O ultimato de Lula

Imagem: Eugênio Barboza
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Por VALERIO ARCARY*

O afã de chegar ao poder a qualquer preço é fatal

“A ambição, assim como a cólera, é muito má conselheira. A amizade não se adquire, senão pela amizade” (Sabedoria popular portuguesa).

A tática da Frente Ampla “até doer” abriu uma crise na esquerda. Uma crise perigosa e desagregadora que Lula, aparentemente, está subestimando. Alckmin nunca poderá ser um vice decorativo. A indicação de Alckmin não foi somente um movimento especulativo, mas parece ser, também, um fato consumado, uma realidade, algo concluído, irrevogável ou irremediável. Ou seja, um ultimato para a esquerda.

Um ultimato é uma manobra política extrema. Extremo é algo muito grave. Ultimatos podem ser explícitos ou implícitos. Depreende-se que a apresentação de um ultimato é uma decisão definitiva, ou uma última advertência, a partir da qual não haverá negociações. A ideia que Lula tem tanta força que pode fazer ultimatos é um cálculo precipitado. O afã de chegar ao poder a qualquer preço é fatal. Ações produzem reações. Liderança não deve ser caudilhismo.

O desafio político de 2022 é imenso. O bolsonarismo não é, somente, uma corrente eleitoral de extrema direita. Bolsonaro não é, somente, um espantalho autoritário demagógico. O bolsonarismo é neofascista, e Bolsonaro ambiciona a subversão bonapartista do regime.

Quem compreende este desafio, e reconhece a legitimidade de Lula está diante da necessidade de lutar por uma Frente de Esquerda, até a última hora, nas eleições desde o primeiro turno. Mas isso não quer dizer que a esquerda possa aceitar ultimatos de que as alianças e programa serão decisões unilaterais de Lula. Lula pode muito, mas não pode tudo.

O caudilhismo cria uma ilusão de ótica. O caudilhismo é uma perversão autoritária da relação de autoridade da liderança carismática das organizações populares com as amplas massas. O culto à personalidade é um recurso demagógico que estimula a “ligação direta” do candidato que faz a representação dos sindicatos e movimentos sociais. Ninguém deve substituir o lugar das organizações coletivas construídas por dezenas de milhares de militantes. Trata-se de abuso de poder.

As reuniões de Lula com Aloysio Nunes, liderança do PSDB associado a Fernando Henrique, sinalizam uma negociação discreta de um governo de “concertação nacional” com participação tucana. A divulgação pela imprensa, em novembro último, de reuniões sobre uma possível candidatura de Alckmin à vice-presidência ao lado de Lula surgiu como uma manobra exploratória para conferir as possíveis reações. Uma manobra “exploratória” é uma iniciativa preventiva de antecipação de cenários, ou um movimento que busca aferir vantagens e desvantagens de um reposicionamento.

Foi uma iniciativa surpreendente, porque uma aliança do PT com uma ala dissidente do PSDB, o partido que expressou, nas últimas décadas, mais do que nenhum outro os interesses da poderosa fração paulista da burguesia, foi desconcertante, inusitado e assombroso. Poderia se agregar, também, perturbador, algo entre o desmesurado e o grotesco.

Desconcertante, não somente pelas diferenças históricas, mas porque o PSDB apoiou, sem dissidências, o impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Inusitado, porque ninguém menos do que Geraldo Alckmin foi o candidato do PSDB, quando Lula estava preso em 2018. Assombroso, porque ninguém sabe se Alckmin mudou de opinião sobre seja lá o que for. Desmesurado, porque desconsiderou a opinião até do PT. Grotesco, porque há algo entre o burlesco e ofensivo iniciar negociações com Alckmin antes de sequer sentar, por exemplo, com o PSol.

Trata-se, em primeiro lugar, de um ultimato ao próprio PT, que descobriu a articulação pelos jornais. Mas, também, a todas as organizações sociais e políticas que construíram a campanha Fora Bolsonaro, lealmente, em torno de um programa comum em 2021. Não existe, evidentemente, hipótese alguma de que esse programa de reivindicações seja um ponto de apoio para a campanha Lula/Alckmin. Finalmente, trata-se de um ultimato ao PSol que, previsivelmente, estaria contra.

Um ultimato obedece a um cálculo de ganhos e perdas, benefícios e prejuízos. Está fundamentado em uma avaliação da relação política de forças. A apreciação que inspira o convite a Alckmin é que, eleitoral e politicamente, a candidatura Lula tem uma força de arrastão tal que, mesmo contrariadas, as parcelas da esquerda indignadas com a presença de Alckmin, serão neutralizadas.

Esta estimativa é errada. Sobre-estima o potencial de votos na classe média que Geraldo Alckmin pode agregar para derrotar Jair Bolsonaro; sobrevaloriza o compromisso da parcela do PSDB atraída para a governabilidade de um governo liderado pelo PT; e, o que é o pior, sinaliza, desnecessariamente, para a burguesia e o imperialismo norte-americano os limites de um governo Lula.

Mas, também, subestima a força de movimentos sociais como os feministas, negros, de juventude e popular, ambientais e LGBTQIA+ que acumularam uma longa experiência com os governos Alckmin, em São Paulo, e o PSDB, nacionalmente. Além de desprezar a audiência do PSol e da esquerda mais combativa, o que já se revelou um erro grave em eleições recentes, como para prefeitura de São Paulo, em que Boulos chegou ao segundo turno.

Evidentemente, as eleições de 2022 serão, qualitativamente, diferentes de todas as outras eleições desde 1989, e devemos ter máxima responsabilidade. O fato fundamental é que será uma luta contra um governo de extrema-direita liderado por uma fração neofascista dirigida por um candidato a Bonaparte. Durante os últimos três anos ficou clara a ameaça da retórica golpista. Não se abriu um momento de perigo “real e imediato” de uma quartelada, mas estivemos perto.

Estamos em janeiro de 2022, há dez meses do primeiro turno e, na conjuntura deste início de ano, as pesquisas de opinião sugerem que Jair Bolsonaro perderia as eleições para Lula, se fossem agora, talvez até em primeiro turno. Mas não são agora.

Décadas de processos eleitorais ininterruptos, assim como a circunstância de que ocorreu uma fratura na burguesia e uma parcela da classe dominante, com influência na parcela mais influente da mídia comercial, passou para a oposição, mas não conseguiram emplacar um nome unificado de “terceira via”, geraram uma mentalidade “facilista”. O facilismo é uma armadilha mental. O mais grave é a subestimação dos inimigos.

Bolsonaro ainda não foi derrotado. E o perigo de sua reeleição não deve ser desconsiderado: o projeto da extrema-direita é impor uma derrota histórica aos trabalhadores e à juventude. Sem a desmoralização de uma geração nas classes populares não será possível abrir o caminho para levar até o fim a recolonização do Brasil, e essa inversão da relação social de forças exige a destruição das liberdades democráticas.

É um grave erro diminuir as diferenças que existem entre os distintos regimes burgueses. Uma democracia liberal-presidencialista não é o mesmo que um regime bonapartista-presidencialista. Os dois são burgueses, mas diferentes. Uma democracia burguesa é superior ao bonapartismo.

A força eleitoral de Lula, muito maior que o peso político da esquerda, mas expressão da potência social da luta dos trabalhadores e explorados, é chave na luta contra o bolsonarismo. Mas a explicação para o prestígio de Lula repousa, em primeiro lugar, na construção do PT. Não o contrário. Não se pode explicar a imensa expectativa quase messiânica de sua autoridade política separada da história do PT. Sem o PT não existiria o lulismo. Sem o PT, Lula não teria conseguido superar Brizola nas eleições de 1989, e a disputa no segundo turno contra Collor foi decisiva para a sua projeção nacional posterior.

Hoje a dinâmica da relação se inverteu, qualitativamente. O PT depende de Lula. Não há porque não lembrar que a formação em 1979/80 de um PT sem patrões, que evoluiu para a influência de massas, rapidamente, nas grandes cidades do Estado de São Paulo, liderado por um líder grevista metalúrgico, sem relações internacionais sólidas foi um fenômeno político admirável, porém, imprevisto. O PT não foi um acidente histórico, mas foi uma surpresa. Na tradição marxista um acidente histórico é um fenômeno acidental ou transitório, portanto, efêmero.

Nos final dos anos 1970, a maior parte da burguesia brasileira e os líderes políticos da ditadura ainda temiam, seriamente, o espaço político que o PCB por um lado, e Brizola e Arraes por outro, poderiam ocupar quando viesse a anistia. Era a etapa histórica da guerra fria. Foi um tempo de anticomunismo primitivo.

Houve algo de formidável e emocionante, mas, também, algo de terrível na história do PT. Para remeter ao vocabulário cunhado pelos clássicos gregos, tivemos o momento epopeia, o momento tragédia e, até, um pouco de comédia na trajetória em que o petismo se transformou em lulismo.

O PT foi o maior partido da história da classe trabalhadora brasileira no século XX. Nos anos oitenta, Lula e a direção do PT (que organizou a corrente Articulação) foram capazes de empolgar um partido que, em dez anos, evoluiu de uma organização de uns poucos milhares, para centenas de milhares de ativistas. E que saiu dos 10% dos votos em 1982 para governador em São Paulo (e menos de 3% na média nos outros Estados), para uma disputa muito apertada do segundo turno nas eleições presidenciais de 1989, contando apenas com contribuições voluntárias.

O PT de 2022 é, evidentemente, outro partido, embora a fração dirigente seja, essencialmente, a mesma. Em quatro décadas, o PT elegeu muitos milhares de vereadores, algumas centenas de deputados estaduais e federais, chegou ao governo de mais de mil prefeituras, muitos Estados e quatro à presidência da República.

O PT de 2022 é a máquina eleitoral mais profissional do Brasil, portanto, integrada às instituições do regime. Paradoxalmente, a autoridade de Lula não diminuiu. Ao contrário, nunca foi tão grande. Tão grande que sua liderança ameaça o próprio partido, ao substituí-lo.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

 

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