Quem tem medo de fogo?

Imagem: Sebastian Sørensen
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Por VANESSA MONTEIRO*

O incêndio na estátua do Borba Gato e a luta pelo Fora Bolsonaro

“O proletariado produz armas, transporta-as, constrói os arsenais em que são depositadas, defende esses arsenais contra si mesmo, serve no exército e cria todo o equipamento deste último. Não são as fechaduras nem muros que separam as armas do proletariado, mas o hábito da submissão, a hipnose da dominação de classe, o veneno nacionalista. Basta destruir esses muros psicológicos e nenhum muro de pedra resistirá” (Trotsky, Aonde vai a França?).

Passado quinze dias, segue repercutindo, com polêmicas de tudo quanto é tipo, o que foi o principal fato político do dia 24 de julho: o incêndio na estátua do Borba Gato, em São Paulo. A ação ocorreu no mesmo dia marcado para o quarto grande ato nacional pelo Fora Bolsonaro. Porém, curiosamente, pouco tem se refletido nas análises sobre o 24J o impacto desta ação e o que ela revela sobre a luta em curso pela queda do genocida que está no poder. Aqui vão algumas reflexões.

 Fogo na ferida

O incêndio na estátua do Borba Gato não foi um raio em céu azul. No ano passado, o maior levante negro da história dos Estados Unidos ocorreu após o assassinato de George Floyd, cumprindo papel decisivo para a derrota eleitoral de Donald Trump e à eclosão de lutas de resistência negra, dos povos originários e anticolonialista em todo o mundo. Em 2020, manifestantes no Chile, que passa por um profundo processo de ruptura institucional, danificaram 329 estátuas de colonizadores. Em junho deste ano, na Colômbia, manifestantes derrubaram a estátua de Cristóvão Colombo e escreveram sob sua cabeça “pelos nossos mortos”. Em Charlottesville, em julho deste ano, duas estátuas foram removidas pela prefeitura. Uma delas foi a estátua do general Robert E. Lee, símbolo da escravidão negra americana, se tornou um ponto de encontro dos supremacistas brancos, local onde uma mulher foi morta em confronto racial quatro anos atrás. E assim como estas, as estátuas racistas estiveram no centro do debate na Grã-Bretanha, Bélgica, Dinamarca entre outros países.

Há quem diga que “o Brasil não é os EUA”, uma obviedade, para minimizar o impacto do levante negro em nosso país. Porém, não se trata de quantificar quantos foram às ruas nos atos antirracistas no Brasil em 2020, mas compreender o impacto na consciência proporcionado pelo reconhecimento de que nosso país é racista. No país do mito da democracia racial, o último país das Américas a abolir a escravidão, não é exagero dizer que foi aberta a maior ferida de nossa história.  Por isso, nos sentimos vingados e vibramos com o incêndio na estátua do Borba Gato.

Não à toa, na semana seguinte grupos supremacistas brancos reagiram depredando a homenagem à Marielle Franco e o monumento a Carlos Mariguella, em São Paulo. Não à toa, o incêndio na estátua provocou uma rápida reação que levou à prisão de Galo, conhecido como membro do movimento Entregadores Antifascistas, Biu e Géssica, detida por dois dias sem nenhuma justificativa. Uma prisão política, que manifesta a posição das instituições pela preservação de uma memória coletiva que enaltece assassinos e estupradores como “heróis desbravadores” no imaginário paulista. A prisão de Galo, que já completa cinco dias, choca ainda mais quando comparada à impunidade frente a um sem número de violências simbólicas e vitais praticadas ainda hoje: o assassinato de Marielle Franco até hoje sem respostas; a impunidade frente à chacina ocorrida no Jacarezinho, ao assassinato de Kathlen e de tantas outras vidas inocentes ceifadas.

A passagem acima de Trotsky, em Aonde Vai a França?, vem para desmistificar toda a vulgarização que menospreza a importância da subjetividade em nome do marxismo. Mais do que isso, em suas palavras, “basta destruir esses muros psicológicos” (…o hábito da submissão, a hipnose da dominação de classe…) “que nenhum muro de pedra resistirá”. É evidente que nossa luta também se dá no campo simbólico, pois o caráter da atividade revolucionária é em última instância subjetivo: não disputamos coisas, mas a consciência de pessoas que têm formas de vida, valores e costumes engendrados pela ideologia dominante. Uma análise materialista, histórica e dialética de nossa realidade não pode desprezar este ato de insubordinação como um termômetro da consciência de uma juventude negra e periférica, que destacadamente hoje é a vanguarda de nossa classe (a exemplo do 13M protagonizado pelo movimento negro, abrindo o caminho para a retomada das ruas pela esquerda). Um termômetro de um tempo onde já não é aceitável uma história única – e falsa – sobre a formação do nosso país.

Não é de espantar que entre a intelectualidade brasileira haja aqueles que tenham se horrorizado com a ação. Gilberto Maringoni, por exemplo, convocou em suas redes sociais os setores progressistas para desautorizar “qualquer vínculo com a mazorca”, pois a extrema-direita se aproveitará do evento “de puro vandalismo”. Já Leonardo Avritzer, professor da UFMG, evoca a polêmica de mais de um século sobre “os equívocos da ação política violenta” [https://aterraeredonda.com.br/bastilha-e-borba-gato/] – já muito bem respondida por Vladimir Safatle [https://aterraeredonda.com.br/por-favor-da-proxima-vez-facam-uma-nota-de-repudio/] – argumentando que a violência (leia-se protestar contra o símbolo da violência) é incompatível com a política democrática. Rodrigo Perez, professor da UFBA, argumenta [https://revistaforum.com.br/rede/pra-que-isso-paulo-galo/] que a ação afasta trabalhadores e a categoriza como “identitarismo” pois “o trabalhador não tem tempo para se envolver em disputas simbólicas”.  Nestes três casos há uma notória separação entre forma e conteúdo, não havendo na maior parte dos textos nenhuma linha sequer sobre o passado escravocrata que perpetua o Brasil desigual do presente e, quando há, tal lembrança está subordinada a crítica à tática utilizada.

O incêndio na estátua do Borba Gato foi uma ação radical não porque se utilizou do fogo, o que pode ser identificado em diversas outras táticas, mas porque de fato tocou na raiz do problema. Segundo o filósofo camaronês Achille Mbembe, “Essas estátuas celebram, a cada manhã de nossa vida, o fato de que, na lógica colonial, fazer a guerra às “raças inferiores” era necessário para o progresso da “civilização””.  Portanto, a ação contra a estátua, sugere a ruptura com a celebração da história colonial e racista de nosso país, abrindo uma aguda reflexão sobre o que está por trás da fome, do desemprego, da morte pelas milícias ou pela bala do Estado que assola a população negra e indígena.

Se o intuito do movimento Revolução Periférica era abrir um debate na sociedade brasileira sobre o que representa a manutenção de uma estátua de treze metros que celebra uma história de genocídio, este debate foi aberto. Cabe a nós nos localizar do lado certo nesta disputa, pavimentando o terreno para que, assim como em nossos países vizinhos, sejamos em breve uma multidão derrubando os símbolos de nossa própria opressão. O primeiro passo para esta tarefa é a luta intransigente pela libertação de Galo, prestando todo nosso apoio e solidariedade.

Derrubar Bolsonaro antes de 2022 é necessário e possível

O bolsonarismo, diferente de muitos intelectuais ditos progressistas, não despreza a luta simbólica para erguer seu projeto de país. A homenagem aos jagunços, capangas armados de fazendeiros, feita pela SECOM no Dia do Agricultor, caminha ao lado do marco temporal proposto pelo PL 490, que será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça (presidida pela deputada bolsonarista Bia Kicis, do PSL) e encaminhado ao Congresso ainda neste mês.

O marco temporal fere a Constituição Federal, segundo a qual as terras indígenas são de sua posse permanente e inalienável, e os direitos dos povos indígenas sobre elas são imprescindíveis. A PL 490 representa um retrocesso histórico não apenas porque coloca em xeque todas as demarcações conquistadas a duras penas após a Constituição de 1988, mas também porque permite a abertura de reservas indígenas para a produção econômica por terceiros e acaba com o direito dos povos isolados de manterem o não-contato como medida de autopreservação. Assim, o PL 490 abre o caminho para que a imagem do jagunço armado ganhe legitimidade no mundo real, onde indígenas são exterminados e nossas florestas são devastadas à luz do dia.

Os crimes contra os povos indígenas estão na fileira de todos os outros que nos colocaram neste momento de profunda crise social. Apesar de o mês de julho ter registrado queda nos casos e óbitos pelo coronavirus, ainda estamos na assustadora marca de mais de mil mortos por dia. Apesar de ter avançado a imunização, os vacinados com as duas doses no Brasil ainda são ínfimos 13,7%. Seguimos amargando um desemprego que atinge 20 milhões de pessoas entre desempregados e desalentados e preços abusivos dos combustíveis e alimentos. Com a redução do auxílio emergencial desde o início deste ano, o Brasil volta a dar saltos no ranking da desigualdade mundial e sabemos que na base de nossa pirâmide estão o povo negro e povos indígenas, desproporcionalmente afetados pela fome, pela violência e pelo desmonte dos serviços públicos. Custa acreditar que, para esse setor, um ano de espera até as eleições para – quem sabe – ter alguma melhora em suas condições de vida é a saída mais factível.

Nas últimas semanas vimos duas movimentações que apontam para o momento de maior fragilidade do governo e, ao mesmo tempo, sua estratégia de radicalização. Por um lado, segue a crise nas alturas e desta vez quem mais perde são os militares, após a substituição do general Luiz Eduardo Ramos pelo senador Ciro Nogueira (PP), líder do Centrão, no ministério da Casa Civil. O golpe do Centrão coloca Bolsonaro cada vez mais refém do fisiologismo que tanto combateu em sua campanha eleitoral, sendo obrigado a dar um giro de 180 graus em sua narrativa. Isto ocorre em um momento de maior desmoralização das Forças Armadas frente ao envolvimento de militares no escândalo de superfaturamento das vacinas, colocando-as ao lado daqueles que lucraram com os mais de 500 mil mortos pela COVID-19.

Por outro lado, como uma medida de desespero, Bolsonaro volta a inflamar suas bases com ameaças golpistas, utilizando a farsa do voto impresso para deslegitimar o sistema eleitoral brasileiro e preparar o terreno para um questionamento do resultado eleitoral em 2022, à imagem e semelhança do que fez o trumpismo norte-americano. Assim, Bolsonaro tem gastado fortunas de dinheiro público para realizar suas motociatas e, no último final de semana, convocou manifestações em defesa do voto impresso que mobilizaram menos do que os atos bolsonaristas anteriores e incomparavelmente menos do que tem mobilizado a esquerda pela derrubada do governo.

A estratégia de radicalização do bolsonarismo tem caráter permanente e está para além da disputa eleitoral, pois seu projeto é fascista e a foto com a deputada alemã neonazista na semana passada é mais uma das inúmeras sinalizações de suas aspirações contrarrevolucionárias. Se é verdade que não podemos menosprezar o inimigo, é verdade também que não podemos atribuir a ele uma força superior ao que efetivamente tem. Portanto, reconhecer este momento de fragilidade não deve servir de maneira alguma para concluir que Bolsonaro e seu projeto está derrotado, muito menos que ele deixou de ser uma ameaça. Serve, em primeiro lugar, para reconhecer que sua derrota não é apenas um desejo ou uma necessidade, mas uma tarefa possível.

Nenhum passo atrás!

Neste momento, estamos em uma corrida contra o tempo. Nos últimos meses se abriu uma conjuntura mais favorável à esquerda, com a constituição de uma maioria social contrária a Bolsonaro, a volta das mobilizações de rua e o aprofundamento da crise política. Porém o governo segue sendo muito vantajoso em especial para o mercado financeiro, representado por Paulo Guedes, setor que seguiu tendo lucros exorbitantes apesar da crise econômica. Além disso, a abertura de um processo de impeachment abre precedentes para uma nova crise institucional, o que dificilmente será feito em ano eleitoral. Portanto, considerando a “crise nas alturas”, a maior probabilidade de se abrir um processo de impeachment é neste ano. Não se trata de ficar reféns da disputa intra-burguesa, mas negá-la seria também um erro. É com este nível de urgência que deveríamos refletir sobre os rumos de nossa luta nos próximos três ou quatro meses.

O 24J foi o quarto dia nacional de mobilização pelo Fora Bolsonaro em dois meses, e, novamente, fomos milhares nas ruas. Em primeiro lugar, é importante reconhecer o tamanho desse feito. Nem mesmo antes da pandemia houve mobilizações por dois meses com a escala de, pelo menos, 20 mil manifestantes nas ruas das maiores capitais. O 24J foi o ato mais interiorizado até agora, alcançando mais de 500 cidades e com grande solidariedade internacional. Para todos que fizemos atividades de agitação e mobilização nas cidades para a construção dos atos, é perceptível também a mudança de ânimo da população. Porém, passado o quarto ato de domingo paira um sentimento de insuficiência entre nós. A cobertura da imprensa foi tímida e no dia seguinte já não se falava nos grandes jornais que milhares de brasileiros protestaram pelo impeachment imediato de Jair Bolsonaro.

Muitos, hoje, nos questionamos sobre a efetividade das manifestações que já se tornaram “passeios” de final de semana. O incêndio da estátua do Borba Gato, por sua vez, nos traz reflexões táticas: ações radicalizadas podem cumprir um papel progressivo para o desenvolvimento da luta de classes, se tiverem respaldo de massas. Nossa luta é pela maioria, por isso a tendência de divórcio entre a vanguarda e o conjunto da classe deve ser combatida. Não somos adeptos do “eu avisei”. Porém, se a legitimidade de derrubar estátuas racistas fosse questão apenas de uma ínfima vanguarda, não encontraria eco na própria imprensa burguesa, refletindo a força que este debate ganhou mundialmente. Além disso, a ação coloca uma questão determinante de ordem programática: qual o lugar da luta antirracista em nossa disputa por outro projeto de país? Em um momento onde o bolsonarismo coloca sobre a mesa o Estado miliciano, o genocídio institucionalizado e o supremacismo branco, como responder senão partindo da radicalização de nosso próprio projeto de emancipação? Emancipação para uma maioria que tem classe, cor, gênero e uma história de espoliação a ser reparada.

Esta reflexão autocrítica deve colocar a luta pela libertação de Galo como uma tarefa prioritária, sendo parte da disputa na sociedade contra os símbolos racistas frente àqueles que têm genocidas como heróis. O resultado desta batalha dirá muito sobre a atual correlação de forças. Neste mês, ocorrerá também o importante acampamento Luta Pela Vida dos povos indígenas de 22 a 28 de agosto em Brasília contra o PL490, uma luta que deve receber todo apoio e solidariedade. Ainda em agosto terão uma série de outras mobilizações, como no Dia do Estudante (11), o terceiro Breque dos APPs (11) e o dia nacional de paralisações do funcionalismo público (18).

A Campanha Nacional Fora Bolsonaro têm cumprido um papel muito importante até aqui, mas a ausência de espaços abertos de elaboração coletiva, ou o excesso de controle sobre a condução dos atos impõem limites reais. Todo processo de mobilização implica uma multiplicidade de táticas, uma capacidade criativa que emerge da própria luta a partir do momento que cada um dispõe à causa coletiva seus talentos e habilidades. Não há nada mais justo que os ativistas que são parte desse processo de luta, sejam também parte da definição sobre os seus rumos: será que os atos de final de semana são a melhor tática? Como ampliar a convocatória das mobilizações? O formato de manifestação com carro de som e falas, é o melhor? Como organizar nossa autodefesa? Estas e tantas outras reflexões justas, devemos fazê-las aberta e amplamente. Identificar os limites desta construção tem como principal objetivo dar um passo adiante, fortalecendo a unidade de nossa classe tão diversa, para responder à altura do necessário acerto de contas com o passado.

*Vanessa Monteiro é mestranda em Antropologia na UFF.

 

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