Por GUILHERME PREGER*
Crítica à excepcionalidade do conceito
O discurso de “revolução política” é uma redução do conceito de revolução. Lembremos que o conceito de revolução vem da obra de Copérnico. Pois bem: sem revolução da imprensa (Gutenberg), não haveria revolução científica de Copérnico; sem revolução científica não haveria enciclopedismo; sem enciclopedismo não haveria revolução francesa; sem revolução francesa não haveria as revoluções políticas subsequentes. Atualmente há uma grande revolução em curso, que é a revolução digital, e que muda inteiramente a gramática das forças produtivas (como foi a revolução de Gutenberg). Então não cabe a suposição de que a vigência da revolução fracassou ou se exauriu. Em verdade, estamos no meio do turbilhão de uma delas.
É conhecida a importância que Marx deu à revolução industrial e a amplificação das forças produtivas pelo desenvolvimento da maquinaria[i]. Na dialética entre as forças produtivas e as relações de produção, estas estão sempre atrás daquelas, procurando capturar o incremento produtivo (de valor) gerado pela transformação técnica. A revolução política do proletariado procura resolver o descompasso entre as forças do trabalho e as relações de propriedade pela passagem ao comunismo, através do socialismo. A revolução política preconizada por Marx faz um ajuste entre as forças produtivas geradas pela revolução industrial e as relações de propriedade que a entravam. E mais uma vez: sem a revolução científica do século XVII não haveria a revolução industrial do século XVIII e não teríamos a produção de um “proletariado” que, mais do que um agente, é o móvel da revolução política. O próprio Engels reconheceu este fato ao denominar a versão marxista de “socialismo científico”.
Há os que defendem a revolução digital em curso como a quarta revolução industrial. A primeira foi a introdução da máquina a vapor, no fim do século XVIII (exatamente aquela estudada por Marx); a segunda, no fim do século XIX, veio com o surgimento do motor à combustão a petróleo e com a introdução da eletricidade (e Lenin famosamente disse que a revolução significava sovietes mais a eletrificação); a terceira, no final do século XX, chegou com a eletrônica e a automação (e foi acompanhada pelas revoltas de maio de 68). A quarta revolução é a da digitalização, que está em curso. Mas, de fato, a transformação digital, como é chamada vulgarmente, não é apenas a introdução de uma nova tecnologia, mas sobretudo de uma nova gramática produtiva e reprodutiva. É uma revolução tão importante como foi a invenção da escrita (que criou com ela a moeda e os números, e também os impérios e a cobrança de impostos). A transformação digital se amalgama e se potencializa com a revolução informática. Esta se tornou possível, de um lado, com a Teoria Matemática da Comunicação de Claude Shannon (1948) e, de outro, com a teoria da computação de Alan Turing a partir dos anos 30 do século XX (as chamadas máquinas de Turing).
O surgimento do computador está para a linguagem digital como a imprensa estava para o alfabeto escrito. A convergência das duas se dá em torno do conceito de “bit”, o dígito binário. A aritmética binária foi consolidada por Leibniz no final do século XVII. E a lógica binária por George Boole em meados do século XIX, ao traduzir a lógica clássica aristotélica para a lógica dos circuitos (e daí, posteriormente, ela pôde ser “transduzida”[ii] por meio de circuitos elétricos, o que permitiu o surgimento da eletrônica). Repasso essas datas e nomes apenas para mostrar que revoluções técnicas, epistemológicas ou científicas nunca se dão de uma hora para outra, mas a partir de uma série de contribuições históricas de longa duração. Tampouco, no entanto, há uma série linear de acumulação de conhecimento. O que acontece é que linhas concorrentes de desenvolvimento epistemológico se encontram num artefato (como o computador), que as conjuga de forma altamente produtiva, ou numa teoria que, associando linhas distintas e aparentemente desconexas de pesquisa, resolve um problema específico e permite dar um salto de desenvolvimento técnico.
Por sua vez, uma revolução científica, que Thomas Kuhn descreveu sob a forma de “mudança de paradigma”, ocorre quase sempre em torno de uma “anomalia”, um acontecimento imprevisto e “fora da curva” que, ao não poder ser assimilado pela teoria hegemônica da ciência normal, força o paradigma a se transformar[iii].
A teoria da evolução de Charles Darwin foi ela própria revolucionária, pois mudou completamente o paradigma biológico teleológico de sua época (i.e., submetido a um fim), para o paradigma da evolução “aleatória” por mutações. A partir desta teoria, o paleontólogo Stephen Jay Gould preferiu denominar de “equilíbrio pontuado” o conceito para descrever transformações dramáticas e irreversíveis nos nichos ambientais. Equilíbrio pontuado significa que as formas de vida se estabilizam por temporalidades razoavelmente longas para mudar graças a uma transformação súbita nas condições geológicas e climáticas do planeta (sendo que esta transformação súbita poderia durar alguns milhares de anos, dada a diferença de escala entre o tempo geológico e o relógio biológico das espécies)[iv].
Nenhum desses conceitos de revolução, salvo o de política, é orientado teleologicamente, em função de uma finalidade. Em nenhum desses casos, há uma condução de “vanguarda” do processo. É antes ao contrário: tão logo se apresenta uma transformação de um paradigma (epistemológico, técnico ou biológico) são antes os “agentes” que parecem ser conduzidos pelo curso irreversível da história ou da evolução natural. A ação dos agentes, ou é de adaptação ou é de aproveitamento das possibilidades abertas pelas revoluções. Como veremos mais adiante, uma revolução não necessariamente avança de um estágio “inferior” para outro “superior”, porém há sempre um aumento de variedade e de complexidade [v].
Entretanto, no caso das revoluções políticas, há a crença no processo mais conduzido do que condutor. Daí que frequentemente uma das questões mais aflitivas dos teóricos da revolução é justamente identificar os “agentes” que serão os condutores do processo revolucionário histórico. Sem esses agentes, parece que revolução carece do impulso necessário para vir à superfície histórica. E sem esse impulso, o momento revolucionário se perderia. Por outro lado, a “isomorfia” estrutural entre as revoluções científicas e políticas é um tema de longa discussão. Se o termo começa a ser usado por Copérnico para denominar a rotação completa dos astros, logo no século XVII ele é transplantado para o terreno político com a chamada “Revolução inglesa de 1640”. No século XVIII, o termo volta a ser utilizado no âmbito científico quando Condorcet denomina o trabalho de Lavoisier como uma “revolução na química”. Kant consagra o termo ao escrever sobre a “revolução copernicana” transferindo o termo do movimento dos astros à transformação epistemológica da teoria[vi]. Também a revolução política deve supor uma total “mudança de paradigma” social, a ponto de, como diria Thomas Kuhn, após a revolução o sentimento predominante é de estar vivendo em “outro mundo”[vii]. Há então aqui uma questão digna de atenção e resposta. Haveria uma “hierarquia” entre os diversos modos do devir revolucionário? Seria a revolução política aquela a desencadear toda uma série de outras revoluções, exatamente por ser a que não depende nem de uma anomalia arbitrária ou de um encontro contingente entre ramos de conhecimento concorrentes, mas que confia na liderança da vontade determinada dos agentes revolucionários? A revolução política teria então a excepcionalidade de poder colocar uma “finalidade” humanamente discernível (virtude) na evolução arbitrária (fortuna)[viii].
Daí que em torno da revolução política temos frequentemente a discussão utópica sobre as novas relações sociais e existenciais que a revolução desencadeia, o “novo homem” e a “nova mulher”, os cortes epistemológicos que traduzem a mudança revolucionária nas condições do saber, as conquistas tecnológicas extraordinárias que a liberação das forças produtivas acarreta, e mesmo uma nova concepção da natureza na ciência, em conformidade com a nova sociedade revolucionária. As revoluções políticas prefiguram uma nova humanidade, uma nova natureza e uma nova ciência.
Gostaria de criticar aqui, não o conceito de revolução política, mas a noção de sua excepcionalidade frente a outros processos revolucionários, e sobretudo a primazia de condução que esta excepcionalidade supõe. Esta crítica discerne pelo menos quatro grandes problemas epistemológicos no conceito de revolução política, que travam a sua emergência:
(1) A crença na vontade política teleológica: a ideia de que a vontade humana seja o móvel da ação foi desautorizada pela psicanálise. Quem guia a ação do agente não é a vontade consciente, mas o desejo inconsciente que só pode ser buscado “retrospectivamente”, através de um método de anamnese e de interpretação. A revolução independe da vontade esclarecida dos agentes, sejam indivíduos ou partidos. Vimos também que Althusser localiza esta crítica também na teoria política de Maquiavel, pois a virtude está submetida à arbitrariedade da fortuna. Nenhuma revolução política dependeu da vontade individualizada de algum agente, mas é antes resultado da contribuição milionária de inúmeros agentes, distribuídos por diferentes gerações. Eventualmente é o exemplo de um agente já falecido que servirá de guia às gerações sucedentes. Porém, nenhuma revolução partiu da cabeça de um único “gênio”, seja Galileu ou Lenin, muito menos da condução de um partido. Mesmo no caso de Gutenberg ou de Copérnico, o trabalho de ambos não foi a revolução “em si”, mas resultou de um desdobrar histórico de suas contribuições com a de muitos outros pesquisadores. Nenhum deles acreditava estar fazendo “revolução”. Copérnico acreditava que a revolução era aquela dos astros.
(2) A crença no “evento instantâneo”: a revolução é certamente um acontecimento, no sentido de uma descontinuidade histórica, mas o acontecimento não é instantâneo. Mesmo que o “disparo” seja associado a um evento histórico, a temporalidade das revoluções inclui um tempo anterior e posterior e pode levar dezenas, centenas ou milhares de anos. E mesmo em caso de milênios, do ponto de vista cósmico, terá sido um instante. A temporalidade depende da escala de observação. As revoluções não costumam ser do tipo “tomada da Bastilha”, pois não ocorrem do dia para noite. Certamente não duram apenas o intervalo de uma geração. Como dizem os chineses, ainda é cedo demais para falar sobre a Revolução francesa.
(3) A crença na superação (aufhebung) de um estágio anterior menos desenvolvido: revolução não significa a passagem teleológica entre estágios de desenvolvimento. A própria noção de progresso científico e a concepção da era Moderna como avanço temporal contaminou a noção das revoluções políticas. No entanto, um modelo mais apropriado de revolução é o da catástrofe, isto é, da irreversibilidade histórica, da passagem por um “ponto de não-retorno” e da perda estrutural das condições anteriores. Isso não significa nem a noção de evolução gradual ou incremental nem a evolução através de estágios. Tampouco o cenário pós-revolucionário significa um estágio melhor, “mais maduro” da humanidade como na noção de Esclarecimento de Kant[ix]. Neste ponto, Yuval Harari está certo ao dizer que a revolução agrícola foi uma catástrofe em relação ao modo de vida caçador-coletor[x]. A revolução agrícola gerou a escravidão (pois os camponeses não podem fugir de sua terra em caso de invasão por tribos maiores). A revolução da escrita criou a moeda, os impérios e o monoteísmo. A revolução da imprensa gerou guerras religiosas fraticidas. A revolução científica amplificou a produtividade a níveis entrópicos que colocam a sustentabilidade dos biomas num ponto crítico. A revolução não traz um estágio moral ou eticamente superior do que o estágio anterior. Ela cria a sua própria legalidade.
(4) A crença na “pureza” revolucionária, como um movimento de “depuração”: na verdade, as revoluções representam certamente maior complexidade, pois como catástrofes, significam fracionamento e diversificação. O movimento é o oposto da depuração. Na verdade, cada fase normalizada de um processo histórico humano apresenta a longo prazo uma condição de metaestabilidade. Isso significa um degrau de estabilidade provisória, que é mantido “longe do equilíbrio” pela atividade social. Até que surge uma “bifurcação” no degrau que é uma oscilação (ou superposição) entre dois ou mais patamares alternativos. Este é um processo que se assemelha às estruturas dissipativas estudadas pelo químico Ilya Prigogine (1987). Esta bifurcação, que acontece num ponto de criticidade, é tomada como “revolucionária” porque é irreversível. Aumentam as variedades e com elas a complexidade necessária para lidar com a nova situação[xi]. Além do mais, as revoluções não são estágios sucessivos: a revolução da imprensa não sucedeu a revolução da escrita, pois tiveram caminhos distintos para depois se amalgamarem. Já a revolução genômica (engenharia genética) é filha da revolução digital (que permitiu entender o DNA como “código”). E por sua vez, a revolução digital em curso é paralela à revolução quântica e, mais à frente com o computador quântico, todas essas revoluções, digital, quântica e genômica, irão confluir numa única revolução.
No entanto, colocar a revolução nos termos da teoria da complexidade, num modelo de indeterminação e que não a supõe como consequência direta da atividade consciente de agentes, não retira seu caráter emancipatório. O estágio pós-revolucionário, como confluência de várias bifurcações, tem mais “variedade”, isto é, maior grau de liberdade. Se é verdade, por exemplo, que a revolução agrícola foi uma catástrofe em relação ao modo de vida caçador-coletor, por outro lado, ela permitiu um aumento na densidade populacional dos agregados humanos e ao mesmo tempo que criou novas simbioses entre humanos e não-humanos, animais e vegetais. O aumento inevitável de variedade precisa ser compensado com aumento de complexidade (que basicamente é uma redução da variedade através do estabelecimento de novas redundâncias). É a invenção da complexidade que deve ser agora tomada como emancipatória.
Finalmente, é preciso levar a sério a advertência de Thomas Kuhn: toda revolução é invisível. Quando se percebe a revolução, é porque ela já começou, isto é, seu processo histórico irreversível já está em curso. E isso não é moralmente bom ou ruim, mas é a emergência de novos padrões de moralidade. A revolução “acontece”.
*Guilherme Preger é engenheiro eletricista de FURNAS e doutor em teoria da literatura pela UERJ. É autor de Fábulas da Ciência: discurso científico e fabulação especulativas (Ed. Gramma).
Referências
ALTHUSSER, Louis. Política e História. De Maquiavel a Marx. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens. Uma breve história da humanidade. Porto Alegre: LP&M, 2016.
KUHN, Thomas. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: The University of Chcago Editions, 1970.
PROGOGINE, Ilya e STENGERS, Isabelle. A Nova Aliança. Brasília: Universidade de Brasília, 1987.
SHANNON, Claude. A Mathematical Theory of Communication. The Bell System Technical Journal, 1948.
SIMONDON, Gilbert. Do modo de existência dos objetos técnicos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020.
Notas
[i] https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap13/01.htm.
[ii] Referência ao conceito de transdução de Gilbert Simondon (2020), isto é, o estabelecimento de uma relação metaestável entre duas escalas com níveis de tensão diferentes.
[iii] ou a anomalia é assimilada pelo surgimento de um paradigma novo, incomensurável com o anterior. KUHN, 1970.
[iv] Sobre o equilíbrio pontuado, https://www.sciencedirect.com/topics/agricultural-and-biological-sciences/punctuated-equilibrium.
[v] De fato, a adaptação consiste em ajustar a complexidade organizacional à variedade nova.
[vi] Sobre esta oscilação entre o uso do termo revolução na ciência e na política, uma boa referência é o verbete na enciclopédia de Stanford: https://plato.stanford.edu/entries/scientific-revolutions/.
[vii] “In so far as their only recourse to that world is through what they see and do, we may want to say that after a revolution scientists are responding to a different world” (KUHN, 1907, Revolutions as chances of world view, p. 111).
[viii] Esta é a reflexão de Maquiavel que inicia o pensamento político moderno dissertando sobre a relação entre a arbitrariedade da fortuna (acaso) e a firmeza da virtude (vontade esclarecida). A virtude (do Príncipe) é aquela capaz de discernir entre muitos fatores, quais são os decisivos e seguir com esses adiante. Mas como observa Althusser, a virtude está subordinada à fortuna (acaso): “E descobrimos, por trás da teoria da virtù, um segundo estrato de reflexão, que diz respeito àquilo que poderia simplesmente designar com uma constatação da diversidade dos caracteres: existem temerosos, audaciosos etc., existem pois homens marcados por sua natureza e incapazes de mudá-la, sendo eles de tal modo, que seu sucesso se torna então puro produto da fortuna. Em outras palavras, a exterioridade radical da virtù em relação à fortuna inverte os próprios termos do problema. O próprio voluntarismo da virtù está submetido à necessidade irracional da fortuna” ( ALTHUSSER, IV. Fortuna e virtù: uma teoria da ação? In ALTHUSSER, 2007, p. 243).
[ix] Immanuel Kant O Que é o Esclarecimento (1784). Versão em inglês disponível em https://www3.nd.edu/~afreddos/courses/439/what-is-enlightenment.htm.
[x] “A fraude da revolução agrícola” (HARARI, p.87).
[xi] Como exemplo, a “revolução geológica’ da fratura do continente Pangea há 200 milhões de anos. O fracionamento do continente antes unitário afastou as placas tectônicas e permitiu o aumento da diversidade climática e biológica.