da polícia contra aqueles que tentam. Também, a mídia comercial tende a ecoar as versões oficiais. Ainda assim, maciças campanhas de solidariedade estão sendo promovidas na mídia social pela esquerda, por feministas, por jovens e por outros setores em todas as partes do mundo. Essa campanha tem de ser maior, entretanto, e mais intensa a fim de conferir apoio adequado e proteção às manifestações neste momento crucial.

*Laura Carlsen é a diretora do Americas Program na Cidade do México e assessora do Just Associates (JASS).

Tradução: Carlos Alberto Pavam para o portal Carta Maior.

Publicado originalmente em Counter Punch .

 

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