Por EDUARDO BORGES*
A esquerda brasileira deve direcionar suas energias para barrar as nefastas reformas do Estado em curso
Ouvindo recentemente um programa de rádio, o âncora fez um comentário tecendo duras críticas à forma de como o governo de Jair Bolsonaro estava conduzindo as reformas que “o Brasil precisa”. Em um determinado momento, um ouvinte (explicitamente membro da seita bolsonarista) perguntou pelo telefone se o âncora estava torcendo contra o governo. Imediatamente o apresentador baixou o tom de voz (talvez com receio de desagradar sua audiência) e respondeu que muito pelo contrário, que suas críticas significavam uma forma de ajudar ao governo e que ele, como brasileiro, torcia muito para que o governo desse certo. Fiquei com a sensação, naquele momento, que a opinião do radialista, ao caracterizar as reformas bolsonaristas como uma ação necessária para que o Brasil “desse certo”, representava o ponto de vista de uma parcela considerável da população brasileira.
Fiquei imaginando o que seria do Brasil e do Estado brasileiro se o governo de Jair e Guedes desse certo, o resultado foi assustador. Ao mesmo tempo, me perguntei o que efetivamente as esquerdas brasileiras estavam fazendo para que o governo de Jair e Guedes não concluísse sua solução final.
Desde o governo Temer, e de forma mais profunda no governo Bolsonaro, que observo certos equívocos estratégicos dos chamados setores progressistas e mesmo de assumidos esquerdistas, com a questão das “reformas” que reputo, são os reais problemas que se apontam no horizonte político brasileiro. A sensação é de que progressistas e esquerdistas seguem caindo na armadilha tanto da direita ultraliberal quanto da extrema direita conservadora materializada no governo Bolsonaro.
Foi assim desde o chamado “mensalão do PT” em que uma série de “vestais” progressistas se escandalizaram com o balão de ensaio lançado pelo impoluto Roberto Jeferson e se encantaram com a “firmeza” de Joaquim Barbosa. Conseguiram uma razoável harmonia (alguns demoraram em admitir que fosse um golpe) em torno do “impeachment” de Dilma Rousseff, para logo em seguida, boa parte dela cair no canto da sereia do moralismo seletivo e de ocasião decantado pelo xerife Sérgio Moro e seu fiel escudeiro Deltan Dalagnoll. Defenderei até o fim a tese de que seguramente o hacker Walter Delgatti é o grande herói da esquerda brasileira da primeira metade do século XXI. Em decorrência de sua ação a esquerda ganhou novo fôlego eleitoral e um discurso renovado de esperança no jogo político.
É justamente o Estado construído pelos Constituintes de 1988 (e que precisa melhorar em muito pra se tornar verdadeiramente um Estado democrático) que Bolsonaro está caminhado a passos largos para a completa destruição e, para nossa tristeza, com a indireta colaboração da esquerda brasileira. No mínimo com seu beneplácito. Aparentemente a esquerda pouco aprendeu com as ilusões apresentadas no parágrafo acima. A elite dirigente, com todo seu conglomerado midiático e apoiada pelas chamadas redes sociais controladas pelos “idiotas da aldeia” de quem nos falou Humberto Eco, segue fomentando narrativas diversionistas (a tal da terceira via é uma delas) com roupagem de debate culto.
Por outro lado, os próprios progressistas e esquerdistas têm disponibilizados seus canais de redes sociais para debater sem desembaraço com ex-golpistas pequenos burgueses e bolsominions arrependidos, além de simplificar com sarcasmos os comportamentos abjetos do bufão que nos governa. Mais do que isto, uma parcela dos esquerdistas não se importam de servirem de escada para os Frotas, Hasselmanns e Kataguiris e embarcarem na barca furada da “frente ampla” e do “superpedido de impeachment” contra Bolsonaro. A própria CPI da Covid 19 e seus Mirandas e Yamaguchis, e suas reflexões nietzschianas sobre vírus e protozoários, ainda que sirva a uma causa nobre, as mortes evitáveis de milhares de brasileiros, não pode ser encampada pela esquerda como a solução dos problemas do Brasil. No fundo, não obstante sua importância em defesa da moralidade do trato com a coisa pública, a CPI é tão somente um grande palco para a elite política acertar seus ponteiros para 2022. Definitivamente, mesmo que não acabe completamente em pizza, a CPI não está vocacionada para provocar a revolução social que o Brasil profundo necessita. Talvez, ao fim da CPI, não se morra mais de Covid 19, mas continuaremos morrendo de fome e de pobreza.
O discurso de combate à corrupção (que sempre foi a principal muleta eleitoral da direita) tem se transformado no calcanhar de Aquiles de progressistas e esquerdistas mais empedernidos. A esquerda tem vivido o dilema de não saber o time correto de substituir o discurso do combate à corrupção (caro à direita liberal) pelo discurso (que sempre lhe coube) de combate à pobreza. A esquerda veio perdendo, desde a eleição de Lula em 2002, o monopólio do discurso moralizador e ao se contentar com a ascensão social pelo consumo, perdeu também, o capital de apresentar-se como a melhor alternativa, em termos eleitorais, da representatividade simbólica das transformações sociais mais profundas. Recolheu-se e capitulou diante da cosmética da política representado pelo cartorialismo partidário, pelas benesses do financiamento privado de campanha e pela estabilidade proveniente de uma tranquila aliança de classes com os poderosos da FIESP e da grande mídia (não vamos esquecer que o José Dirceu chamava o dono da Rede Globo de Roberto).
Os temas com potencial de provocar indignação nos esquerdistas foi perdendo radicalidade e o discurso egocêntrico causado pelos likes, sininhos e monetização provocou a proliferação de uma malta de “neo-esquerdistas” com seus canais no You Tube a vociferar um discurso raso e pequeno burguês típico de quem não tem nenhuma tradição de luta política ao lado da classe trabalhadora e que ao se “descobrir” esquerdista de última hora confunde análise política com discurso motivador de coach.
Diante de todo este quadro de profunda fragilidade prática e teórica da esquerda brasileira (principalmente sua vertente neoprogressista travestida de influencer digital com milhões de seguidores) a elite dirigente, juntamente com a elite política, capitaneadas pelo cabo Bolsonaro e pelo sargento Paulo Guedes et caterva vão passando a boiada das Reformas e destruindo por completo o que ainda sobra de uma estrutura mínima de sustentação de direitos da classe trabalhadora. A esquerda segue ingenuamente cumprindo o papel de piranha na passagem da boiada das Reformas.
A CPI, o semipresidencialismo, os despautérios fecais de Bolsonaro, os delírios de Carluxo, o ministro terrivelmente evangélico, o olavismo, a Jovem Pan, as rachadinhas de Flávio, o engavetador Aras, o azul e rosa de Damares, a Regina Duarte, os minions arrependidos do Congresso Nacional, o cheque da primeira dama, a mascara torta de Pazuello, a terceira via, a boiada de Salles, o antibolsonarismo do MBL, enfim, uma série de temáticas que queiramos ou não formam o universo da Era Bolsonarista e não devem ser completamente destituídas de análises críticas, não podem, entretanto, representar o centro do debate político do país.
Não sejamos ingênuos, um dia tudo isto vai se transformar em algo pitoresco, talvez uma lembrança remota de um período sui generis e sem precedente em nossa história. Em contrapartida, meu maior receio (o que gerou a escrita deste artigo) é em um futuro não muito distante olharmos para trás e termos a percepção de que enquanto estávamos dando demasiada importância a este tipo de assunto, o Estado brasileiro estava sendo destruído através de nefastas Reformas administrativas, previdenciárias e trabalhistas legando ao futuro do país uma terra arrasada para a classe trabalhadora, e uma terra perfeitamente cultivada para o deleite dos Faria Limers e para os amigos de Polo do Chicago boy Paulo Guedes.
Primeiro eles destruíram a CLT, impuseram a terceirização e a negociação coletiva por empresa e nós fomos discutir sobre as peripécias do “menino Ney”. Em seguida eles acabaram com o Ministério do Trabalho (no momento em que escrevo recebo a informação de que Bolsonaro vai recriar o MT e entregar a Onix Lorenzoni, escárnio maior, impossível), fragilizaram os sindicatos e a justiça do trabalho, mas nós preferimos debater as travessuras dos participantes do Big Brother. Depois eles destruíram nosso futuro com a reforma previdenciária e nós seguimos preocupados em saber qual a última treta do Olavo. Atualmente eles estão imbuídos em esmagar a carreira de funcionário público atacando sua estabilidade e abrindo a porteira para os cabides de emprego, mas nós não nos importamos, não somos funcionários públicos, aliás, achamos até que eles não passam de um bando de privilegiados. Diariamente eles pregam e agem em favor do famigerado Estado mínimo, e nós respondemos nos emocionando diante da TV com reportagens piegas que retratam a tia do pastel como vitoriosa empreendedora individual. Ao início de cada manhã, basta publicar uma bela frase revolucionária no Instagram e retuitar uma reportagem “bombástica” da grande imprensa contra o desgoverno do capitão cloroquina, que já é suficiente para termos a sensação de dever cumprido. De termos colaborado com nossa parcela de militância do dia.
Em suma, para a esquerda brasileira só existe um caminho, ou passa a direcionar todas as suas energias para barrar as nefastas reformas do Estado ou se prepara para ter que assumir a corresponsabilidade de sua completa destruição. Retroceder as privatizações e as reformas, reconstruindo-as a partir dos interesses da classe trabalhadora, deveria ser o primeiro dos pontos do projeto de governo de qualquer candidato verdadeiramente de esquerda nas próximas eleições. Qualquer coisa diferente disso é conversa para boi dormir.
*Eduardo Borges é professor de história na Universidade do Estado da Bahia.