Por LUIZ MARQUES*
As mudanças na agenda progressista e na definição de suas demandas
O que é ser de esquerda? No fim do século XIX se respondia à pergunta com um elenco limitado de demandas – fim da jornada exaustiva (16 horas) de trabalho para mulheres e crianças; liberdade de expressão e organização; e universalização do sufrágio. Juridicamente a democracia mínima exige o sufrágio livre, universal, secreto, adulto e igual; as liberdades civis clássicas de expressão, consciência, reunião, associação e imprensa; e garantias contrárias a prisões sem julgamento. Por este parâmetro a democracia só chegou a quatro nações antes de 1914: Nova Zelândia (1893), Austrália (1903), Finlândia (1906) e Noruega (1913). A democracia não é dádiva dos céus. Ela cobra a pesada moeda da dignidade no bojo de conflitos, desafio da autoridade, assunção de gestos de coragem, provação ética, confrontações violentas e crises gerais em que se rompe a ordem político-social vigente.
Cem anos depois, a agenda progressista incluía reivindicações concernentes à preservação do meio ambiente e da biodiversidade; igualdade racial e de gênero; autonomia na escolha da sexualidade (LGBTQIA+); políticas públicas estatais de combate às desigualdades; e o aperfeiçoamento da democracia representativa através de mecanismos de participação direta da cidadania. “O feminismo foi com certeza o mais importante desses movimentos emergentes, forçando uma reavaliação completa de tudo o que a política engloba. Mas também a ecologia radical, ligando de formas inesperadas o ativismo popular, a experimentação comunitária e a mobilização extraparlamentar. Modos de viver alternativos conquistaram imaginações e sinais de uma presença política nova”, enfatiza Geoff Eley em Forjando a Democracia: a História da Esquerda na Europa, 1850-2000 (Fundação Perseu Abramo). O tempo correu, e a resposta ganhou uma maior complexidade e amplitude. A excrecência colonialista, o racismo, fez-se indissociável da convergência democratizante.
Não é pouco, sob a lua minguante de hegemonia do neoliberalismo, em que o principal assunto nos noticiários remete “às privatizações, à austeridade fiscal e ao teto de gastos”, segundo os interesses das finanças. Historicamente o programa da esquerda é expansivo, o que tornou a democracia “um processo cumulativo de valores civilizacionais”. A definição recupera a tese de Claude Lefort, em A Invenção Democrática (Autêntica), sobre um sistema com efeito democrático e participativo, que antecipa o amparo em um arcabouço jurídico e é percebido como um movimento que se retroalimenta de vetores igualitários – não de meras idiossincrasias e palpites ocos. A esquerda anda de mãos dadas com a democracia.
Por outro lado, a concepção neoliberal-midiática restringe a democracia à disseminação de opiniões, independente do grau de preconceitos grosseiros que carreguem e veiculem. Uma tal visão estimula polêmicas vãs e reativas na sociedade como um “direito de cada um”. A saber, o direito de ser abjeto na passarela sem ruborizar. Confunde a liberdade pública com uma latrina privada para aumentar a audiência e o faturamento. Eis um dos motivos para o crescimento do populismo de extrema-direita, a difusão negacionista na pandemia e o ambiente favorável às fake news nas redes sociais. Nos desgovernos que atacam direitos sociais e trabalhistas adquiridos, o que parecia tão sólido se desmancha no ar. Uma disputa surda na coxia do palco, por detrás das cortinas ideológicas que separam a esquerda da direita, é travada entre a Modernidade e o Tradicionalismo com uma esgrima de valores.
As promessas inacabadas da Modernidade
Charles Baudelaire descreve o moderno como o domínio da efemeridade. Exemplifica com a moda que designa a imprevisibilidade (dândi, afetada). “A moda e o moderno ligam-se no tempo e no instante, misteriosamente relegados ao eterno”. Eureca. Com o que o mundano e o efêmero imprimiram na cotidianidade a importância que não tinham anteriormente. A “mística” e a libertação deixavam de ser inquilinos da eternidade. Impunha-se apreciar as peças inscritas no mosaico histórico, embora incompleto. A interrupção do sonho redentor não devia eclipsar os episódios fugazes e intensos, nas barricadas. Quem quiser lamentar a dissolvição da aura na época de reprodutibilidade técnica da obra de arte, que o faça. Não obstante, haverá por que vibrar como em um gol com a irredutível democratização do Uno.
Com o fracasso da onda de revoluções de 1848 no Velho Continente, a questão não estava mais em diminuir a distância entre a natureza e a humanidade, o privado e o público, o particular e o geral, o cotidiano e o Estado. Mas em aprofundar as contradições para implodir os padrões da burguesia na filosofia, nas artes, nos costumes, na moral. Até raiar uma insurgência total. O surrealismo ouviu o chamamento para a sublevação do espírito contra a realidade. A transformação (possível) frustrada no real cedia ao imaginário sobre a (impossível) transformação ideal. “Imaginação ao poder”, festejaram os rebeldes de 1968.
O signo de “maldito” marcou o autor de Les Fleurs du Mal, dando origem ao adjetivo que estigmatiza grupos sociais, esquinas, cadernos de poesia. A coreografia e a discografia das bandas musicais de rock tipo psicodélico (Os Mutantes, São Paulo) e hard (Kiss, Nova York) são ressonâncias anímicas da rebelião baudelaireana. Para os brutos a maquiagem é um artifício supérfluo. Para os sensíveis acentua a similaridade do humano com o belo em uma estátua. Se o caleidoscópio colorido da subversão não muda o mundo, reencanta a vida.
A Modernidade não se resume aos valores iluministas e à supremacia do conhecimento e da ciência sobre o obscurantismo e o curandorismo. Por igual, não se esgota em lampejos de criatividade. A Modernidade contém a herança do que ainda está por vir, na prática, da emblemática e inacabada tríade prometeica: liberdade, igualdade, solidariedade. Para alguns pensadores (Habermas, Touraine), isso faz precoce o aceno “pós-moderno”, que terá de esperar o cumprimento das três promessas modernizadoras para se apresentar. Existem muitos conflitos ainda por eclodir para a plena realização dos compromissos enunciados.
O Modernismo é melhor compreendido a partir das tensões dialéticas que o Tradicionalismo político-filosófico busca sufocar com a volta ao conservadorismo pré-moderno. Isto é, às épicas Cruzadas cristãs para retomar a Terra Santa e Jerusalém, manu militari. Um percurso reconfigurado pelo atraso que se expande na Europa Ocidental e na América Latina, para bloquear os avanços da civilização. O trem da história se locomove, romanticamente, em direção ao futuro como querem os socialistas, ou em direção ao passado como querem os reacionários, os racistas, os misóginos, os lgbtfóbicos e os sem noção. Cada um escolha o seu lugar no trem que parte. Há espaço para “todes”. Próxima estação: Fora Bolsonaro.
A vontade de potência da extrema direita
A extrema direita não tolera o “politicamente correto” para barrar os atos de linguagem destinados à humilhação, onde os fracos não têm vez. Prefere ora o Silêncio (do porteiro da vivenda), ora o Grito (de milícias) àquilo que reequilibra os dissensos: o Verbo. Sem o qual, a democracia baseada na parole para institucionalizar os conflitos é inviável. Vira o fio da demagogia. Política é guerra por métodos diferentes, se nos polos conflitantes couber o argumento. A institucionalização ocorre quando as greves de trabalhadores são legalizadas, e se oportuniza que os sindicatos e os patrões sentem ao redor de uma mesa para negociar e aprimorar as relações laborais. Ou quando os partidos com um programa de superação capitalista aceitam participar de eleições, acatar as regras do jogo e o saldo das urnas.
“O mundo está transtornado”, comentavam com apreensão os extremistas de direita já na virada para o século XX. No plano teórico, esse desalento derivou para um niilismo que reage à depressão com o impulso nietzscheano à “vontade de potência”. Culmina no livro de Oswald Spengler, A decadência do Ocidente (Zahar), que Joseph Goebbels considerou o precursor do Nationalsozialische Deutsche. Spengler caiu no ostracismo, ao recusar o mito da superioridade racial. Porém, permanece sendo uma referência forte para os intelectuais conservadores / tradicionalistas. O pessimismo com o futuro mantém acesa a chama da nostalgia por uma Era fantasiada com uma harmonia fictícia, um progresso linear, uma religiosidade teocrática, um arianismo de sangue e uma sociabilidade sem contestação.
O fantasma do niilismo continua a atemorizar e render dividendos. O psicolinguista Steven Pinker, em O Novo Iluminismo: em Defesa da Razão e do Humanismo (Companhia das Letras), estava na batalha para demonstrar aos céticos que a vida, a saúde, a prosperidade, a segurança, a paz, o conhecimento e a felicidade acham-se em ascensão. A edição do volume em português é de 2018. Desnecessário lembrar que o texto – com o otimismo de Pangloss, o ingênuo personagem de Voltaire – foi escrito quando o surto do vírus, que ceifou mais de 600 mil esperanças no Brasil, ainda não entrara em cartaz. Conquanto o espectro neofascista rondasse de perto os dois hemisférios, guarnecido por um Power Point e pela Post-Truth.
A primeira classe social que “criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas; conduziu expedições que empanaram mesmo as mais antigas invasões e Cruzadas”, assim Marx se refere à burguesia no famoso Manifesto. De lá para cá, o elogio se transmutou em um epitáfio graças à perversão da natureza pela devastação das florestas e a invasão de terras dos povos originários. A humanidade, triste, reverenciou milhões de óbitos no biênio pandêmico. O privado volatizou o público. O particular sentou na arquibancada geral da falsa consciência. O cotidiano foi consumido nos shopping centers. A idolatria do dinheiro instalou e manipulou o falso “poder pelo poder”.
A descontinuidade direitista elegeu Trump e Bolsonaro. Desgraça acompanhada. Desaguou em uma maior concentração da riqueza e do mando. Em contrapartida, a descontinuidade de esquerda empodera o povo como sujeito político com a participação em instâncias de deliberações sobre os rumos da sociedade e do Estado. Sem uma autêntica democratização da democracia, não subsiste a politização da política. Nem ética na política. Nem República.
Um republicanismo democrático-popular
Não é sensato perseguir a continuidade que se perdeu. A terceira via é uma quimera, não a mágica para refazer as pegadas que o vento apagou, no deserto de empatia da acumulação do capital e do poder autoritário e/ou totalitário. Ademais, sua factível viabilidade política dependeria do engajamento da própria esquerda, que aquela tem por antípoda. Como nos versos do poeta espanhol Antonio Machado: “Al andar se hace camino / y al volver la vista atrás / se ve la senda que nunca / se ha de volver a pisar”. Vamos em frente, caminante.
Hoje, ser de esquerda implica opor-se ao neoliberalismo e ao neofascismo, e lutar contra os valores retrógrados do Tradicionalismo na longa duração da história. Na conjuntura nacional de curta duração, é um convite para a construção da unidade da esquerda (PT, PSOL, PCdoB, PSB, PDT) em uma Federação Partidária com a finalidade de potencializar um enfrentamento comum à barbárie, aproveitando a oportunidade surgida com a recente e surpreendente Reforma Política, no Congresso. Na conjuntura internacional, é um empuxe para efetivar a integração latino-americana, intensificar acordos com a África e robustecer o agrupamento de países (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) que recebeu a nomenclatura criada pelo economista-chefe da Goldman Sachs, Jim O’Neil, no estudo Building Better Global Economic BRICS. A multipolaridade de poderes junto às relações multilaterais, com o término do bloqueio econômico dos Estados Unidos a Cuba e a Venezuela, são imprescindíveis para alçar uma democratização de caráter mundialista.
O republicanismo democrático-popular assegura o “direito a ter direitos”, no contexto do Estado laico sob o cerco da partidarização das religiões, em que o neopentecostalismo conta com distintas plataformas (TVs, rádios, jornais, revistas, portais, etc.). Juarez Guimarães, no artigo A Esquerda Brasileira e o Republicanismo (Democracia Socialista), identifica no “republicanismo atualizado para o período do capitalismo e da ordem (neo)liberal” as digitais do “socialismo democrático”. A via para esperançar a emancipação na República utópica, com os pés no chão. Coisa que sugere modificações de monta em três níveis (o econômico, o político e o cultural) “vers la révolution culturelle permanente”, anota com denodo militante Henri Lefebvre, em La Vie Quotidienne dans le Monde Moderne (Idées).
O alargamento do leque de bandeiras características da esquerda, contemporaneamente, não é apenas o somatório de conscientização em face das postulações de reconhecimento dantes reprimidas. Tem a ver com o aumento das desigualdades, agravadas pela irrupção vulcânica do conservadorismo. O que se convencionou denominar de “década perdida” serviu à lenta incubação dos tensionamentos subterrâneos, no ovo da serpente – neoliberal e neofascista.
“A desigualdade gera, em quase todos os lugares, tensões sociais crescentes. Sem resultados políticos construtivos e perspectiva igualitária e universal, tais frustrações alimentam o crescimento das clivagens identitárias e nacionalistas observadas hoje em quase todas as regiões do mundo, nos EUA e na Europa, na Índia e no Brasil, na China e no Oriente Médio”, assinala Thomas Piketty, em Capital e Ideologia (Intrínseca), no capítulo de encerramento ao abordar os “Elementos para um socialismo participativo no século XXI”.
A hora e a vez do socialismo participativo
“A partir do momento em que se afirma não haver nenhuma alternativa plausível para a organização socioeconômica atual e a desigualdade entre as classes, não surpreende que a esperança de mudança se volte para a exaltação da fronteira e da identidade”. Uma enorme derrota teria amadurecido vitórias relevantes, no dito “identitarismo”. A história não é uma fatalidade movida pela teleologia, imune às lides políticas e ao acaso do indeterminismo.
“A nova narrativa hiper desigualitária imposta desde os anos 1980-1990 não é uma fatalidade. Se, em parte, é produto da história e do desastre comunista, também resulta da insuficiente propagação de conhecimentos, de barreiras disciplinares demasiado rígidas e de uma apropriação coletiva limitada das questões econômicas e financeiras, em geral abandonadas a terceiros”, reitera Piketty. A situação é insustentável. A fome se espalha. As desigualdades beiram o absurdo, no país: 43,4 milhões de pessoas (20,5% da população) sofrem de insegurança alimentar moderada e 19,1 milhões (9%) de insegurança alimentar grave. A paisagem urbana lembra um campo de refugiados, tamanha a miséria à vista.
“Toda a história dos regimes desigualitários mostra que, acima de tudo, as mobilizações sociais e políticas e as experiências concretas permitem mudanças na história. A história é produto das crises e nunca é escrita de maneira prevista nos livros”, arremata o economista francês. Os livros fornecem ideias que podem ser usadas nas crises, para sair ou entrar nelas.
A crise ambiental e climática se encaminha para o ponto de irreversibilidade, colocando em risco a existência da vida no planeta. Eis a maior prova da debacle sistêmica do capitalismo. As projeções otimistas estimam um século à solidão que virá, não mais. A urgência, aqui, não é uma imagem retórica. É a crua e insofismável verdade. A burguesia em escala mundial demonstra não ter nenhuma capacidade de frear a destruição, então em marcha acelerada.
Na esteira do republicanismo e do socialismo democrático, o conceito de “socialismo participativo” enaltece a participação e a descentralização que estampa “a diferença desse projeto com o socialismo estatal hipercentralizado implementado nos países pertencentes ao comunismo na versão soviética (presente, em grande medida, no setor público chinês)”. Eis o desafio estratégico dos anjos tortos. O desafio tático é montar uma aliança partidária que amplie sem desfigurar o projeto Lula-lá. A eleição é um meio que se entrelaça com os fins. Até onde vai a antropofagia oswaldianana política brasileira, nesses tempos sombrios?
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.