Por CONRADO RAMOS*
A derrubada de uma árvore, o espancamento de uma travesti, a morte de um índio ou o assassinato de uma negra não abalam tanto quanto o fogo ardendo
Nas avenidas e praças, nos nomes de ruas, estradas e elevados, a cidade de São Paulo desfila seu panteão de assassinos e opressores. Sob e sobre os olhares de milhões de trabalhadores e desempregados cotidianamente mutilados, a dureza das estátuas se ergue como panóptico dos vencedores.
Os sertanistas de hoje seguem desbravando e semeando a modernidade, explorando trabalhadores, ateando fogo às florestas e atacando índios.
Uma nova estátua de um novo Borba Gato será, em alguns anos, fincada, como bandeira na lua, no coração do que hoje, ainda, é a floresta amazônica.
Contradizendo as estátuas, milhares de grafites e pichações, taxadas de agressivos e sem valor artístico, recobrem a cidade como assinaturas secretas de sujeitos periféricos sem voz. Quantos não foram os rostos de Marielle Franco apagados pelos caminhos da cidade?
“A Burguesia destrói ou se apropria dos espaços da classe trabalhadora o tempo todo. Ao transformar, por exemplo, a estação Júlio Prestes, antes frequentada por todos, num lugar exclusivo de sua sociabilidade, ressignifica aquele patrimônio. Quando há mais de um século houve a demolição da Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos de São Paulo para construir um banco (monumento ao deus Mamon), os interessados justificaram-na com a ‘feiura’ do templo religioso. Galo pode dizer aos seus algozes que o Borba Gato não é particularmente belo…
Nenhuma cidade destrói tão bem a memória dos trabalhadores quanto São Paulo, ‘locomotiva do Brasil’, que puxa os demais vagões para o inferno. Aqui, entretanto, é um dos pontos chave em que se pode sabotar toda a malha de violências exercidas contra a população brasileira.” (Lincoln Secco. “O caso Borba Gato”. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-caso-borba-gato/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-caso-borba-gato&utm_term=2021-08-12).
Interessante pensar, nesta referência passageira de Lincoln Secco pelo nome de Júlio Prestes, que este foi o último presidente eleito e não empossado da República Velha, cujo fim, com o golpe de 1930, marcou a queda da oligarquia paulista, que por sua vez fez, justamente, dos bandeirantes, seu símbolo de força e poder. Curioso ainda pensar que, depois de Júlio Prestes, o único presidente da república paulista eleito foi Jair Bolsonaro.
Dos bandeirantes às milícias, passando pela oligarquia cafeeira, este país continua tratando por mito ou herói seus dominadores necropolíticos, enquanto nas periferias as armas das forças opressoras – e a estátua do Borba Gato empunha uma delas – seguem cuspindo fogo; enquanto a Cinemateca Brasileira segue pegando fogo; enquanto o Museu Nacional segue pegando fogo; a comunidade do Cimento segue pegando fogo (Cimento esse que pegou fogo de verdade, diferente do cimento da estátua); a favela do Moinho segue pegando fogo; a Favela da Zaki Narchi segue pegando fogo.
Há memórias implantadas no imaginário popular e outras queimadas, arrancadas, interditadas.
Mas há imagens com o poder de extrair do silêncio e do esquecimento o que as estátuas, com petrificante presença e sonhos de eternidade, soterram sob seus pesados pés – tal como o joelho de Derek Chauvin.
A imagem do Borba Gato em chamas, por tudo o que representa, é um condensado histórico, um flash da porta da transformação possível, aquilo que Benjamin chamou, em referência ao surrealismo, de iluminação profana, que podemos entender como uma imagem atravessada pelo instantâneo que escapa ao sentido, não inteiramente metaforizável, o campo mesmo em que algo do desejo coletivo encontra o dar voz aos silêncios dos sintomas sociais.
Da satisfação à raiva, passando pelo medo, a imagem provocou os afetos de todos, devolvendo a cada um (e de modo mais íntimo e confesso para uns do que para outros) seu lugar na malha de poder e no espectro de transformação social, que vai da morte do Galo à queda do Gato.
Nas mais diversas e variadas manifestações que encontramos sobre o episódio, das eruditas às catárticas, podemos ler quem acredita em bruxas e sabe sacar da estante o Malleus Maleficarum quando convém e quem, com olhos arregalados e boca aberta, como anjos de Paul Klee, sabe olhar para o passado e ver entre os escombros a multidão de corpos queimados.
Quem cresceu e recebeu a educação escolar básica e pública na cidade de São Paulo, ao longo da década de 70, teve que aprender a guardar em si uma imagem olímpica dos bandeirantes. (Para as crianças daquela época, entretanto, a estátua do Borba Gato era um ponto de referência da cidade, sem muita relação com a odisseia paulista.)
Em 1974 o Estado de São Paulo ganhou como hino oficial o poema Hino dos Bandeirantes, de Guilherme de Almeida: “[…] Adiante está o sertão. / Vai, segue a Entrada! / Enfrenta, Avança, Investe! / Norte, Sul, Leste, Oeste! / Em Bandeira ou Monção, / Doma os índios bravios, / Rompe a selva, abre minas, vara rios! / No leito da Jazida, / Acorda a pedraria adormecida, / Retorce os braços rijos, / E tira o ouro, de seus esconderijos! / Bateia, escorre a ganga, / Lavra, planta, povoa! / Depois volta à garoa! […]”.
Se nessa época cantavam-se hinos de louvor e glória aos fiéis libertadores das míticas ameaças anti-civilizatórias, Paulo Galo e seus companheiros da Revolução Periférica escancararam que é na mistificação do conquistador (palavra ambígua, ainda, uma vez que pendula entre o triunfador, o xavequeiro e o devastador) que cabe reconhecer a presença da barbárie.
Quantas feiticeiras estariam vivas se Jacob Sprenger e Heinrich Kraemer não tivessem publicado seu tratado de fake news sobre magia negra?
Quantos brasileiros estariam vivos se o negacionismo do Ministério da Saúde não tivesse transformado a vacina em coisa do demônio, em nome do “Brasil acima de tudo” (nosso equivalente direto do “Deutschland über alles“)?
Quantos de nós trazemos encrostada no corpo, como segunda pele, uma estátua do Borba Gato? E quantos trazemos uma escultura de restos combustos, como as de Frans Krajcberg? De um lado, um ícone do recalcamento, de outro, índice trágico da queimada. Se o primeiro é destruição da memória, o segundo é memória da destruição. O fogo subversivo que ofendeu a primeira não é o mesmo fogo criminoso que fez da segunda monumento. A primeira representa a barbárie; a segunda, a denuncia.
Uma estátua de genocida queimada é menos profanação do que suspensão da lápide que ocultava o grito de suas vítimas.
A Revolução Periférica queimou uma estátua, mas a razão dominadora, por sua vez, já queimou tantos povos, tanta gente e tanta coisa em nome do progresso que a derrubada de uma árvore, o espancamento de uma travesti, a morte de um índio ou o assassinato de uma negra não abalam tanto quanto o fogo ardendo – como lume gigante a pedir vênia a estxs – em volta de um símbolo feito de argamassa e trilhos de bonde (aliás, nos ossos do Borba Gato jazem outras memórias perdidas da cidade).
E ainda que Júlio Guerra tenha se inspirado na arte popular nordestina, fazendo de seu Borba Gato uma espécie de cangaceiro gigante do Mestre Vitalino, é possível apostar que os defensores da estátua, preocupados mais com as toneladas do patrimônio público do que com o peso incalculável de suas representações, prefeririam aproximar o que acusaram de vandalismo ao antigo cangaço, do que analisar o quanto a narrativa do heroísmo bandeirante, ao visar a imposição do Estado de São Paulo como modernização contrastante com um propalado atraso nordestino, participou da promoção e sustentação de preconceitos presentes até nossos dias.
A imagem incendiária do Borba Gato em chamas, não menos material por ser, neste caso, imagem, até onde posso limitadamente enxergar, alcançou parte da classe média disposta a sair de sua rigidez monumental. Outra parte da mesma, porém, prefere abafar logo o que considerou violência e chamar os bombeiros da manutenção da paz e da ordem, cega e apática em seu pedestal.
*Conrado Ramos, psicanalista, é doutor pelo Instituto de Psicologia da USP.