A tara secreta

Charles Sheeler (1883–1965), Casa Doylestown - escadas de baixo, 1917.
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Por RUBENS FIGUEIREDO*

Sobre a exclusão do romance “Almas mortas”, do acervo da Fundação Palmares.

Recentemente, a Fundação Palmares, órgão federal, situado em Brasília e destinado a combater o racismo, excluiu de sua biblioteca mais de cinco mil livros. Entre eles, figura uma obra intitulada Almas mortas, traduzida por mim. Achei oportuno apresentar um breve questionamento sobre os motivos dessa rejeição.

O romance Almas mortas, escrito por Nikolai Gógol (1809-1852), foi publicado em 1842, na Rússia. De forma cômica, crítica e realista, trata do regime da servidão, que vigorava na Rússia tsarista e em vários países do mundo, naquela época, e que, em parte, se assemelha ao regime da escravidão de negros africanos, que vigorava, por exemplo, no Brasil e nos Estados Unidos. Por sua temática, o livro teria particular interesse para uma instituição que porta um nome consagrado à luta e à resistência dos povos escravizados: o Quilombo dos Palmares.

Ressalte-se, além disso, que o romance Almas mortas está traduzido e publicado, talvez, em todo o planeta. Trata-se de um consagrado clássico da literatura mundial e constitui uma herança histórica e cultural da humanidade. Para nos mantermos na esfera estritamente protocolar.

Portanto, como entender a exclusão dessa obra da biblioteca da Fundação Palmares? Posso apenas especular que decorre do fato de se tratar de um livro russo. Pois, no tempo da ditadura militar e civil, anterior à atual, coisas desse tipo eram comuns. Nem eram necessários argumentos. Porém, agora, há um agravante: em nosso tempo, contra os russos, em geral, vigora um preconceito em boa parte semelhante ao que existia contra os judeus, no fim do século 19 e início do século 20. Lembremo-nos da antiga polêmica dos “Protocolos de Sião”, entre outras. Para mim, parece algo como os “hackers russos” e a infinita série de conspirações e envenenamentos, jamais provados.

No entanto, posso cogitar outro motivo. Costumamos associar a escravidão, e a servidão, a uma ordem social arcaica, de características feudais, alheia à nossa época moderna e democrática. Porém, ao observarmos a “modernização” das leis trabalhistas implementadas no Brasil e em muitos países, a uberização, os contratos temporários etc., podemos até pensar que a escravidão e a servidão, com nova feição e vocabulário moderno (de preferência, em inglês), constituem uma espécie de desejo recalcado, uma espécie de tara secreta, da ordem capitalista, democrática, liberal. Afinal, mesmo mortas, as almas podem ser vendidas e hipotecadas, com boa taxa de lucro. Como nos mostra Nikolai Gógol.

*Rubens Figueiredo, escritor e tradutor, é autor de O livro dos lobos (Companhia das Letras).

 

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