Epopeia de Gilgámesh

Imagem: Kazimir Malevich
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Por JACYNTHO LINS BRANDÃO

Introdução à tradução da obra do século XXI a.C.

1.

Gilgámesh, o rei sumério de Úruk, cidade-Estado localizada no sul da Mesopotâmia (hoje no Iraque), é o protagonista de narrativas heroicas que remontam ao século XXI a.C. É provável que ele tenha de fato vivido por volta do XXVIII antes de nossa era, já que seu nome aparece, em listas dinásticas no século XXII (na época conhecida como de Ur III ou Neossuméria), como o quinto rei da era pós-diluviana. Essas listas são produto de efabulações sobre tempos remotos, tendo um valor histórico apenas relativo, mas atestam, de qualquer modo, a antiguidade das tradições relativas a Gilgámesh.

Segundo elas, quem primeiro reinou depois do dilúvio foi Mesh-ki-ang-gasher, filho do deus Utu (o Sol), seu governo tendo-se estendido por 324 anos; em seguida veio seu filho Enmerkar, construtor de Unug (isto é, Úruk), que reinou durante 420 anos; depois dele foi a vez de Lugalbanda, o pastor, rei durante 1.200 anos; então assumiu o trono Dumuzid, o pescador, nele permanecendo por cem anos; chega assim a vez de Gilgámesh, cujo pai, segundo as listas, seria um espectro, exercendo ele o poder por 126 anos.

Toda essa tradição foi conservada em textos na escrita cuneiforme, inventada na Suméria, no século XXXIII a.C., de que se conservaram milhares de tabuinhas de argila, com obras que vão de poemas a tratados de adivinhação, medicina e culinária, escritos em mais de uma dezena de línguas antigas faladas em diferentes pontos do Oriente Médio, das quais as principais são o sumério e o acádio.

Nessa documentação, o nome de Bilgames / Gilgámesh aparece pela primeira vez em textos do século XXVI a.C., sendo ele então considerado um deus, ao qual se faziam oferendas. Na mesma época, ele é tido também por rei e juiz no mundo subterrâneo, a Érsetu, morada dos mortos, função que continua a ser-lhe atribuída nos dois milênios seguintes. Do início do período paleobabilônico (séc. XXI a.C.), conhecemos uma inscrição que afirma que Gilgámesh reconstruiu um santuário do deus Énlil, em Níppur, enquanto uma inscrição, em sumério, feita pelo rei Anam (1821-1817 a.C.), faz referência à construção, por ele, das muralhas de Úruk.

A glorificação e a heroicização de Gilgámesh em textos literários tem início por volta do século XXI a.C., quando Shúlgi, que reinou em Ur de 2094 a 2047, lhe dedicou dois breves hinos, versando, o primeiro, sobre sua vitória sobre Enmebaragesi, rei de Kish, e o outro, sobre a famosa expedição à Floresta de Cedros. Mais ou menos da mesma época são os cinco poemas sumérios convencionalmente intitulados Bilgames e a terra do vivo (ou Bilgames e Huwawa), Bilgames e o touro do céu, Bilgames e Agga, A morte de Bilgames e Bilgames, Enkídu e o mundo subterrâneo.

Cada um deles contém um relato completo sem conexão direta com os outros, configurando o que poderia ser entendido como o primeiro estágio das tradições literárias sobre Gilgámesh. Em especial, os temas de Bilgames e a terra do vivo, a expedição contra Huwawa (em acádio, Humbaba), e Bilgames e o touro do céu, a ofensa a Inana (em acádio Ishtar) e a vingança da deusa, foram trabalhados como episódios dos poemas acádios que apresentam narrativas mais longas e concatenadas.

A cronologia das narrativas em acádio apresenta três fases: as versões babilônicas antigas (de entre 1800 e 1600 a.C.), as versões babilônicas médias (entre 1600 e 1000) e a versão babilônica clássica (de entre 1300 e 1200), esta última, nas épocas posteriores, tendo-se tornado a versão standard ou vulgata.

Da versão babilônica antiga dispomos de escassos, mas significativos testemunhos que permitem conceber como deveria ser essa primeira experiência de narrativa concatenada da saga de Gilgámesh, com vários episódios. Os documentos diferem uns dos outros em termos de dimensão e do número de colunas, o que indica que devem proceder de diferentes edições do poema, os principais sendo a tabuinha hoje na Universidade de Pensilvânia, cujo colofão a descreve como a segunda de uma série intitulada Proeminente entre os reis (šūturelišarrī), e a tabuinha da Universidade de Yale.

A versão babilônica média do poema também parece fornecer uma sequência narrativa com vários episódios, sendo testemunhada não só em acádio como também por traduções para o hitita e o hurrita. Um importante acréscimo ao que se conhecia dela aconteceu em 2007, quando da publicação dos manuscritos achados em Ugarit, na Síria, o principal ganho tendo sido constatar que a parte do prólogo considerada anteriormente própria da versão clássica já se lia na versão babilônica média, que principia, como aquela, com as palavras “Ele que o abismo viu”(šanaqbaīmuru).

Finalmente, a versão mais recente, atribuída ao sábio exorcista Sin-léqi-unnínni, é composta por uma série de doze tabuinhas, constituindo o ponto de chegada da matéria literária de Gilgámesh: as onze primeiras trazem a saga do rei, a décima-segunda, que não integra o fio narrativo, contendo a tradução para o acádio de parte do poema sumério Bilgamesh, Enkídu e o mundo dos mortos. O que dela conhecemos vem basicamente dos manuscritos encontrados na biblioteca do rei assírio Assurbanípal (669-627 a.C.), em Nínive, ou seja, de documentos datáveis antes do sétimo século, que conservaram o poema escrito cerca de meio milênio antes. Essa vulgata é que continuou a ser copiada durante todo o primeiro milênio, o último documento de que dispomos sendo do segundo século a.C.

Tudo isso mostra como a saga de Gilgámesh foi contada e recontada por nada menos que dois mil anos, num espaço que se estendia, de norte a sul, da Anatólia (hoje a Turquia) à Suméria (hoje o Iraque), e, de leste a oeste, da Pérsia (hoje o Irã) à costa do Mar Mediterrâneo, na Síria, Palestina e Egito.

Nos termos de Damrosch, a saga de Gilgámesh é “indiscutivelmente a primeira verdadeira obra da literatura mundial. Gilgámesh é o texto literário mais antigo, dentre os que conhecemos, a ter uma larga circulação, bem longe de sua origem babilônica, e ele é também o mais antigo texto do qual recuperamos traduções em várias línguas estrangeiras: partes de traduções do original acádio foram encontradas em hitita e hurrita – e esse “original” é ele mesmo uma extensa adaptação de um ciclo sumério de canções mais antigo. Gilgámesh parece, de fato, ter sido a obra literária mais popular que se escreveu no antigo Oriente Próximo; textos dele foram encontrados em não menos que quinze locais, não só por toda a Mesopotâmia, mas tão longe quanto em Hattusa, a capital hitita onde hoje é a Turquia, e Megiddo, a cerca de cinquenta milhas ao norte de Jerusalém.

2.

O poema que aqui se apresenta em tradução é a versão clássica da saga de Gilgámesh, escrita em acádio, entre 1300 e 1200 a.C., pelo sábio Sin-léqi-unnínni, o seu título antigo, como é comum em obras literárias do Oriente Médio, sendo suas primeiras palavras: Ele que o abismo viu. Sua leitura se tornou possível desde quando, na segunda metade do século XIX, a escrita cuneiforme foi decifrada e se tornou conhecida a língua acádia, que é da mesma família do hebraico, do aramaico e do árabe.

Foi em 1872 que o assiriólogo inglês George Smith apresentou, pela primeira vez, numa conferência na Sociedade de Arqueologia Bíblica de Londres, um trecho dessa obra, a saber, a narrativa do dilúvio, que se encontra na tabuinha 11. Desde então, outras descobertas só fizeram crescer o nosso conhecimento do texto acádio de que uma nova edição crítica, preparada por Andrew George, foi publicada em 2003 pela editora da Universidade de Oxford.

É nessa edição crítica mais recente que se baseia a tradução aqui apresentada, com os acréscimos decorrentes de duas descobertas posteriores: os manuscritos de Ugarit, publicados em 2007, e o manuscrito de Suleimanyiah, identificado em 2011 pelo assiriólogo iraquiano Farouk Al-Rawi e publicado por ele próprio e por Andrew George em 2014. Esse último achado, em especial, é significativo, pois permitiu que se completasse com bastante detalhe o início e o final da tabuinha 5, em que se narra a luta de Gilgámesh e Enkídu contra Humbaba, o guardião da Floresta de Cedros do Líbano. Basta que se observem essas datas para se ter a perspectiva de que nosso conhecimento sobre Gilgámesh segue num ritmo crescente, sendo de esperar que novos descobrimentos permitam completar as lacunas ainda existentes nos poemas a ele dedicados.

Na presente edição das onze tabuinhas que contam a saga de Gilgámesh, as lacunas foram, na medida do possível, completadas com os testemunhos das versões antigas e médias do poema acádio. Os trechos acrescentados à versão clássica se indicam com siglas antepostas à numeração dos versos, à direita da página, o que o leitor facilmente identificará.

Outros acréscimos são apresentados entre colchetes, pois se trata de conjeturas visando a completar o sentido sugerido por alguns versos fragmentados. Algumas poucas notas esclarecem, quando necessário, quem são as personagens que integram a trama.

*Jacyntho Lins Brandão é Professor Emérito da Faculdade de Letras da UFMG. Autor, entre outros livros, de Antiga musa: arqueologia da ficção (Relicário).

Referência


Epopeia de Gilgámesh. Tradução e notas: Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte, Autêntica, 2021, 160 págs.

Bibliografia recomendada


D’AGOSTINO, Franco. Gilgameš o la conquista de La imortalidad. Madrid: Trotta, 2007.

DAMROSCH, David. Scriptworlds: Writing Systems and the Formation of World Literature. Modern Language Quarterly, v. 68, n. 2, p. 195-219, 2007.

EPOPEYA de Gilgameš, Rey de Uruk. Traducción y edición de Joaquín Sanmartín. Madrid: Trotta; Barcelona: Publicacions i Edicions de La Universitat de Barcelona, 2010.

SIN-LÉQI-UNNÍNNI. Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgámesh. Tradução do acádio, introdução e comentários de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

THE BABYLONIAN Gilgamesh Epic. Introduction, critical edition and cuneiform texts by Andrew R. George. Oxford: Clarendon, 2003.

THE EPIC of Gilgamesh: The Babylonian Epic Poem and Other Texts in Akkadianand Sumerian. Translated with na introduction by Andrew R. George. Londres: Penguin, 2003.

 

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