Nelson Rodrigues no cinema

Imagem: Glauco Rodrigues
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Por ISMAIL XAVIER*

Considerações sobre as influências do cinema na obra do dramaturgo e as transposições de suas peças pelo cinema brasileiro

São raras as ocasiões para verificar, em conjunto, como os filmes adaptaram, traduziram, traíram o mundo de Zulmira ou do Boca de Ouro, de Amado Ribeiro ou de Geni, e tomaram posição diante dos conflitos por eles vividos, revelando ou não o mundo ácido do dramaturgo, confrontando ou não o debate sobre os estilos e gêneros dramáticos das peças. O objetivo maior aqui é abrir o leque de relações, propor novos recortes que explorem as fronteiras do mundo do escritor, lembrando o cinema que Nelson Rodrigues viu e elegeu, os filmes que ele incorporou em sua ficção ou que marcaram sua formação e obras que citou como um cinéfilo afinado à produção industrial e ao glamour de Hollywood, resistente ao chamado cinema de arte (Nelson partilhou com outros intelectuais de sua geração a postura provocativa de ataque à “nouvelle vague” e ao Cinema novo, com uma ou outra exceção, por exemplo, o elogio a Terra em transe, de Glauber Rocha).

As preferências pessoais de Nelson se esboçam aqui por meio do que seria para ele o “bom objeto” cinematográfico, tenha ou não tido incidência maior em sua obra. E há também que evocar o cinema que ele de fato incorporou, seja por meio da menção episódica de um título ou do nome célebre de “star“, seja por meio de certo espelhamento temático ou formal, como aconteceu com Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, lembrado por Décio de Almeida Prado em sua resenha de Boca de Ouro, em 1960, ao comentar o dispositivo de três versões da mesma história. Em outras situações, não é um filme, mas todo um paradigma ou gênero que se evoca, como é o caso do romance gótico, tão explorado por Hollywood em filmes como Rebecca (1940), de Hitchcock, e O segredo da porta fechada (1948), de Fritz Lang, ambos podendo servir de referência central a Meu destino é pecar (1952) ou de modelo, entre outros, no enredo de Toda nudez será castigada (1965). Afinidade num plano formal mais genérico, já se observou a afinidade do teatro de Nelson com estruturas de espaço e tempo dinamizadas pelo cinema: o flashback, a montagem paralela de cenas rápidas, o tom espetacular das inversões, a concisão e o coloquialismo dos diálogos (embora aqui o aspecto principal seja a transposição de uma “fala brasileira”). Essa afinidade é vista como favorável à adaptação ao cinema – porque ele já estaria na peça –, mas pode ser uma ilusão, pois o que gera um bom efeito no palco, porque cinema na forma, pode se banalizar na tela, porque sem valor distintivo (o que efetivamente aconteceu em várias adaptações).

Às vezes, um filme se insere na ficção rodriguiana através dos personagens. Há um efeito cômico notável extraído da reiterada conversa em torno de Os amantes (1958), de Louis Malle, em Asfalto selvagem. Aqui, a representação da sexualidade no cinema se torna um “leitmotiv” da narrativa porque choca (e inspira) os personagens, servindo de pontuação irônica para a crônica de costumes. E há exemplos mais pontuais, em que a evocação de atrizes serve para uma caracterização telegráfica, como é o caso de Celeste, a moça de subúrbio em Boca de ouro, cuja fixação em Grace Kelly, pela forma como é proclamada, vale como um retrato.

O mundo da imprensa focalizado nas peças e romances, em consonância com uma vida social em que a imagem veio a primeiro plano, evidencia a atenção do escritor ao que tais influxos modernos representam como ameaça de acidente ou violência, como convite ao voyeurismo e ao exibicionismo, uma vivência de excessos que dissolve o velho decoro da privacidade e dos segredos de família. A intensidade dos estímulos, seu teor invasivo, tem como contrapartida a alteração de valores do gesto e da atitude, mudança que torna o que era de mau gosto e motivo de vergonha em estratégia de auto-afirmação.

Esses traços da experiência se projetam na sensibilidade, alteram o gosto estético, incidem sobre a forma de avaliar os gêneros dramáticos e as virtudes do estilo, opondo o que seria um senso moderno do trágico como “resistência estóica” – o suportar dignamente em silêncio – ao que seria a extroversão (no limite da histeria) própria aos lances do melodrama – esse “dizer tudo” que a cena de Nelson Rodrigues incorpora.

Isso tem a ver não apenas com o cinema industrial, mas com a cultura urbana que o fez emergir como espetáculo, potencializando o olhar, que oscila da curiosidade mais “científica” à pura bisbilhotagem.

Passamos da era do segredo cultivado à da exposição à luz do dia, itinerário que o cinema clássico tornou um motivo central. O segredo da porta fechada é título simbólico que resume bem o olhar do cinema que se fez “bom objeto” para Nelson Rodrigues. Um cinema movido pela pergunta: o que há por trás de tudo, em “off“, nesse domínio obscuro que se quer tornar visível? Essa questão pode envolver um passado que assombra ou uma expressão que se esconde na fisionomia que nos confronta. Um ponto decisivo é a leitura do rosto, a capacidade de reconhecer nele o vício ou a inocência, de viver a equação judaico-cristã do logro e, em especial, a das faces de Eva, cujo paradigma extremo é a “femme fatale“, figura de fascínio e ruína, construída com densidade por Von Sternberg e Pabst, antes de sua apropriação pelo filme “noir” americano. E que depois encarnou aqui e ali nas jovens rodriguianas, cujo perfil às vezes se anunciou no título das obras: Bonitinha, mas ordinária, Engraçadinha, seus pecados

Vale a pena examinar filmes e cineastas brasileiros, que, sem supor influência, formaram afinidades, porque semelhantes no tema, na estrutura ou nos motivos. Um diálogo inevitável que se impõe com maior pertinência a partir dos anos 1970, período em que o cinema experimentou mergulhar no terreno do teatro “desagradável”. Sim, porque as peças do dramaturgo brasileiro, embora renovem o prazer das reviravoltas e revelações, tendem a um desenlace catastrófico. Em outras palavras, o Nelson-escritor não repete o “bom objeto” do Nelson-espectador. Depois da tempestade, não nos devolve a um terreno seguro: faz mais complicado e soturno o horizonte dos conflitos irreconciliáveis, como na tragédia.

Às vezes, o que se afinaria ao cinema clássico e ao “fait-divers” da imprensa diária está lá a aproximar as peças do cotidiano da cidade. Mas o teatro de Nelson insiste em explorar o que há aí de mais problemático, num exemplo notável de mistura de estilos e tons. Nelson Pereira dos Santos, no filme Boca de ouro (1962), fez opção pelo realismo e tirou bom rendimento das tensões entre seu ponto de vista e o do dramaturgo; o mesmo se deu com Leon Hirszman, que, saído dos Centros Populares de Cultura, filmou A falecida (1965) com um tom sério-dramático radical que surpreendeu os críticos e o próprio escritor. Esses dois cineastas são o destaque do período 1962-6, justamente pelo diálogo a contrapelo.

E valeu naquele momento a atuação, como produtor, roteirista e ator, de Jece Valadão, principal impulsionador da tradução do dramaturgo para o cinema. Outras adaptações da época ficaram marcadas por um naturalismo mais convencional, como o filme Bonitinha, mas ordinária (J. P. de Carvalho, 1963) e, de J. B. Tanko, Asfalto selvagem (1964) e Engraçadinha depois dos trinta (1966). O beijo (Flávio Tambellini, 1966) nos deu o exemplo raro de uma versão expressionista de Nelson Rodrigues. Em 1972, Arnaldo Jabor realizou Toda nudez será castigada, explorando os limites entre o kitsch e a experimentação estética, entre a tragédia moderna e o melodrama, fazendo avançar o debate sobre a representação da experiência brasileira e retomando questões postas pelo tropicalismo em 1967-8.

O filme capturou uma atmosfera irônica de autodesqualificação do brasileiro (que replica na alegoria de Tudo bem, em 1978), cômica e exasperada, presente já em Bonitinha, mas ordinária, na figura de Fregolente, que interpreta o burguês cafona, administrador de orgias. Desdobramentos nos anos 1960-70 incluem a figura de J. B. da Silva, o político gângster de O bandido da luz vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), nítida derivação dos boçais rodriguianos cercados por uma locução radiofônica submetida à paródia.

A tragicomédia se afirma, então, como uma nova forma de qualificar o drama social brasileiro, e Jabor a radicaliza em 1975, ao adaptar o romance O casamento, no mais arriscado mergulho do cinema na representação do teatro “desagradável”. Há prolongamentos dessa opção na nova série de adaptações de Nelson Rodrigues deflagrada em 1978 pelo sucesso de A dama do lotação, de Neville d’Almeida. É o apogeu do “filme brasileiro de mercado” (1978-83), da era Embrafilme. As sete adaptações desse período se localizaram entre a “cultura séria” e o mais direto apelo erótico, com resultado estético muito desigual. A dama do lotação (1978) e Os sete gatinhos (1980), de Neville d’Almeida; O beijo no asfalto (1980), de Bruno Barreto, Engraçadinha (1981), de Haroldo Marinho, e os filmes de Braz Chediak, Bonitinha, mas ordinária (1980); Álbum de família (1981) e Perdoa-me por me traíres (1983) compõem o ciclo naturalista já marcado pela TV, porém sexualmente mais liberado.

Vale, no entanto, destacar o exercício do estilo folhetim em Haroldo Marinho Barbosa e a polêmica proposta de Neville resumida na fórmula “chanchada com filosofia e insolência calculada”. O espírito da tragicomédia produziu sua melhor crítica ao machismo da comédia erótica por meio de Guerra conjugal (1974), de Joaquim Pedro de Andrade, adaptação de contos de Dalton Trevisan, outro escritor que satirizou a moral acanhada e o imaginário sexual da província, num universo afinado ao de Nelson. O filme de Joaquim Pedro mostra bem como o percurso das adaptações se inseriu num movimento maior do cinema brasileiro, que, a partir de 1969-70, saltou da tematização do mundo do trabalho e das questões sociais da vida pública para o “drama de família”: conflitos de gerações marcam o filme Copacabana me engana (Antônio Carlos Fontoura, 1969); a agressão doméstica e o crime passional impulsionam os episódios de Matou a família e foi ao cinema (Júlio Bressane, 1969); e a degeneração da casa-grande no estilo Álbum de família ganha lugar, sinalizando crises e mudanças, em A casa assassinada (Saraceni, 70), Os monstros do babaloo (Elyseu Visconti, 1970), A culpa (Domingos de Oliveira, 1971) e Pecado mortal (Miguel Faria Júnior, 1970).

No balanço entre Marx e Freud, prevaleceu o psicanalista: a abertura de A culpa cita um trecho de Totem e tabu, que serve de referência não apenas ao filme de Domingos de Oliveira, centrado no incesto, mas também ao universo rodriguiano. Antes de adaptar a obra maior de Lúcio Cardoso, Crônica da casa assassinada, Paulo César Saraceni já iniciara seu diálogo com esse escritor tão próximo de Nelson (não no tom nem na forma, mas nos motivos e valores), em 1962, com Porto das caixas, primeiro filme brasileiro moderno a focalizar a tragédia doméstica, a oposição mulher forte x marido medíocre e o ressentimento gerado por um ambiente provinciano. Saraceni retorna constantemente ao escritor mineiro e sua reiteração dos motivos paralelos à obra de Nelson chegam a O viajante (1999) – um destaque dos anos 90.

Tipos cafonas

Há um modo de compor ambientes burgueses e “fazer significar” a cenografia ou o lado simbólico de uma fisionomia que permite destacar outro recorte de relações no cinema brasileiro. Há uma forma irônica de exibir tipos cafonas que ostentam uma relação desajeitada entre aparência viril e bigode, dado central no filme Guerra conjugal, de Joaquim Pedro (notadamente, em Nelsinho e Osíris), que nos lembra, pela inversão de sinal, figuras impositivas como a do jornalista Amado Ribeiro (atuação extraordinária de Daniel Filho), em O beijo no asfalto. Cenografia e fisionomia sugerem relações de longo alcance e com mais conseqüências a explorar.

Voltemos a Ganga bruta (1933), de Humberto Mauro, à sequência do crime passional na casa do Rio de Janeiro. É notória a decoração da propriedade do “engenheiro”, cheia de quadros e esculturas, pinturas acadêmicas de mulheres, algumas envolvidas em lençóis, num jogo de ocultação e sedução. Tal galeria projeta uma vontade de civilização, um elo com a “alta cultura” que traz os códigos do “fin de siècle“, mas revela um gosto acanhado, antecipando a atmosfera do quarto, lugar do crime – o marido punindo a mulher infiel. A mulher lembra a composição dos quadros na parede, e o engenheiro traz o semblante e o bigode que sugerem a virilidade nos termos do melodrama.

O engenheiro terá outros destinos: expiará a culpa em Minas, flertará com uma provinciana e casará pela segunda vez, num lance longe do final feliz. Toda nudez, de Jabor, começa com a entrada de Herculano num cenário aparentado a esse de Ganga bruta: o casarão cheio de quadros e imagens de mulheres na parede, a alternar modelos de sedução com figuras maternas, olhares da tradição. Compõe-se a mesma ambição de nobreza pelo excesso, no ambiente familiar mortiço que será o cenário do suicídio de Geni. Há outras simetrias a aproximar os dois filmes, além das galerias a insinuar que o sexo aí tem um quê de crepuscular. Em ambos, há o segundo casamento, para recuperar o viúvo após o trauma, e há a constante melancolia masculina, que, no caso do engenheiro, levamos a sério e, no de Herculano, observamos com ironia, em razão de algo na fisionomia, que tem a ver com o bigode. Nos dois filmes, a sugestão de uma engrenagem que os enreda vale como aceno a uma pulsão de morte.

Ao contrário do que acontece em Ganga bruta, em Toda nudez é Geni o pólo da experiência, e, Herculano, o da tosca inocência. Tosca porque fora de lugar e de hora e porque não cai bem à figura do protagonista a situação final, quando ele é observado por aquele excesso de imagens femininas penduradas na parede. Imagens-espelho desse tipo são freqüentes nos filmes que, entre anos 1960 e 80, adaptaram Nelson Rodrigues, corroborando a estilização do ambiente burguês presente na tela desde os anos 1930, passando pela produção da Vera Cruz. Tais semelhanças expressam motivos ligados a uma cultura de classe que, no caso de Jabor, se apurou como expressão da decadência, tal como em Guerra conjugal, com outro estilo.

Nos anos 1970, era já outro o olhar dirigido aos foros de distinção de uma camada que se desmoralizou esteticamente (embora eficaz no golpe militar) para a geração do cinema novo e teve tal desmérito decantado com muito brilho pelo tropicalismo ou com muita dor pelo cinema marginal. É no espírito de um cinema alternativo, marginal ao seu modo, que a força do cenário se afirma de vez em A serpente (1980-82), de Alberto Magno, filme que destoa de todos os outros ao optar pelo espaço teatral e pelas cenas bloqueadas e ao fazer uso constante de objetos, dispositivos e texturas com efeito simbólico, numa apropriação expressionista do imaginário bíblico. Aqui, a presença fantasmática da galeria de imagens (quadros, fotos, reproduções) tem outra função: confina a figura paterna, um “tableau vivant” [quadro vivo] pendurado na parede. A serpente é dissidência numa década que iniciou com a busca de um naturalismo – Boca de ouro (Avancini, 1990) – e encerrou com a elaboração maneirista, às vezes gótica, da ênfase cenográfica, seja em Traição (Arthur Fontes, Cláudio Torres e José Henrique Fonseca, 1998), seja em Gêmeas (Andrucha Waddington, 1999).

Reflexão sobre o país

Novas adaptações estão em curso, e o momento enseja uma reflexão sobre o país atenta às experiências fracassadas, impasses, marca de uma conjuntura rarefeita de projetos, tensionada pelas decepções de toda uma geração. Traição e Gêmeas selaram um novo paralelo entre os motivos rodriguianos e certa inclinação geral do cinema atual, pontuado pelo desfile amargo de cobradores malsucedidos.

Vale, nesse sentido, completar o percurso com Amarelo manga (2002), de Cláudio Assis, que traça um painel de experiências no “ventre” do Recife (cidade natal de Nelson), tingidas pela metáfora viscosa das secreções e texturas amarelas (lembrando as incontinências de O casamento), face grotesca de uma demanda que insiste nos corpos e se faz exprimir a cada minuto, fazendo girar uma máquina de inversões rodriguianas: o moralista é devasso, o criminoso é santo, a despudorada vive em abstinência, angustiada. No centro, o percurso da evangélica, que enseja a provocação direta do próprio Assis no meio do filme: “O pudor é a forma mais inteligente de perversão”.

*Ismail Xavier é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de O Cinema Brasileiro Moderno (Paz e Terra).

Publicado originalmente no Jornal Folha de S. Paulo, em 05 de setembro de 2004.

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