Por GILBERTO LOPES*
A morte do general Colin Powell e a guerra ao terror submetida a julgamento
“O regime de Saddam Hussein não se deterá por nada a menos que alguém o detenha”, disse o secretário de estado, general Colin Powell em seu discurso perante o Conselho de Segurança da ONU em 5 de fevereiro de 2003. O discurso de Powell foi apenas mais um instrumento da operação já em curso. Faltava apenas um mês e meio para a invasão do Iraque, desencadeada em 20 de março.
A morte do general na semana passada trouxe de volta ao debate esse discurso, que o próprio Powell descreveu como “uma mancha” em sua carreira. “Penso que a credibilidade de Washington nunca mais se recuperou completamente após os argumentos de que o Iraque possuía armas de destruição em massa para declarar guerra a esse país”, disse ao The Guardian Richard Gowan, diretor do Grupo de Crise Internacional da ONU.
Para Julian Borge, editor de Assuntos Internacionais do jornal inglês The Guardian, o discurso foi “um momento decisivo para enfraquecer a credibilidade dos Estados Unidos”. Visto à distância, conhecidos os fatos, reconhecida a falsidade da acusação com a qual se justificou a guerra e se alimentou a criação de grupos terroristas, destruído o Iraque, e depois de milhares de mortes, as consequências para o mundo dificilmente poderiam ser mais dramáticas.
Conselho de Segurança
Porém, mais do que a credibilidade de Washington, o discurso foi um tiro abaixo da linha de flutuação do Conselho de Segurança, o fórum político mais importante do mundo, o único que pode declarar uma guerra legítima em nome da comunidade internacional. A invasão do Iraque, orquestrada pela administração Bush (filho), teve dois grandes aliados: a Inglaterra de Tony Blair e a Espanha de José María Aznar.
Depois de ouvir o discurso de Powell, Jack Straw, secretário de estado do Reino Unido, disse que o Conselho de Segurança tinha ouvido “a explicação mais poderosa e autorizada” sobre as práticas do governo iraquiano; que o “grande perigo” representado pelo regime iraquiano tinha sido demonstrado. “Unida e determinada, a comunidade internacional deu ao Iraque a última oportunidade de se livrar de armas de destruição em massa, dos gases que podem envenenar milhares de pessoas, das bactérias e vírus que podem incapacitar e matar dezenas de milhares, dos meios para fabricar armas nucleares que podem matar milhões”.
“A apresentação de Powell removeu todas as ilusões. Saddam Hussein não deve ter nenhuma dúvida sobre a grave situação que agora enfrenta”, acrescentou ele. Era o anúncio de guerra. Sua colega, a espanhola Ana Palacio, afirmou: “os dados apresentados hoje levam à conclusão de que o Iraque está enganando a comunidade internacional e violando a resolução 1441 do Conselho de Segurança, adotada em 8 de novembro de 2002, que exigia do país o cumprimento de acordos anteriores do Conselho sobre desarmamento e aumentava a inspeção desses acordos, a fim de assegurar seu cumprimento”.
Para Palacio, o discurso de Powell também tinha demonstrado as ligações de Saddam Hussein com o terrorismo. Dois meses e meio após a invasão, em 4 de junho de 2003, a própria Palacio dizia que o governo ainda pensava que no Iraque havia armas de destruição em massa; que não se tratava de “um coelho tirado da cartola pelos participantes da Cúpula dos Açores” (realizada por Bush, Blair, Aznar e pelo anfitrião, o presidente português José Manuel Durão Barroso, mais tarde promovido a presidente da Comissão Europeia), “mas de uma descoberta dos inspetores”.
A cúpula ocorreu em 16 de março e as fotografias de quatro chefes de governo sorridentes espalharam-se por todo o mundo. Blair pediu desculpas anos mais tarde por aquilo que alegou serem relatórios de inteligência equivocados que ele tinha recebido. “O programa que pensávamos existir não existia”, acrescentou ele. Mas ele pensava de forma diferente sobre a destituição de Hussein. “É melhor que ele não esteja do que esteja”, disse ele, algo que a resolução do Conselho de Segurança não propunha.
Aznar nunca retratou-se. Em fevereiro de 2003, ele tinha dito perante as câmeras da Antena3, olhando de frente para os espanhóis: “O regime iraquiano tem armas de destruição em massa. Vocês podem ter certeza, e todas as pessoas que nos veem podem ter certeza de que estou dizendo a verdade. O regime iraquiano tem armas de destruição em massa”. Em abril de 2004, agora fora do governo, disse sentir-se envergonhado pela decisão de seu sucessor, José Luis Rodríguez Zapatero, de retirar as tropas espanholas do Iraque.
O mundo enganado
Não foram apenas Straw e Palacios que reagiram ao discurso de Powell no Conselho de Segurança. Tang Jiaxuan, ministro das relações exteriores da China, destacou a importância do trabalho conjunto dos membros do Conselho de Segurança sobre o assunto. Manifestou satisfação pelos Estados Unidos terem apresentado novas provas sobre o caso, que deveriam ser entregues à Comissão de Monitoração, Verificação e Inspeção da ONU (UNMOVIC) e à Agência de Energia Atômica (AIEA), encarregadas de monitorar o cumprimento das resoluções do Conselho pelo Iraque. “As inspeções estão ocorrendo há mais de dois meses e todos devem respeitar as opiniões das duas agências e apoiar a continuação de seu trabalho”, disse ele.
Igor Ivanov, o ministro russo, fez uma observação semelhante, indicando que os inspetores deveriam responder às dúvidas dos Estados Unidos, mas que o caminho era seguir realizando as inspeções para assegurar o cumprimento da Resolução 1441 por parte do governo iraquiano. Dominique de Villepin, o ministro francês, disse que o relatório de Powell continha informação, indicações e perguntas que deveriam ser investigadas; que os inspetores deveriam determinar os fatos, tal como estabelecido na resolução. Villepin acrescentou que, entre a opção militar e um regime de inspeções, mesmo sem a cooperação adequada do regime iraquiano, a comunidade internacional deveria fortalecer de modo decisivo os meios de inspeção.
Nada disso foi feito. O representante iraquiano, Mohammed A. Aldouri, tinha dito que a apresentação de Powell pouco tinha a ver com a realidade. O presidente iraquiano tinha reiterado na véspera que seu país não possuía armas de destruição em massa, e que a visita de Hans Blix, chefe da UNMOVIC, e de Mohamed El Baradei, diretor geral da AIEA, prevista para três dias depois, demonstraria que dizia a verdade, como os acontecimentos posteriores provaram. “O programa de armas de destruição em massa não são como uma pílula de aspirina, que se pode esconder facilmente”, disse Aldouri. “Estes programas requerem enormes instalações; não podem ser escondidos dos inspetores que viajam por todo o país”.
Aldouri lembrou que, entre 27 de novembro e 4 de fevereiro de 2003, as equipes de inspeção tinham realizado 575 inspeções em 321 locais no Iraque, e que as instalações mencionadas pelo presidente Bush e por Tony Blair como locais suspeitos de fabricar ou armazenar armas de destruição em massa estavam na lista de locais inspecionados. As inspeções, acrescentou, “mostraram que as afirmações contidas nesses relatórios não eram corretas”. Mas a guerra já estava a caminho. A apresentação no Conselho de Segurança foi apenas um elemento da invasão em curso.
Um relatório fantasioso
Como essa história foi construída? O relatório de Powell era longo e detalhado. “Cada afirmação que faço aqui hoje está apoiada em fontes sólidas”, disse ele. Mais tarde saberíamos que não contava sequer com o respaldo da comunidade de inteligência dos mesmos Estados Unidos, mas que era um documento preparado pelo gabinete do vice-presidente Dick Cheney para justificar a invasão já em curso. “Por trás dos fatos e do padrão de seu comportamento está o desprezo de Saddam Hussein pelo Conselho, seu desprezo pela verdade e, pior ainda, seu enorme desprezo pela vida humana”, disse Powell.
Acusando Hussein de mentir sobre o uso de armas químicas, ele alegou que levou anos para finalmente admitir que tinha produzido quatro toneladas do mortal agente nervoso VX. “Uma única gota de VX sobre a pele pode matar uma pessoa em minutos”, acrescentou ele. Powel observou que uma colher de chá de antraz seco num envelope fechou o Senado dos Estados Unidos no outono de 2001, forçou centenas de pessoas a receber tratamento médico de emergência e matou dois trabalhadores dos correios. “O Iraque declarou ter 8.500 litros de antraz, mas a UNSCOM estimou que Saddam Hussein poderia ter produzido 25.000 litros”, disse ele.
“O nexo do Iraque com o terror é antigo, mas o nexo entre veneno e terror é novo. A combinação é letal”, continuou Powell. Em seguida, mostrou fotografias do que afirmou serem caminhões prontos para transportar componentes de mísseis balísticos, dias antes das inspeções terem sido retomadas. Estendeu-se sobre os vínculos de Hussein com o terrorismo, afirmando que treinava militantes da Frente de Libertação da Palestina no manuseio de armas e explosivos e dava proteção a um grupo terrorista mortal liderado por Abu Musab Al-Zarqawi, ligado a Osama Bin Laden. Mencionado várias vezes por Powell, Al-Zarqawi, até então uma figura obscura, tornou-se uma figura reconhecida, com um papel de liderança que não tinha desempenhado anteriormente. Afirmou que uma das coisas mais preocupantes reveladas pelos serviços secretos norte-americanos era que as instalações do programa de armas biológicas do Iraque eram móveis.
Falou também de armas nucleares, afirmando que havia indícios de que Hussein nunca tinha abandonado o programa para produzi-las. Pelo contrário, assegurou, havia mais de uma década de provas de que ele continuava empenhado em adquiri-las. Em conclusão, Powell reiterou que o Irã tinha “irrefutável” e “inegavelmente” violado o acordo do Conselho de Segurança, pondo o país sob a ameaça de “sérias consequências”. E advertiu que o Conselho de Segurança corria o risco de transformar-se num órgão irrelevante caso permitisse que o Iraque o desafiasse sem responder de modo eficaz e imediato. O cenário para a guerra estava pronto.
Dezoito anos depois, o que ficou em evidência foi a armação para justificar a invasão do Iraque, a derrubada de seu governo e a condenação à morte de alguns de seus principais líderes, incluindo o presidente Saddam Hussein. A invasão provocou a morte de milhares de pessoas, o deslocamento massivo da população e expôs a irrelevância do Conselho ao declarar guerra sem sua autorização.
Sofrimento insuportável
Quatro anos depois, em abril de 2007, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) publicou um relatório sobre o desenvolvimento do conflito no país. Apesar de uma bomba que tinham colocado em suas instalações em Bagdá em outubro de 2003, que deixou 34 mortos e quase 250 feridos, o CICV continuou trabalhando no país. Num relatório intitulado “Civis Desprotegidos – A Deterioração Contínua da Crise no Iraque”, recolhiam-se declarações de iraquianos sobre as condições de vida no país. “São insuportáveis e inaceitáveis os sofrimentos atuais de que padecem homens, mulheres e crianças. Suas vidas e sua dignidade correm perigo constante”, disse o então diretor de operações do CICV, Pierre Kraehenbuel. “Se há algo que alguém possa fazer, que realmente nos ajudaria, seria recolher os corpos que são deixados na rua todas as manhãs, em frente de nossos lares e que ninguém se atreva a tocar ou remover por razões de segurança”, disse uma mulher citada no relatório. “Uma vez me chamaram ao local de uma explosão”, diz um trabalhador humanitário identificado apenas com o nome de Saad no relatório. “Ali vi um menino de quatro anos sentado ao lado do corpo de sua mãe, que tinha sido decapitada pela explosão. Ele falava com ela e perguntava-lhe o que tinha acontecido. Sua mãe o tinha levado para fazer compras”.
Tamara al-Rifai, porta-voz do CICV no Cairo, disse à BBC Mundo que no Iraque “tudo está ruim para a população”, e disse que a situação era “catastrófica, de violência, bombas, sequestros, assassinatos e, sobretudo, operações militares”. Em outubro de 2006, a revista médica britânica The Lancet estimou que 655.000 iraquianos tinham morrido em consequência da invasão, 2,5% da população do Iraque. Bush considerou a informação “não credível”. Em dezembro de 2006, quando recebeu a notícia da execução de Saddam Hussein, disse que se tratava de um marco para o Iraque se tornar uma democracia.
The Belmarsh Tribunal: a Guerra ao terror submetida a julgamento
– Libertem Julian Assange
– Duas décadas de ocupação não trouxeram nada mais do que ruínas ao Afeganistão
Em discurso na Internacional Progressista, em Londres, em 22 de outubro de 2021, James Corbyn, deputado britânico, líder trabalhista, lembrou dos protestos no Hyde Park, os maiores da história britânica, contra a guerra no Iraque, que denunciaram como o início de novas guerras e do fluxo migratório para a Europa. Destacou o papel dos meios de comunicação nestas circunstâncias e o de Julian Assange na denúncia destas atrocidades da guerra.
“O tratamento de Julian Assange é uma mensagem a todos os jornalistas”, disse John Macdonnell, também deputado britânico. Não se trata de um caso individual, é parte de um cenário global. Um orador após outro denunciaram as arbitrariedades aplicadas contra Julian Assange nos tribunais e prisões britânicos, tornando praticamente impossível qualquer defesa.
Os tribunais britânicos retomarão a análise do pedido de extradição de Julian Assange para os Estados Unidos em 27 e 28 de outubro. A sessão do tribunal poderá ser vista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=E_xxGWAxlGc.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves.