Por LUIZ MARQUES*
Para derrotar o fascismo é importante formar um bloco que junte os socialistas e os democratas na defesa do Estado de Direito Democrático
“Como tudo sempre acaba, / oxalá seja bem cedo!” (Cecília Meireles).
O Brasil está submetido a uma democracia de baixa intensidade, num regime social que oficializa a exclusão, através da fome e do abandono, de todas e todos que a dinâmica capitalista considera peças defeituosas da engrenagem de acumulação. Vive-se hoje “em uma sociedade politicamente democrática e socialmente fascista”. Donde se depreende a necessidade de, na “Difícil Democracia, Reinventar a Esquerda”, para lembrar o ensaio que Boaventura de Sousa Santos publicou pela editora Boitempo, em 2016. Ano em que o Parlamento, sob as vistas grossas do Judiciário, rasgou a Constituição no impeachment de uma presidenta honesta (Dilma Rousseff) – sem crime de responsabilidade. O Senado admitiu o erro, ao não retirar-lhe os direitos políticos. O fato foi secundarizado na mídia.
O estrago com o golpe parlamentar-jurídico-midiático, porém, foi consumado. Com o que a democracia trocou de categoria, de ruim para pior, e tornou-se de baixíssima intensidade. E seguiu descendo a ladeira, depois da aprovação da emenda constitucional que suspendeu por vinte anos os investimentos em educação e saúde. A nefasta obra se completou na entrega do órgão de poder responsável pela política monetária, o Banco Central, aos banqueiros e rentistas. Sem mencionar as terceirizações e a reforma do sistema previdenciário.
Em uma democracia de alta intensidade há um equilíbrio entre os ideais de liberdade individual e as políticas governamentais para potencializar a justiça social. Não é o que acontece, hoje. O presidente Bolsonaro fez da noção pervertida de liberdade o sinônimo da primazia do egoísmo no espaço público. De modo que o valor supremo do governo se manteve sempre distante do projeto civilizatório orientado pelo solidarismo. Ao contrário, converteu o “estado de natureza” hobbesiano em seu habitat natural: homo homini lupus:
a) Na política, ao defender os direitos individuais em contraposição aos direitos da coletividade, boicotando de forma deliberada as recomendações das autoridades sanitárias na pandemia, no que tange ao uso de máscaras e ao isolamento social, e promovendo frequentes aglomerações. Se fez publicidade da Hidroxicloroquina, com a divulgação de uma campanha que evitasse a propagação do vírus não gastou um centavo que fosse;
b) Na economia, por defender o laissez-faire do mercado à revelia dos interesses das maiorias. E abrir mão da estocagem de alimentos para regular o consumo interno, em proveito das exportações favorecidas pelo câmbio (dólar alto, real baixo). Isto é, deixou de fazer o certo em uma crise econômica para proteger a segurança alimentar da população.
O resultado foi a elevação dos preços, por exemplo, da carne e frango em supermercados, o que contribuiu para a inflação de dois dígitos. Não à toa, ruralistas estão empenhados em sustentar o ímpeto golpista da “familiciana”. Dispostos, inclusive, a arregimentar caminhões das empresas do agronegócio, com lastro de trabalho escravo, crimes ambientais e conflitos agrários, – para gerar o caos propício à decretação de um Estado de emergência: “agro é tech, agro é pop, agro é tudo”… Para quem, com vezo colonial-escravista, pensa o país como entreposto comercial, o slogan é perfeito. O bem comum da nação é nada. Óbvio.
Fascismo social
O fascismo social se enraíza em sociedades de proteção esquálida às classes subalternas, onde o capitalismo não sofre regulação e impera o darwinismo socioeconômico; a fome atinge dezenas de milhões de famílias que não conseguem assegurar o mínimo para a sobrevivência de seus filhos e não reúnem meios para planejar o futuro; os trabalhadores são precarizados e jogados nas esquinas da informalidade; as aposentadorias são indignas e o ensino superior um privilégio de raros jovens de extração popular; o racismo colonialista e o sexismo patriarcal andam de mãos dadas; a lgbtqia+fobia provoca a violência contra a sexualidade não hegemônica e as relações sociais recendem a dialética autoritária da dominação vs. subordinação; o religioso com cuidado assistencial ao “povo da rua” é agredido pela falta de empatia da deputada projetada no antipetismo e; critérios talibãs são usados para indicar membros obtusos em ministérios e candidatos à vaga na Alta Corte. Qualquer semelhança com esse país macunaímico não é coincidência. O tripé capitalismo / colonialismo / patriarcado, sob a égide do neoliberalismo, expulsa do contrato social classes, países e continentes inteiros dos valores civilizacionais e dos inalienáveis direitos humanos.
Nisso, consiste a dimensão do apartheid inerente à gramática fascista, que divide as cidades entre os habitantes beneficiados pelo contratualismo com garantia à vida, à propriedade e à liberdade, sob o manto das instituições estatais e dos equipamentos urbanos e, no reverso, os que padecem o esquecimento atirados aos lobos (sem Estado), em geral concentrados nas periferias (com Deus). As quais são subjugadas pelo poder de mando de autoridades paraestatais, erigidas pelo narcotráfico e pelas milícias, com regras fora da ordem legal. No andar de cima, os civilizados. Nos porões, em que tudo é permitido e prevalecem o silêncio e a pena de morte em linchamentos – os selvagens, os vulneráveis, os dispensáveis.
O fascismo social tem também uma face filantrópica e outra territorial. Nas “pessoas de bem”, a filantrópica se insurgiu contra a obrigação de cumprir a legislação trabalhista ao empregar serviços domésticos e assistir o ingresso de dependentes das empregadas nas universidades públicas. A estética cinematográfica de Que Horas Ela Volta?, dirigida por Anna Muylaert, que disputou o Oscar de melhor filme estrangeiro (merecia ter ganho), retratou com talento as desigualdades sociais. O descontentamento adveio de direitos conquistados por políticas públicas para o que, antes, decorria da generosidade dos patrões. Já a face territorial fascista exprimiu a contrariedade com as cotas étnico-raciais e a crítica à transformação (sic) dos aeroportos em rodoviárias. “As vítimas do fascismo social não são tidas como plenamente humanas por quem impunemente pode agredi-las e explorar”, conforme Boaventura (Revista IHU, 08/12/2016). Vítimas não têm o direito a ter direitos.
A fascistização da sociedade dá prosseguimento ao genocídio dos povos originários, com a liberalização de suas terras para a devastação florestal pelo garimpo e a agropecuária extensiva. O “marco temporal” pretendido pelo desgoverno em curso leva ao ápice a extinção de nações tribais na Amazônia. Em Bolsonaro, o epíteto de genocida não é figura de linguagem, mas uma caracterização correta sobre a conduta de um (dem)ente público: seja no tratamento da doença pandêmica com a estratégia da imunidade de rebanho (pela contaminação, não pela vacinação), seja na maneira como “deixa passar a boiada” sobre o o pulmão do mundo. A luta pela emancipação popular precisa enfrentar a necropolítica neoliberal, que se beneficia da expansão fascistizante. O alerta de Felix Guattari (Cult, setembro 2021) procede: “Deveríamos abandonar definitivamente as fórmulas demasiado fáceis, do tipo ‘o fascismo não passará’. O fascismo já passou e não para de passar”. A memória da chacina no Jacarezinho, na Cidade Maravilhosa do Rio de Janeiro, pelas forças policiais remuneradas pelo erário, serve de prova para o convencimento dos céticos.
Fascismo político
O termo fascismo vem do latim fascio (feixe), símbolo de união herdado do Império Romano representado por um machado envolto num feixe amarrado. Na condição de corrente política, surgiu na Itália em 1919 e perdurou até 1943. Ideologicamente, posicionou-se contra o socialismo e o liberalismo. Em lugar do voto das individualidades, consagrado pelo ideário liberal, propunha o voto por corporações. Tinha por lema: “Crer, Obedecer, Combater”. Tradução: Crer na Tradição, Família. Propriedade. Obedecer à Hierarquia Político-Militar. Combater pela Pátria e pelo Líder (e o clã, por supuesto).
Entre os traços que distinguem o fascismo está o totalitarismo, o controle da vida privada e nacional; o autoritarismo, encarnado no guia-mor cujas orientações são indiscutíveis posto que é o farol que ilumina o caminho que conduz à salvação; o militarismo, fiador da solução para os problemas e as controvérsias de caráter político-ideológico e; a hierarquização, para que os mais fortes possam assumir o controle da sociedade. O nazismo acrescentou ao indigesto caldo de cultura bárbara o antissemitismo, que projetou o holocausto e o espectro totalitário internacionalmente. Poucos observadores anteciparam a crise que iria se alastrar por toda a Europa e chegar aos trópicos com o Integralismo, liderado por Plínio Salgado. Agora – hélas – renasce das cinzas em ambos os hemisférios. Sem que se tenha equacionado a polêmica teórica que opõe os que enxergam uma incompatibilidade indômita entre os sistemas totalizantes (que fundem a esfera do privado com a do público) e a lógica do capitalismo, por um lado. Por outro, os que compreendem que a formatação totalitária adequa-se como uma luva aos fins imperialistas do capitalismo monopólico. La nave va.
Tais são alguns dos elementos que compõem a subjetividade dos fáscios. Permitem entender o uniforme disciplinador (verde-amarelo, no bolsonarismo) que enfeixa suas manifestações, como uma farda esttilizada. A disciplina faz parte do leque de tipologias e abordagens analíticas sobre o fascismo histórico, de acordo com o Dicionário de Política (Universidade de Brasília), organizado por Norberto Bobbio et alli. Não admite a formação de desídias no movimento, por definição, homogêneo e compacto. Sacrifica os núcleos dissidentes da tônica expressa pelo Grande Irmão: L’État C’est Moi, parafraseando Luiz XIV. O impacto visual nas ruas decorre da lembrança infantil, sob a ditadura civil-militar, no Brasil pós-64, acerca dos desfiles escolares de comemoração patriótica em cada sete de setembro. O fenômeno tem evidentes singularidades nacionais, italianas, alemãs, portuguesas, espanholas… E universalidade, apontou Umberto Eco, em O Fascismo Eterno (Record).
Historicamente, nas origens dessa eclosão irracionalista da política está um momento emblemático do capitalismo, com o acirramento da luta de classes e o agravamento da exploração dos trabalhadores. Trata-se do despotismo aberto da burguesia sobre a comunidade nacional, sem a mediação institucional dos partidos políticos, das casas legislativas e das instâncias da República, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no caso brasileiro. Para alguns, o fascismo é a revolta da pequena-burguesia, que fornece quadros e bases sociais para encorpar o movimento. Não obstante, sem desenvolver um programa com autonomia das antigas classes dominantes.
A classe média seria a massa de manobra instrumentalizada pelos desígnios do grande capital – contra os trabalhadores, os pobres, os oprimidos. “Bolsonaro tem como estratégia uma nova localização do capitalismo brasileiro no mundo em uma aliança com uma fração do imperialismo norte-americano contra a China. O plano de recolonização repousa na expectativa de que as inversões estrangeiras são a chave para a retomada do crescimento econômico”, avalia Valério Arcary no artigo O Grito da Paulista (A Terra É Redonda, 10/09/2021). O putsch imaginado para o Dia da Independência não venceu. Entrementes, não está derrotado, como supõem os que colorem de otimismo a dura realidade concreta.
É um equívoco catalogar como meras ilustrações de “loucura coletiva” a mobilização de multidões sob as bandeiras fascistas, como faz José de Souza Martins ao denunciar a atualidade da Tirania do Medo (Valor Econômico, 10/09/2021): “A facilidade irresponsável com que o governante daqui atrai e aglutina gente medrosa é notória tanto em suas bravatas, quanto nas bravatas dos que são por ele atraídos”. Hitler e Mussolini, de início, foram acusados de demagogos, chefes de torcida organizada, bufões, histéricos, bravateiros. Melhor fez a revista Carta Capital (15/09/2021) para a tomada de consciência sobre o risco de se estenderem os tentáculos do fascismo político, quando define o impasse à espreita: “Apesar de tudo, Bolsonaro ainda tem apoiadores fanáticos capazes de dar-lhe sobrevida até à eleição, e o país que se moa”. Eu não creio em bruxas, mas que existem, existem.
Para derrotar o fascismo
N o arco da esquerda, os partidos políticos que se recusaram participar do ato convocado pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e pelo Vem Pra Rua, em 12/09. estavam corretos no posicionamento. Uma, porque não estiveram na preparação e não consensuaram pontos mínimos para uma Frente Única contra o bolsonarismo. Duas, porque a chamada “Nem Bolsonaro, Nem Lula”, que prevaleceu na prática embora retirada do texto convocatório, não estimula a unidade das oposições com respeito às diferentes identidades partidárias. Tampouco sintetiza com correção a agenda de enfrentamento na conjuntura. O obstáculo à unidade está na contabilidade dos organizadores do evento. O fracasso da iniciativa, de Norte a Sul, idem. As juras de amor à “terceira via” não tocam o coração do Brasil, em especial se partem de segmentos que contribuiram para criminalizar a política e efetuar o golpe que abriu uma avenida para a ascensão da extrema-direita. Àqueles e àquelas que, agora, desembarcam do pesadelo gerado conviria calçar as chinelas da humildade.
Para derrotar o fascismo é importante formar um bloco que junte os socialistas e os democratas na defesa do Estado de Direito Democrático, sem que ninguém esteja constrangido a integrar o cortejo antifascista nas últimas fileiras da passeata, por vergonha. Ou vestir outras cores que não as suas, por imposição. A política frentista exige maturidade do conjunto plural dos manifestantes – para evitar os atritos registrados em Belo Horizonte e a sucessão de atos esvaziados, que acabaram por viralizar nas redes sociais #DerreteMBL.
Haverá quem se contente com fortalecer os alicerces da democracia representativa e as instituições que dão suporte ao establishment, deixando entre parênteses as reformas que podem efetivamente democratizar a política, a economia e a cultura na sociedade, assim como implementar instrumentos de combate aos desmatamentos e de preservação do meio ambiente. Haverá quem almeje um passo maior para, além de incluir os pobres no Orçamento da União e os ricos no Imposto de Renda, revisar a “privataria” em andamento, o desmonte da Petrobrás e a política de alinhamento automático aos Estados Unidos em termos geopolíticos. Mas, estas, não são questões a serem debatidas na formação do bloco antifascista. Concernem ao perfil programático das partes e não ao vetor de unificação das aspirações políticas sob o denominador comum. Muita calma nessa hora, compagni.
Em um poema, Bertolt Brecht comenta: “Quando se está até o pescoço num charco / De dívidas, num Estado destes, não se pode tolerar!”. É preciso um basta no que está aí. “Andar de barco…? / Fico-me a olhar pra isso há já um bom par de anos… / Cuspo de nojo, sim, mas que tenho eu ainda a ver c’o charco?!… / Vejo com toda nitidez para onde vamos… / É pra aí que vamos?” A pergunta importa mais que as possíveis respostas.
O desafio geral cimenta a experiência democrática de resguardo dos princípios conformadores dos distintos projetos, que compartilham a disputa pela hegemonia “dentro das quatro linhas” da Carta Magna de 1988. As classes sociais que desenham o mapa socioeconômico nacional não alimentam um consenso irrestrito sobre os procedimentos em face dos métodos de ação (tática) e dos propósitos a serem alcançados (estratégia). Como no ditado, no andar da carroça é que as abóboras se encaixam. No percurso, a população terá a oportunidade de avaliar cada uma das plataformas apresentadas para a sociedade e o Estado no caleidoscópio político. O compromisso está em ressaltar o engajamento imediato na luta contra Bolsonaro e o bolsonarismo. Ameaças, que são, à ideia de civilização, à possibilidade de diálogo em clima de tolerância, à existência do pluralismo político e da diversidade étnica, social, sexual, religiosa. Venceremos. Sem vaidades exacerbadas. Sem sectarismos.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.