Do partido único ao stalinismo

Wassily Kandinsky, White sound, 1908.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ISABEL LOUREIRO*

Nota de leitura sobre o livro recém-lançado de Angela Mendes de Almeida

“Cada crise engendra não só um novo futuro, mas um novo passado” (Chris Marker, O fundo do ar é vermelho).

Neste pesadelo em que a roda da história girou algumas décadas para trás, assistimos ao retorno do fascismo e ao revival midiático de seu irmão siamês, o stalinismo. Nas redes sociais pulula a defesa da Rússia, da Coreia do Norte, da China como países supostamente socialistas. E o mesmo acontece com a antiga URSS: os gulags e a violência contra os adversários políticos são justificados – vistos como mal menor na construção da “pátria socialista” contra o imperialismo norte-americano –, prova provada de que a ideia de aperfeiçoamento contínuo da humanidade não passa de ilusão.

É bem verdade que o desejo de retorno a uma mítica idade de ouro comunista que nunca existiu, por parte de uma parcela da juventude de esquerda que se autodenomina revolucionária, decorre do desespero ante a barbárie capitalista, acentuada com a pandemia de Covid-19, e também do desencanto com a tibieza da esquerda reformista e de suas políticas de gestão do capitalismo. Ao mesmo tempo existem tentativas sérias de jovens militantes de organizações marxista-leninistas de atualizar a política de Lenin, fazendo uma releitura das ideias de vanguarda revolucionária e de centralismo democrático, que, como sabemos, sempre foi mais centralista que democrático. Este livro, ao mostrar os impasses a que levou o autoritarismo comunista, é imprescindível para todos eles.

Quem busca refundar o comunismo – afinal em boa hora os commons voltaram ao vocabulário da esquerda – precisa revisitar a tradição de que é herdeiro e fazer um ajuste de contas honesto com a experiência comunista no século XX. Não por acaso o romance de Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros, ao pontuar a falta de liberdade, a censura a quem pensa de modo diferente, a manipulação de toda uma geração que viveu no medo das represálias, fez tanto sucesso entre nós. A experiência da geração cubana a que pertence Padura teve seu pendant na França, onde os intelectuais sofreram de cegueira deliberada a respeito dos crimes de Stalin e só na década de 1970, com a publicação de Arquipélago Gulag, reconheceram que as denúncias dos dissidentes não eram obra do imperialismo norte-americano. No Brasil, a mesma coisa, onde somente pequenos círculos trotskistas e socialistas não foram coniventes com o stalinismo e questionavam o que se passava na URSS.

A força deste livro reside justamente no élan moral que anima a autora, resumido de maneira perfeita na epígrafe do livro, tirada de uma carta do militante comunista Pietro Tresso: “É impossível suportar em silêncio aquilo que fere os sentimentos mais profundos dos homens. Não podemos admitir como justos os atos que sentimos e sabemos serem injustos; não podemos dizer que o que é verdadeiro é falso e o que é falso é verdadeiro, sob o pretexto de que isso serve a uma ou a outra força presente”.

Angela se recusa a silenciar sobre as mentiras, os abusos, os assassinatos de trotskistas e stalinistas, vítimas de uma engrenagem que eles próprios ajudaram a criar. Quando parecia que tudo já havia sido dito sobre o assunto, a autora nos surpreende com esta minuciosa pesquisa histórica, enriquecida com o acesso à documentação posterior ao fim da União Soviética, a obras literárias, memórias etc. dando aos materiais coligidos um cunho muito pessoal que prende o leitor do começo ao fim.

Para dar conta da experiência autofágica do stalinismo ela percorre em filigrana episódios como a “idiotice suicida” (Hobsbawm) da tática comunista do “social-fascismo”; as diferenças entre frente única e frente popular; o papel vergonhoso dos comunistas na guerra civil espanhola; os processos de Moscou; o pacto entre Hitler e Stalin, entre muitos outros. Assim como Padura no seu thriller histórico-político, Angela também reconstrói a história da derrota do comunismo no século XX, pela qual ele mesmo é em grande parte responsável.

A longa trajetória de militância da autora desde a ditadura militar, primeiro em organizações trotskistas, depois no campo dos direitos humanos em defesa dos pobres, negros e moradores das periferias, faz desta uma obra empenhada em dar resposta aos questionamentos que ela mesma se fazia no seu processo de amadurecimento político. Mas, afinal, qual é a “tese” deste livro de título polêmico? Em busca das origens do autoritarismo stalinista, que nunca hesitou em recorrer aos mais sórdidos expedientes para eliminar seus supostos ou reais adversários, Angela retorna à divergência entre bolcheviques e luxemburguistas a respeito da concepção de partido político: de um lado, organização centralizada e hierarquizada de revolucionários profissionais, separados da massa dos trabalhadores, e que tem por função dirigi-los; de outro, partido democrático de massas, cuja vida depende da circulação sanguínea entre base e liderança.

Angela reconstrói a trajetória tumultuada dessas organizações, e também da socialdemocracia alemã, para concluir que o bolchevismo, ao “adotar o princípio de partido único […] funcionou como um certo tronco” de onde saíram as políticas repressivas do stalinismo. Unindo esse fio estrutural e o advento do fascismo, do nazismo e da Segunda Guerra Mundial, desembocamos na exacerbação das tendências autoritárias latentes no bolchevismo.

Em suma, apesar do rio sangue que os separa – eis a “tese” que Angela apresenta – não é possível negar a continuidade entre autoritarismo bolchevique e stalinista. É uma ideia polêmica, da qual discorda Michael Löwy, autor do Prefácio – disponível em https://aterraeredonda.com.br/do-partido-unico-ao-stalinismo/?doing_wp_cron=1628268867.7771430015563964843750. Segundo ele, o endurecimento dos bolcheviques teria sido “culpa” dos socialistas revolucionários de esquerda, que, discordando do acordo de Brest-Litovsk, deram início aos atentados terroristas. A resposta dos bolcheviques foi o sistema do partido único (julho de 1918) e o Terror vermelho (setembro de 1918).

Aqui vale a pena lembrar Rosa Luxemburgo. Ela, que conhecia bem os bolcheviques, rejeitou o Terror vermelho logo no começo da Revolução Russa. Opondo-se aos métodos de Feliks Djerzinski (militante da socialdemocracia do Reino da Polônia e Lituânia, o mesmo partido de Rosa), e o primeiro a chefiar a Tcheka, ela escreve: “Tenho medo (…) que Jósef [Djerzinski] se obstine [em acreditar] que, rastreando ‘conspirações’ e assassinando ‘conspiradores’ energicamente, se possam tapar os buracos econômicos e políticos. A ideia de Radek, p. ex., de ‘abater a burguesia’, ou apenas uma ameaça nesse sentido, é a maior idiotice; serve apenas para comprometer o soc[ialismo], nada mais”. (30 de setembro de 1918)

Por isso mesmo não me parece adequado recorrer unicamente a causas conjunturais ou históricas para explicar as origens do autoritarismo bolchevique, deixando de lado a ideia de partido-vanguarda. Embora Lenin tenha “flexibilizado” a concepção autoritária que aparece em O que fazer?  foi ela que acabou vingando no comunismo russo. Isso não significa que a história não representa nenhum papel e o livro de Angela Mendes de Almeida mostra muito bem como as circunstâncias históricas fortaleceram as tendências autoritárias existentes.

Lembremos outro revolucionário que também questionou a concepção de partido leninista, Mario Pedrosa. Segundo ele, um partido de revolucionários profissionais como o bolchevique, alicerçado no princípio da centralização, nunca se transformaria em partido de massas. O exemplo era o Partido Comunista Alemão. Este oscilou entre uma militância maior ou menor, mas nunca se tornou o partido dos trabalhadores alemães, como foi o SPD. O partido centralizado e militarizado, arquitetado por Lenin como instrumento de assalto ao poder para o caso específico da Rússia, acabou virando o modelo a ser imitado pelos PCs do mundo inteiro. E também se tornou modelo para os partidos fascistas. Em resumo, o partido-vanguarda leninista era o instrumento perfeito para os propósitos ditatoriais de Stalin. Acho difícil discordar deste diagnóstico.

Em suma, o livro de Angela Mendes de Almeida, ao reconstruir a história trágica do comunismo no século XX, é um libelo a favor do credo socialista democrático de Rosa Luxemburgo que, já no alvorecer da Revolução Russa, temia que a supressão das liberdades democráticas, do pluralismo de ideias e de organizações levaria à morte da revolução.

*Isabel Loureiro é professora aposentada do Departamento de Filosofia da Unesp e autora, entre outros livros, de A revolução alemã: 1918-1923 (Unesp).

Referência


Angela Mendes de Almeida. Do partido único ao stalinismo. São Paulo, Alameda, 2021, 516 págs.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Alysson Leandro Mascaro Ricardo Musse Luiz Bernardo Pericás Carla Teixeira Paulo Capel Narvai Eliziário Andrade Ricardo Fabbrini Marilena Chauí Ladislau Dowbor Anderson Alves Esteves Vinício Carrilho Martinez Carlos Tautz Elias Jabbour Antônio Sales Rios Neto José Geraldo Couto Sergio Amadeu da Silveira Érico Andrade Luiz Eduardo Soares Michel Goulart da Silva Matheus Silveira de Souza Denilson Cordeiro Eleonora Albano Daniel Brazil Kátia Gerab Baggio Marcus Ianoni Jorge Luiz Souto Maior Annateresa Fabris Jean Pierre Chauvin Lincoln Secco Daniel Afonso da Silva Yuri Martins-Fontes Mariarosaria Fabris Francisco Pereira de Farias Alexandre de Freitas Barbosa André Márcio Neves Soares Lorenzo Vitral Leonardo Sacramento Gerson Almeida Salem Nasser Marcos Silva Fábio Konder Comparato Alexandre Aragão de Albuquerque João Sette Whitaker Ferreira Jean Marc Von Der Weid Boaventura de Sousa Santos Liszt Vieira Marcos Aurélio da Silva Antonio Martins Samuel Kilsztajn José Micaelson Lacerda Morais Eduardo Borges Antonino Infranca Walnice Nogueira Galvão Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Marques Ronald León Núñez Paulo Fernandes Silveira André Singer Bruno Machado Valerio Arcary Dênis de Moraes João Carlos Loebens Eleutério F. S. Prado Lucas Fiaschetti Estevez Marilia Pacheco Fiorillo Vladimir Safatle Henry Burnett Rafael R. Ioris Bento Prado Jr. Jorge Branco Gilberto Lopes Michael Roberts Paulo Sérgio Pinheiro Remy José Fontana João Carlos Salles José Machado Moita Neto Armando Boito Luiz Carlos Bresser-Pereira Otaviano Helene Luciano Nascimento Fernando Nogueira da Costa Flávio R. Kothe Manchetômetro Chico Alencar Daniel Costa Luiz Roberto Alves Luiz Renato Martins Benicio Viero Schmidt João Adolfo Hansen Andrés del Río Heraldo Campos José Dirceu Rubens Pinto Lyra Thomas Piketty Julian Rodrigues Claudio Katz João Paulo Ayub Fonseca Maria Rita Kehl Paulo Martins Gabriel Cohn Luís Fernando Vitagliano João Lanari Bo Luiz Werneck Vianna Michael Löwy Leonardo Avritzer Dennis Oliveira Fernão Pessoa Ramos Marcelo Módolo Ronald Rocha Gilberto Maringoni Tales Ab'Sáber João Feres Júnior Ricardo Antunes Flávio Aguiar Ari Marcelo Solon Manuel Domingos Neto Priscila Figueiredo Milton Pinheiro Airton Paschoa Henri Acselrad Igor Felippe Santos Afrânio Catani Celso Favaretto Juarez Guimarães Tarso Genro Eugênio Bucci Paulo Nogueira Batista Jr Osvaldo Coggiola Andrew Korybko Sandra Bitencourt Luis Felipe Miguel Renato Dagnino Chico Whitaker Bruno Fabricio Alcebino da Silva Celso Frederico José Luís Fiori Caio Bugiato Mário Maestri Everaldo de Oliveira Andrade Marcelo Guimarães Lima Rodrigo de Faria Ronaldo Tadeu de Souza Bernardo Ricupero Francisco de Oliveira Barros Júnior Berenice Bento Tadeu Valadares Atilio A. Boron Slavoj Žižek Vanderlei Tenório Ricardo Abramovay José Raimundo Trindade Marjorie C. Marona Eugênio Trivinho Plínio de Arruda Sampaio Jr. Anselm Jappe Leonardo Boff Francisco Fernandes Ladeira José Costa Júnior Leda Maria Paulani Alexandre de Lima Castro Tranjan

NOVAS PUBLICAÇÕES