Resumo de Robert Walser

Paul Cézanne
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PRISCILA FIGUEIREDO*

Resumo paradidático de um conto de Robert Walser

(Parte I)

Não percam tempo
lendo estas linhas degradantes,
vão direto ao conto[i]
quanto a mim, a impressão
que me fez azucrina
como as indecisões na vida.
Um golpe duro
ele desferiu nesta leitora,
atordoada tanto quanto ele ficou
com a morte da senhora Wilke.

Esta lhe alugou um quarto —
um dos muitos que ele e seus
personagens viviam a alugar.
Não era uma água-furtada, era a ruína
de uma nobreza antiga,
o quarto e o edifício todo.
O chão e a escada exalavam odor
e som refinado, mas fora de época.
Então ele sentiu que podia se instalar
bem nessa casa. Estava feliz: era um canto
adequado, e nele se revezavam escuridões
claras e escuridões mais sombrias.

A cortina era gasta, mas a qualidade
do tecido e do drapeado mostrava
a elegância insolente de outrora
(a fidalguia que não virou destroço
custa caro, é inviável —
nenhum caminho ela projetou
para pedestres como Walser,
e se oferecesse um, bem, ele veria
o fundo feio de seu fausto,
e correria logo pra estrada).

Para os que amam a beleza
de bolso vazio, o requinte ruinoso é
um contraste que faz sonhar —
nele sentimos certa força moral;
compaixão e respeito é bem o que inspira.

Então ele ficou com o quarto.
Foi quando a senhora Wilke lhe perguntou
o que fazia para viver. “Sou poeta!”, respondeu,
e ela saiu em silêncio — era o que eu
faria também.
Por que a exclamação? Por que o entusiasmo?
Que vexame essa resposta enfática.

Bem, era só o que ele fazia de fato:
escrevia, escrevia, escrevia —
que mais poderia dizer?
Que tinha sido também criado,
(aliás de um conde),
bancário e escriturário,
que por certo disse mil vezes,
mil vezes em dois meses,
(porque mais que isso
não parava empregado)
Prefiro não!, Prefiro não,
martelando qual um passarinho?

Rigorosamente ele era poeta –
mas como não teve vergonha,
não recorreu às meias-palavras?
Não disse: “Mexo com isso, mexo com aquilo”?
Nos anos 20 do século 20
apresentar-se assim já não passava ileso.
Só concluo que devia ser
pura insolência, quem sabe gozação
e um pouco de desprezo.

Tonio Kröger, dando entrada no hotel,
tascou um “escritor?” no campo profissão
ele não desconhecia que a dignidade
do escritor se extinguia.
A interrogação perguntava:
isso vale ainda? isso vocês reconhecem
como um ganha-pão decente?
Posso dizê-lo em bom som?
Pois eu, famoso escritor, já não sei mais,
não boto a mão no fogo por mim…
Entre mim e um delinquente
não vai um estirão, não.

Virando as costas,
talvez pensasse a Senhora Wilke:
“Ah estou frita, albergando um poeta, imagine —
decerto vive, como eu [logo o saberíamos],
da mão para a boca; isso quando há mão
para levar à boca”.
Mas sua reação não foi para ele
um banho de água fria,
pois logo emendou consigo:
“Neste quarto bem poderia
morar um barão”.

Tão alto, tão baixo!
Barão, poeta e bolso vazio —
ah e melancolia, que o embotava
e derrubava na cama por dias.
Ele nos conta dela, conciso,
pela palavra mais simples e antiga.
Seu pensamento descia
o monte do sublime,
ficava estreito, repetitivo:
o mundo é mau, o mundo é injusto.
De minha parte eu pensava: você tem
um dinheiro guardado, Walser?
Alguma retaguarda?

Em todo caso as florestas que atravessava
o traziam de volta pra vida
sussurrando com desvelo de família:
Ei, Robert, deixe essa acídia,
então por nós e outras maravilhas
não vale a pena estar vivo?
Venha nos ver mais vezes,
A natureza te quer bem.

Uma hora a senhora Wilke,
talvez sem bater na porta,
com a maior franqueza o exorta
a sair logo da cama:
“Não gosto nada dessas coisas,
não quero em minha casa
um homem que só fica deitado!”.
Um pensamento prático tem sucesso às vezes
com aqueles a quem tais pensamentos faltam…

[Daí eu associei, não pude evitar:
nossa, foi quase o que disseram, mas
sem eficácia, a Samsa, ao Gregor,
que nunca mais saiu da cama!]

Walser não fez mau juízo da velha
— de uma duas: ou ele quis passar por bonzinho
nos deixando o trabalho sujo de falar mal dela,
ou ele mal se importou com isso.
Ou pode ser que um fato ainda a narrar
tenha vindo a mudar o que ele
já tomava por fixo.

Então saiu mesmo da cama
e ferrou no trabalho, como se diz —
não sei se então se dizia.
Do resto da narrativa vou dar notícia
na segunda parte. Esse resto merece
a maior atenção de que formos capazes.

*Priscila Figueiredo é professora de literatura brasileira na USP. Autora, entre outros livros, de Mateus (poemas) (Bem te vi).

 

Nota


[i] “Senhora Wilke”, traduzido com competência e sensibilidade por Sergio Tellarolli para a coletânea Absolutamente nada (editora 34, 2014).

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES