Algumas taras da direita brasileira

Imagem: Ylanite Koppens
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Por FLAVIO AGUIAR*

Continentes sem conteúdo, presas de seus próprios preconceitos

Diz que a palavra “tara” vem de uma outra, árabe, tarah, arcaica tarh, que significa “desconto”. Seu significado original é o do peso de um continente vazio de seu conteúdo, algo assim como um vagão de trem desprovido de sua carga. Daí, por estes processos metafóricos da vida, em geral eivados de preconceitos, “tarado” passou a designar alguém que carrega consigo um peso morto psicológico, uma espécie de obsessão que o desequilibra para a “vida normal”.

Coloquei esta última expressão entre aspas porque sabemos o quanto a “vida normal” pode ser cheia de “taras”, e o quanto os “homens de bem”, “normais”, podem carregar consigo taras inomináveis. Na Alemanha, ao final dos anos 30 do século passado, o “normal” era ser nazista, e os artistas que destoavam eram vistos como “degenerados”, e por aí ia, ou ainda vai.

Fiz este preâmbulo inicial para tecer considerações sobre o que vejo como algumas taras da direita brasileira, pesos mortos que ela carrega consigo, no processo em que foram se tornando, pelo menos desde o fim da Segunda Guerra, continentes sem conteúdo, presas de seus próprios preconceitos, de que não conseguem se libertar.

Neste 31 de agosto celebramos o quinto aniversário do golpe parlamentar-midiático-jurídico contra a presidenta Dilma Rousseff. Este golpe conviveu com o golpe da Lava-Jato contra Lula e contra o Brasil, e abriu as portas para o golpe bolsonarista nas eleições de 2018, estribado na falsidade ideológica das mentiras chamadas pudicamente de fake news.

A seguir, veio esta série de golpes do governo bolsonarista que, para dizer o mínimo, confunde “governar” com “dirigir motocicleta” acompanhado por um bando de marmanjos descerebrados. Sem falar no seu Mágico de Oz, o ministro Paulo Guedes, que confunde seguidamente “administrar” com “dolce far niente”.

Bom, com a ajuda de mais algumas figuras sinistras, como o chanceler Ernesto Araújo, o ministro Ricardo Salles e a ministra Damares, além da infindável procissão de militares incompetentes e com fama de corruptos, conseguiram destruir a imagem internacional do Brasil (o que não é pouco, um feito sem precedentes na nossa história), construída laboriosamente desde que D. Pedro I se casou com Da. Leopoldina, da Casa Austríaca dos Habsburgo, e Pedro II com Da. Teresa Cristina de Bourbon.

Bom, mas a verdade é que em sua carreira, a direita de nosso país, sobretudo a partir do final da Segunda Guerra, começou a manifestar um vezo maníaco por romper com a ordem institucional do país, talvez por sentir como se tornava difícil vencer eleições com sua avidez programática de entregar suas mãos, pouco afeitas ao trabalho, mesmo o manual de escritório, para preservar o privilégio de seus anéis.

Na série de golpes que foram desfechando desde então – em 54, contra Getúlio; em 55, contra Juscelino; em 61, contra Jango; em 64 contra o Brasil inteiro; em 68, o supra-sumo do golpe dentro do golpe; em 2016 contra Dilma e em 2018 contra as eleições, promovendo o atual usurpador do Palácio do Planalto – a direita brasileira manifestou algumas constantes de comportamento que a recomendariam para um tratamento clínico que ajudasse a resolver seu comportamento crescentemente cínico. Senão vejamos:

(1) O alinhamento dos golpistas com a política e os interesses dos Estados Unidos, sabotando um desenvolvimento autônomo do Brasil, seja nos tempos da Guerra Fria ou agora, com os interesses econômicos e políticos de Washington, diante do pré-sal nas águas territoriais brasileiras, ou das tentativas de barrar a presença da China e da Rússia na América Latina.

(2) O papel ativo na preparação, no desfecho e na sustentação dos golpes por parte de quase toda a mídia tradicional, corporativa e empresarial do país, que, não raro, praticaram formas de autocensura antes mesmo de serem também censuradas pelos regimes arbitrários que ajudaram a instalar.

(3) A repressão brutal contra movimentos de trabalhadores na cidade e no campo, contra o movimento estudantil e outros campos de resistência, acompanhada pela censura à informação, de arrocho salarial e de restrição aos direitos trabalhistas.

(4) Embora a participação de civis na organização dos golpes e na sustentação dos regimes subsequentes tenha sido sempre importante, quando o golpismo tem sucesso segue-se uma crescente militarização do Estado brasileiro, com consequências nefastas em todas as esferas da vida pública.

(5) Os golpistas buscam toda a forma de subterfúgios legais e jurídicos para construir, justificar e sustentar suas ações, sempre ao arrepio da lei mas procurando apresenta-las como compatíveis com o ordenamento jurídico da nação.

(6) Não menos importante é a seleção de palavras-chave e de bandeiras que ocultem a verdadeira natureza das ações golpistas e construam uma fachada de respeitabilidade perante a História do país. Foi e é assim com as bandeiras de uma suposta luta contra a corrupção, como no caso do “mar de lama” contra Getúlio em 1954 ou no caso mais redente da Operação Lava-Jato contra Lula e os governos de esquerda no país; com o levantar recorrente do espantalho do comunismo para justificar a repressão; ou como na tentativa de esconder o caráter golpista em 64 sob o nome de “Revolução”.

(7) Todo este esforço visa, dentro de outras características, a construção de uma fachada fantasiosa, onde o recurso a imagens religiosas tem sido importante, que substitua a visão da realidade e justifique a naturalização da violência contra todas as formas de oposição ao golpismo, o que muitas vezes incluiu assassinatos e o uso da tortura.

(8) Last but not least, o comportamento deliquescente e delinquente desta direita veio, ao longo do tempo, promovendo figuras cada vez mais escalafobéticas e alopradas para cumprir seu desígnio de não ter desígnios para o país.

Depois do governo anódino e reacionário de Eurico Gaspar Dutra (que, aliás, venceu com ajuda de Vargas), a direita promoveu de novo o brigadeiro Eduardo Gomes, aquele que, rimando com seu posto militar, era “bonito e solteiro”. A seguir, veio o carrancudo general Juarez Távora, contra Juscelino.

Daí pra frente, a coisa começou a desandar. Jânio Quadros era um desequilibrado. Os presidentes militares, embora mantivessem o decoro da caserna (com exceção de Figueiredo, encantado com o perfume de estrebaria) , eram múmias históricas. Sarney até que deu para o gasto, promovido a presidente por um acidente médico-hospitalar. Collor revelou-se um narciso meio pirado. Deixo FHC para o final. A sucessão Alckmin – Serra – Aécio revelou-se progressivamente derretida, picolés de chuchu, como se dizia de um deles.

Temer foi um fiasco, parecia mais porteiro de cemitério do que presidente da República. Bom, quanto a Bolsonaro, nem falar. Parece uma genitália que assumiu definitivamente o controle de uma cabeça sem cérebro.

Deixei FHC para o final. Por quê? Porque para mim ele é um enigma. Será que foi o professor Fernando Henrique Cardoso, o “príncipe da Sociologia”, que gestou esta fachada política chamada FHC, negociando com o que de mais reacionário havia na política brasileira de então, o PFL? Ou terá sido o contrário? Isto é, o FHC desde sempre medrou sob a fachada que era o professor-príncipe, desabrochando no hoje baronete de Higienópolis? Vá se saber.

Bom, mas pelo menos ele tinha princípios ecológicos, sabia comer com garfo e faca e tomar vinho francês. Não fazia feio no banquete geopolítico, o que não é pouco para a élite brasileira.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

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