Rebaixamento intencional?

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ COSTA LIMA*

O subdesenvolvimento é previsível dentro do sistema capitalista. O que vivemos, no entanto, é uma extraordinária novidade

Sou aqui movido por um duplo propósito; eles serão expostos em separado, para, em seguida, assinalar em poucas palavras sua dependência interna.

O primeiro propósito sequer aparece no noticiário mediático. Tem por objeto a progressiva debandada nacional dos que se especializam em algum tema científico ou amplamente cultural. Não se confunda o que se escreve sobre a evasão com a dificuldade maior de emprego por parte considerável da população. Sobre essa, a rede mediática mantém-se naturalmente atenta. Cabe então insistir: por que se daria aquela debandada, sobretudo por parte dos jovens, que já não se propõem esperar por um concurso?

Afinal, alegue-se, não são novas as dificuldades, sobretudo as de cunho antes intelectual que estritamente técnico-mecânicas. Tampouco é de agora que o uso da língua portuguesa provoca a exclusão da possibilidade de intercâmbio com os colegas de especialidade. Muito menos é novidade serem poucos (ou relativamente poucos) os lugares que os aloque ou não ser, entre nós, prática frequente o contato com outros especialistas, mesmo os de uma mesma unidade. Que então explica a debandada?

A falta de notícias a propósito não significa que fosse difícil descobri-lo. Uma primeira aproximação consiste em assinalar que o empenho sério em alguma especialização, sobretudo se intelectual, é, entre nós, bastante dificultada por nossa escassez bibliográfica. (De sua parte, já motivada pela escassez de seu consumo). Em consequência, como cada especialista sério pode responder à urgência de manter-se a par da bibliografia estrangeira? Ora, não sendo altos os salários de tais profissões e nossas bibliotecas demasiado carentes, como manter-se em dia com a bibliografia estrangeira? Mais explicitamente, como ter acesso às publicações estrangeiras ante o encarecimento progressivo do dólar?

Como jornalistas e leitores estarão acostumados aos milhões pedidos nas frequentes falcatruas, poderão não se impressionar que o preço de 300 ou 500 reais tenha de ser disponível para o pagamento e transporte de um exemplar bastante simples. E, como a soma de leitores de uma atividade estritamente intelectual é mínima, não provoca protestos e reclamações a ausência de notícias a respeito ou eles não importam. Seria ainda preciso acrescentar que, dentro dessa ambiência, nos tornamos intelectualmente cada vez mais pobres? Prova eloquente da insignificância com que os círculos oficiais encaram a situação é a proposta de um dos nossos ministros atuais de taxar o livro, sob a alegação de que, entre nós, a leitura de livros é exclusividade de ricos. (Caberá ainda pensar que o desastre político que vivemos é ocasional e provisório?)

Passo ao segundo propósito que aqui me move. Em um só dia, encontro em um único jornal noticiados os informes que reúno. São projetos aprovados de privatização de parques e edifícios públicos, de restrição das reservas indígenas, de iniciativas de destruição da mata atlântica e amazônica, de negociatas sobre a vacina contra a Covid, que tanto implicam o não acesso da vacina como nos milhões reservados para seus intermediários, de informes relativos à censura contra a divulgação de notícias contrárias às autoridades, ao mesmo tempo em que se defende o direito de expressão de atores favoráveis ao governo, mesmo que se trate de casos absolutamente descabidos, sobre a suspensão de processos contra “rachadinhas”, sobre a defesa constitucional de autoridades que, no entanto, são conhecidas por suas agressões à lei, sobre a proposta de a abertura no trabalho dos tribunais por orações religiosas, ainda que o Estado seja oficialmente leigo, para não falar dos informes sistemáticas sobre o aumento dos desempregados, dos subempregados, sobre a desvalorização da moeda nacional, etc, etc. Em suma, ao que parece, o limite do limite não é alcançável.

Diante da avalanche de notícias semelhantes, me pergunto se não fazem parte de um projeto consciente e calculado de auto-encolhimento proposital do país, deixando de ser simplesmente prova da estupidez de um governo e das “otoridades” que o garantem. Por certo, não é de agora que somos subdesenvolvidos. Mas o subdesenvolvimento é previsível dentro do sistema capitalista, ao passo que o que vivemos, mesmo dentro da desigualdade capitalista, é uma extraordinária novidade. Restaria perguntar a que grupos e/ou pessoas o auto-encolhimento nacional interessa. Prefiro deixar a pergunta em aberto.

*Luiz Costa Lima é Professor Emérito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) e crítico literário. Autor, entre outros livros, de O chão da mente: a pergunta pela ficção (Unesp).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Bento Prado Jr. Manuel Domingos Neto José Luís Fiori João Lanari Bo Eliziário Andrade Vinício Carrilho Martinez Vladimir Safatle João Adolfo Hansen José Geraldo Couto Gerson Almeida Priscila Figueiredo Julian Rodrigues André Singer Samuel Kilsztajn Henry Burnett Dennis Oliveira José Machado Moita Neto Antonio Martins Marcelo Guimarães Lima Bruno Fabricio Alcebino da Silva Otaviano Helene Luiz Renato Martins Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eleutério F. S. Prado Paulo Capel Narvai Yuri Martins-Fontes Manchetômetro Eugênio Trivinho Milton Pinheiro Luciano Nascimento Annateresa Fabris Bernardo Ricupero Francisco de Oliveira Barros Júnior Luis Felipe Miguel Ricardo Fabbrini Marcus Ianoni Valerio Arcary Flávio Aguiar João Carlos Loebens Lorenzo Vitral Gilberto Lopes Eugênio Bucci Kátia Gerab Baggio Sandra Bitencourt Heraldo Campos Armando Boito Daniel Costa Celso Frederico Luiz Bernardo Pericás Anderson Alves Esteves Leonardo Avritzer Marcelo Módolo Celso Favaretto Lucas Fiaschetti Estevez Luiz Marques Rodrigo de Faria Vanderlei Tenório Gilberto Maringoni Alexandre Aragão de Albuquerque Leonardo Boff Carla Teixeira Jean Pierre Chauvin Salem Nasser Ricardo Musse Fernando Nogueira da Costa Juarez Guimarães Ari Marcelo Solon Berenice Bento Airton Paschoa Rubens Pinto Lyra Luiz Werneck Vianna Andrew Korybko Daniel Afonso da Silva Caio Bugiato Jorge Luiz Souto Maior Claudio Katz Ricardo Abramovay Marcos Aurélio da Silva Leda Maria Paulani José Dirceu Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Carlos Bresser-Pereira Elias Jabbour José Raimundo Trindade Henri Acselrad Luís Fernando Vitagliano Marcos Silva João Sette Whitaker Ferreira Andrés del Río Antonino Infranca Daniel Brazil Matheus Silveira de Souza Eduardo Borges Rafael R. Ioris Michael Roberts Paulo Nogueira Batista Jr Afrânio Catani Flávio R. Kothe Igor Felippe Santos Leonardo Sacramento Thomas Piketty Mariarosaria Fabris Maria Rita Kehl Marjorie C. Marona Renato Dagnino Alexandre de Lima Castro Tranjan Tarso Genro Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ronald León Núñez Paulo Martins Alexandre de Freitas Barbosa Ronaldo Tadeu de Souza Antônio Sales Rios Neto Ladislau Dowbor Francisco Fernandes Ladeira Liszt Vieira Slavoj Žižek Mário Maestri Chico Alencar Remy José Fontana João Paulo Ayub Fonseca Carlos Tautz Tadeu Valadares José Micaelson Lacerda Morais José Costa Júnior Michel Goulart da Silva Benicio Viero Schmidt Jorge Branco Lincoln Secco Érico Andrade Sergio Amadeu da Silveira João Carlos Salles Gabriel Cohn João Feres Júnior Fernão Pessoa Ramos Luiz Roberto Alves Bruno Machado Anselm Jappe Fábio Konder Comparato Francisco Pereira de Farias Ricardo Antunes Atilio A. Boron Alysson Leandro Mascaro Tales Ab'Sáber André Márcio Neves Soares Paulo Sérgio Pinheiro Everaldo de Oliveira Andrade Michael Löwy Luiz Eduardo Soares Chico Whitaker Denilson Cordeiro Dênis de Moraes Osvaldo Coggiola Jean Marc Von Der Weid Boaventura de Sousa Santos Paulo Fernandes Silveira Walnice Nogueira Galvão Marilena Chauí Eleonora Albano Ronald Rocha

NOVAS PUBLICAÇÕES