Por FÁBIO AKCELRUD DURÃO*
23 fragmentos sobre a literatura e a vida contemporânea
às moscas
Introdução
Esboço é um sinônimo de rascunho, um desenho de linhas gerais para ser completado depois. O esboço difere do rascunho quando incorpora a incompletude. Se ela pode ser vista com preguiça também pode ser encarada como convite.
Tentativa de traduzir experiências cotidianas em conceito.
Produzir um tipo de escrita que acolhesse a conversa, aqui pensada como uma forma privilegiada de intersubjetividade, um estar-junto.
1.
Um amigo me conta que enviou um ensaio para um crítico famoso e que está angustiadamente esperando alguma resposta, que talvez nunca chegue. Meu primeiro ímpeto é tentar aliviar seu sofrimento, dizendo que são tantos os componentes envolvidos em qualquer julgamento particular, que o que de fato importa é o percurso, o trabalho do dia-a-dia, o lento acúmulo do conhecimento, ao invés de alguma martelada judicial vinda de cima, sabe-se lá com que motivação. Mas pensando melhor há uma razão estranhamente objetiva na agonia do aspirante a crítico: o aval do mestre possui algo de performativo; ele funciona como um veículo de autoconvencimento que pode ser internalizado: acreditar-se aquilo que se vê sendo. O que somos é em grande medida resultante da forma como nos vemos sendo vistos – visões, é claro, que de uma forma ou de outras respondem ao nosso desejo.
(Foi para evitar o que há de feroz no olhar do outro que surgiram as instituições e suas leis.)
2.
A vida como círculo fechado. Me lembro de uma colega que tinha um dom especial, por assim dizer visceral e cutâneo, para se vitimizar. Não era algo fingido, nem planejado, nem mesmo pensado; a coisa acontecia com a espontaneidade da respiração: “Bom dia! Como vai? Tudo bem?” – “Apesar de tudo, não é mesmo, Fabio?” A coerência da perseguição era tão plena, que o mero existir, em suas mais diminutas manifestações, assumia uma dimensão de heroísmo. A perfeição dessa autopoiesis, aliada ao óbvio narcisismo autocongratulatório, gerava uma irritação geral, que cobrava uma punição: um efeito que gerava sua causa.
3.
“Agora, é preciso ter em mente que o conceito de literatura, da forma como o concebemos, tem somente duzentos e poucos anos.” Esse apelo à história, sem dúvida correto, geralmente tem o objetivo de dessencializar a literatura, mostrando que ela não paira acima do tempo, mas é resultado de um conjunto de transformações recentes. Essa subordinação à nossa época moderna é então vista como algo negativo, como um golpe no coração da literatura, que, com menos ser, passaria a significar muito pouco. Porém deveria ser o oposto: a literatura deveria sair como muito mais robusta e relevante por ser um fenômeno que, com um imenso passado, ainda assim fizemos; por trazer em si – ao ser projetada nos séculos já idos – a nossa cara.
Em outras palavras: o conceito de literatura como construção histórica, não arrefece sua verdade, como se o construir fosse um ato de menos; pelo contrário, a literatura, que não apaga a estranheza do passado, acaba funcionando como uma mediação entre aquilo que este tem de outro, de ininteligível, e o que nos pertence.
4.
Os estudos literários sofrem de uma intensa dispersão. É surpreendente que, por um lado, a morte do autor tenha se tornado um forte lugar comum na teoria, algo que não se discute, enquanto, por outro, não apenas toda espécie de investimento autoral haja ressurgido na autobiografia e no testemunho, mas também a vida do teórico tenha sido celebrada. Roland Barthes por Roland Barthes, O Futuro Dura Muito Tempo, ou as notas biográficas da Norton Anthology of Theory and Criticism são apenas os primeiros exemplos que vêm à mente.
5.
Essa personagem sofria de uma leve alucinação: ao ouvir música pensava que estava numa fábrica. O ouvido não conseguia esquecer a batida, nem o corpo abandonar-se a ela. Eram pancadas sobre uma esteira em constante movimento. Sem dúvida havia muitas variações na correia: por um lado, a velocidade podia oscilar do mais lento, porém nunca imperceptível, ao mais frenético; mas as mudanças maiores estavam nas modalidades das músicas: jocosas, hilariantes, eufóricas acalentadoras, desesperadas, deprimidas, destrutivas – quase todo tipo de sentimento era invocado, mas sempre acompanhado de batida. Às vezes imaginava os batedores da esteira com rostos angelicais ou putrefatos, dependendo do afeto que as marteladas acompanhavam; à certa altura passou a visualizá-los como bonecos de sentimento, ou então operários de macacão com máscaras emotivas. Um dia tentei consolá-la, dizendo que a batida tinha uma base fisiológica, o coração, e que estava presente em todas as civilizações, que na realidade era uma vitória sobre a natureza, no fundo uma domesticação do trovão, que tanto já aterrorizou a humanidade. Havia bastante má-fé nisso. O que a personagem não conseguia conceber era ideia de pulso, uma regularidade flexível e não-percussiva, presente no próprio caráter das notas em combinação. O atrasar ou adiantar da ênfase lhe confere expressão e faz lembrar o humano.
6.
Não é a menor das contradições na existência dos intelectuais de literatura que aquilo que estudam, o material do seu trabalho, frequentemente seja mais interessante do que a vida que levam. Essa cisão é negociada de diversas maneiras. Muita gente consegue simplesmente não olhar para ela: direcionam o desejo para outra coisa, da igreja à bebida, charutos ou o futebol, quem sabe até o mercado livreiro. Outras pessoas, mais corajosas, recusam-se a fugir e passam a culpar os objetos pela mediocridade do seu cotidiano – no caso da literatura as diatribes contra o “cânone” cumprem esse papel. Isso explica, ao menos parcialmente, o ódio que vários acadêmicos têm contra cultura. No entanto, a medida mais adequada, aquela que funciona como uma formação de compromisso entre emprego e prazer, é a profissionalização. O desenvolvimento de um vocabulário próprio, de padrões argumentativos (introdução-exposição-conclusão), de traços estilísticos específicos (indeterminação do sujeito, voz passiva) etc. não é apenas uma codificação que promove o progresso da ciência; tudo isso funciona também como um escudo contra a confrontação com a vacuidade da vida privatizada.
7.
Como na crítica literária misturam-se sujeito e objeto, não é raro que os críticos tenham um sentimento de posse em relação aos autores que por tantos anos estudaram. Ficam assim com ciúme daqueles que se veem no direto de falar deles, amiúde levianamente. O engraçado é o curto-circuito gerado pelo comentário do escritor em relação a si mesmo, que o crítico ao mesmo tempo valorizará como objeto, mas desprezará como concorrência. – Eis como a indistinção entre estilo e coisa, sujeito e objeto, frequentemente ostentada nas Letras como definidora do campo e existencialmente positiva, não é, por si só, garantia de nada.
8.
O Autor diz: “você não entendeu nada do que quis realizar! Planejei esse texto minuciosamente, de um jeito completamente diferente do que você pensa.” Já o Crítico: “você não tem ideia exata do que faz; para falar a verdade, nem consegue expressar direito o que elaborou. Respeite a divisão de trabalho, crie à vontade, mas quem avalia sou eu.” Um jeito de encarar esse embate é como um beco-sem-saída, no qual ninguém tem razão e nada faz sentido. Uma outra forma é vislumbrá-lo como sintoma de algo bem positivo, pois enquanto autor e crítico entregam-se a um showdown, como num faroeste, a obra, justamente por meio das posições opostas que gera, desaparece, ao pôr do sol, no livre horizonte, sem amarras ou grilhões.
9.
Uma das patologias do nosso tempo é a consciência limpa. Os escritores fazem seus livros alegremente e os jornalistas os comentam com entusiasmo. Ambos vão a eventos, nos quais tudo é radiante. Até os alunos de Letras veem-se na obrigação de botar no papel seus sentimentos, expressar em romances e poemas a profundidade do “eu” que creem ter. A leveza de espírito ajuda a circulação de mercadorias. Em lugar algum se sente o peso do passado, a força daquelas obras perante as quais muito do contemporâneo deveria calar-se. Talvez uma plataforma pedagógica para as próximas décadas seja a da refuncionalização da culpa, não como maldição ontológica, mas como estratégia de transmissão: inculcar nos futuros críticos e escritores um sentimento de débito, não apenas para com aquilo que já foi feito, mas principalmente com a potencialidade concreta, o que poderia de fato estar acontecendo agora, e diante do qual o presente fica tão insignificante. A culpa como ímpeto e motor do estudo, mesmo que, por vezes, leve ao silêncio.
10.
Uma moça me contata no facebook e depois de alguma conversa propõe trocar sexo por um projeto de mestrado. Rapidamente vi que o perfil era falso, mas fiquei intrigado que alguém pudesse valorizar tanto um projeto de mestrado. “Não deixa de ser um avanço”, disse para o A.C., “um sinal positivo da profissionalização do métier, que esse tipo de barganha possa passar pela cabeça de alguém, que um projeto possa ser um objeto de desejo dessa forma.”– “Olha a projeção, Fabio… Talvez não seja o trabalho acadêmico que tenha valor, mas o sexo que esteja barato”, observou.
11.
Opostos:
1. “- Senhor, não é permitido aos hóspedes tomarem café da manhã de chinelo.
– Mas eu estou aqui com um livro, olha, é o Ulisses, do James Joyce.”
2. “Um dia um professor estava saindo de uma livraria, onde tinha comprado alguns livros, e passou por um grupo da CRS [polícia paramilitar anti-protesto], que imediatamente começou a bater nele com seus cassetetes. O chefe deve ter percebido que não se tratava de um estudante, mas de alguém mais respeitável, e ordenou a seus homens que parassem. Um deles gritou, “Mas chefe, ele estava carregando livros!”[i]
12.
Há vários tipos de cegueira misturados no atual ódio à corrupção. Eles devem urgentemente ser sistematizados. Aqui vai apenas uma reflexão isolada: só pode haver crítica à corrupção a partir de uma garantia de validade das leis, que, como é sabido todos desrespeitam. A dificuldade de as pessoas encararem a sonegação como corrupção é prova disso. Há porém um outro aspecto que deve ser levado em consideração: a obediência às leis, o respeito pela legalidade, é proporcional à presença da justiça. Se me vejo sendo explorado continuamente, desde o patrão que me paga pouco (veja o meu salário), passando pelo fabricante e comerciante que querem tirar um lucro abusivo (veja o preço dos ovos de páscoa), pelos prestadores de serviço que economizam na mão de obra (lembre-se nos longos minutos no telefone para falar com sua operadora), chegando até a esfera da política (confira o favorecimento dos políticos aos seus financiadores) – se me vejo sendo prejudicado em todas as esferas, ser corrupto pode passar a ter um gosto de desforra: não apenas me dar bem, mas além disso prejudicar os outros. É claro, isso explica, mas não justifica. Seja como for, se você quer mesmo acabar com a corrupção, vai ter que lutar por uma sociedade mais justa.
13.
A expansão da ideia de ciência para os estudos literários tem gerado os mais diversos embaraços. Muitas vezes encontramos a queixa sobre a transferência de procedimentos de investigação e de avaliação, o protesto contra a quantificação da escrita e a necessidade de acelerar do pensamento. Tudo isso faz sentido; há porém um outro descompasso, quase nunca notado, que é mais inusitado. Trata-seda questão do financiamento: ele é em grande medida desnecessário. Para os estudos literários, o único gasto que realmente importa é o da compra de livros, para a qual não há editais nem verbas regulares. É ligeiramente cômico ver pesquisadores de literatura fazendo projetos para a aquisição de equipamentos – quantos computadores você consegue ter? Mas o ápice da farsa é a alocação de recursos para eventos. Principalmente no caso dos internacionais (ou em lugar com praia), são quase sempre desculpas para turismo intelectual. Os vinte minutos que você tem para expor o seu trabalho em uma imensa cadeia de apresentações, como em uma esteira transportadora, significam quase nada. Muitas vezes as ideias mais interessantes aparecem no cafezinho, ou tomando cerveja com pessoas inteligentes.
14.
O Professor gozava de imenso renome. Em torno de si reunia muitos seguidores, que se abismavam com a profundidade do seu pensamento, cujo fundo parecia ser inatingível. A incompreensão não era vista pelos leitores/ouvintes como um investimento absurdo do Mestre em si próprio, mas como uma insuficiência deles mesmos para apreender uma escrita/fala tão complexa e cheia de mistérios. Quando ficou gagá, ninguém percebeu.
“– Mas, Fabio, note bem: um cerne de incompreensão, mesmo um núcleo vazio de sentido, pode levar, justamente por ser oco, a várias teorizações interessantes, talvez até mais do que se lá houvesse uma tese de base.
– Sem dúvida. E há ainda a questão da mimese decorrente do narcisismo desenfreado, pois existe algo de atraente no amor excessivo de si, que tende a convencer pela simples intensidade do seu ser. São dois argumentos que racionalizam a sujeição e o gozo que lhe é peculiar”.
15.
Assistia uma palestra na qual duas estruturas frasais destacavam-se: “o que me chama a atenção aqui é…” e “isso me lembra…”. A primeira pulverizava a totalidade do objeto em itens isolados, subtraídos de qualquer articulação com outros elementos; a segunda fazia o mesmo, associando os componentes da obra a outros textos, primordialmente teóricos: Derrida, Foucault, Deleuze, Lacan e Agamben, o ubíquo. Como as relações eram pontuais, não havia justificativa que partisse do objeto, e sem o lastro da coisa o sujeito palestrante pairava soberanamente sobre ela. O resultado era um rigoroso impressionismo crítico, desprovido de erudição literária, e possibilitado pela teoria mais atual.
16.
Estava vendo uma fala de um grande crítico brasileiro sobre poesia dos anos setenta. Quando perguntado sobre o que achava do verso contemporâneo, respondeu: “vou ficar devendo, porque não sei o suficiente”. Vale a pena refletir no que está em jogo numa réplica aparentemente tão simples. Em primeiro lugar, salta aos olhos a humildade de se reconhecer não sabedor de algo, que se mescla com o rigor de não querer dizer qualquer coisa, de só se pronunciar sobre algo já digerido. Mais importante do que isso, porém, é o quanto esse ato de fala se contrapõe ao feirante das Letras, aquele crítico para quem toda oportunidade oferecida é vorazmente tomada, cada espaço ocupado. “Não sei isso” significa “quem determina o que me interessa sou eu, e não o repórter, o entrevistador, ou o público”. E isso fica mais veemente diante do presentismo da indústria cultural, cujo sentimento de urgência no fundo mascara a necessidade de se ver livre cada vez mais rapidamente daquilo que foi publicado. “Isso não sei” é um antídoto para aquele adjetivo novo, que condensa muito do que há de ruim na cultura atualmente, o da pessoa “antenada”.
17.
Li um pequeno texto crítico no qual a noção de consistência interna do objeto era completamente ignorada em prol de um ideal identitário: seria necessário abrir a literatura para outras vozes, a dos excluídos, não brancos e não homens. Sem dúvida, como já foi muitas vezes observado, essa visão identifica a obra como uma transposição imediata da experiência de vida de um indivíduo para o livro; trata-se de uma perspectiva regressiva, pré-estética, que ignora tanto o aspecto de construção do texto quanto o fato de que a escrita transforma o autor. Há, porém, outra objeção possível, decorrente da aplicação coerente da lógica em jogo. Por que falar apenas de não-brancos e não-homens? O que dizer, por exemplo, do aspecto religioso? Da oposição entre o rural e o urbano? O eixo Rio-São Paulo e o resto do país? A norma culta e os diversos dialetos? Ou da questão dos diferentes níveis de renda dos autores e seus partidos políticos? Com isso tudo em mente, a distinção identitária do articulista aparece como redutora, talvez mesmo politicamente mal-intencionada. E no entanto a saída não é difícil de imaginar: basta apenas entregar os comitês editoriais de revistas e editoras para competentes funcionários de estatística do IBGE.
18.
Missão impossível:
Complete as frases, de modo a dizer algo relevante:
“Os jovens de hoje são ______________”.
“A razão ocidental é ______________”.
Observação de um colega inteligente: “No limite, Fabio, o problema já reside na estrutura predicativa. O verbo de ligação faz força para juntar sujeito e complemento; a questão não é simplesmente criticar o “ser” que une – sem ele seria impossível pensar –, mas esquecer aquilo que com isso acaba suprimindo.” Não foi bem o que queria dizer (estava mais pensando no quanto certos conceitos contêm em si um conteúdo inutilizável), mas a emenda talvez tenha saído melhor que o soneto.
19.
Como um ramo qualquer do capitalismo, a indústria da cultura é acéfala. Embora seja dominada por um grupo bastante restrito de empresários, estes não têm um controle absoluto sobre as modas que criam, às quais no final se submetem – não que isso tenha qualquer importância, já que o fundamental é que haja lucro, independentemente do conteúdo veiculado. É fácil esquecer o caráter de sistema da indústria cultural e postular uma máster mind malévola por detrás daquilo que na realidade está apenas funcionando. Com isso, coloca-se intenção onde só havia plano, caráter onde existia número, moral onde impera dinheiro. E no entanto esse deslize conceitual, de supor humano o inorgânico, torna-se às vezes benéfico, pois não apenas dá mais concretude, torna mais visível, o que é estrutura, como evita um democratismo perverso: “somos todos escravos da mesma lógica do capital” desliza suavemente para “somos todos igualmente escravos da mesma lógica”, “compartilhamos todos do mesmo predicamento”.
20.
Vi certa vez um DVD com vários episódios de South Park, um desenho animado para adultos, que eram prefaciados com uma curta conversa entre os autores. Em cada uma delas invariavelmente diziam: “este é o nosso predileto”. A piada tem uma razão profunda, pois ela mostra como, em um mundo regido pela circulação de mercadorias, toda ocasião é única, uma oportunidade singular para a venda. Esta, depois de realizada, não deixa rastros, não cria um passado; ao invés, gera um vazio que permite a construção de uma nova necessidade (aqui fica patente a proximidade do capitalismo com o vício).Mas também para a crítica literária a reiteração cômica da predileção possui implicações. O que ela mostra é que cada ensaio ou artigo muito facilmente oculta a sua origem em uma situação pré-textual: o contexto lhe deu ensejo quase sempre permanece invisível. Faz toda diferença do mundo, se você escreve algo a partir de uma preocupação pessoal, ou se simplesmente responde a uma demanda vinda de fora. O crítico vendido, aquele que é um porta-voz do mercado da cultura, também sempre diz “esta é a minha obra favorita”.
21.
Quanto mais velho fico, melhor tocava piano quando adolescente. Talvez em vinte anos tenha sido um grande concertista.
22.
Tornou-se comum, de uns vinte anos para cá, colocar a data de submissão e a de aceitação no pé da primeira página dos artigos publicados em revistas acadêmicas. Há algo de farsesco nisso, pois, como sabe qualquer editor de periódico nacional, sem convites não se fecha um número de qualidade. Geralmente as datas são inventadas, escolhidas de acordo com o que melhor cai para a publicação. Talvez valesse a pena substituí-las por outro marcador temporal. Com a generalização das aplicações de teoria, as análises envelhecem com a mesma rapidez do arcabouço conceitual que é sua condição de existência. Seria assim útil ao leitor incluir um prazo de validade nos artigos, e de maneira dupla; por exemplo: “A narrativa de testemunho na pós-modernidade subalterna” – válido, no Brasil, até 2030; nos EUA, expirado há vinte anos.
(Isso teria o mérito de pelo menos deixar mais clara a obsolescência planejada das teorias.)
23.
Conversava com uma nutricionista no ônibus, e ao contar para ela o processo de composição de um artigo científico, teve uma ideia genial. “Por que vocês não colocam no final dos textos a sua lista de ingredientes, como é feito em qualquer alimento industrializado?” A bibliografia, em certo sentido, faz isso, mas a listagem é falha, porque inclui apenas ocorrências, e não a sua concentração. Mais elucidativo seria algo como: “Da Suspensão da Ordem Narrativa: o Estado de Exceção de Dom Casmurro”: 40% Agamben, 25% Walter Benjamin, 15% erros, 10% Carl Schmidt; 10% Machado de Assis”.
*Fabio Akcelrud Durão é professor do Departamento de Teoria Literária da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O que é crítica literária? (Parábola/Nankin).
Nota
[i] Nicolas Daum, Des révolutionnaires dans un village parisien. Paris: Londreys, 1988, p. 211, citado por Kristin Ross, May 68 and its afterlives. Chicago: Chicago U.P., 2002, p. 30.