Tinha um avião no meio do caminho

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Por Flávio Aguiar*

Apesar do establishment democrata não prometer algo melhor em termos de geopolítica, é certo que Trump representa uma grave ameaça ao mundo inteiro, em todos os sentidos.

Peço licença a Drummond: nas guerras entre os Estados Unidos e o Irã, no meio do caminho tinha um avião, tinha um avião no meio do caminho. Guerras: no tabuleiro multicomplexo do Oriente Médio há um enfrentamento militar “controlado”, depois do gesto um tanto quanto descontrolado de Trump, assassinando o general mais poderoso do Irã, Qassem Soleimani, o líder paramilitar iraquiano Abu Mahdi al-Murandir e mais uma dezena de milicianos, militares e guarda-costas; além desta, há uma “guerra de narrativas” no também multicomplexo tabuleiro da geopolítica e da geomídia mundiais.

O avião em questão foi abatido na primeira guerra, mostrando que o seu caráter “controlado” é bastante precário; mas ele segue voando na segunda, motivando ações que vão desde protestos internos no Irã até manobras midiáticas propiciando por vezes um rápido e conveniente “esquecimento” daquele assassinato múltiplo que está na raiz da catástrofe que vitimou 176 inocentes.

As hipóteses – todas especulativas – sobre as motivações do bombardeio do avião ucraniano são múltiplas. Pela ordem, ou desordem crescente: (a) erro puro e simples da unidade que disparou o míssil, por precipitação ou má avaliação; (b) falha nos radares do sistema de identificação envolvido; (c) falha de comunicação entre o sistema de identificação e a unidade controladora do disparo; (d) a teoria conspiratória (mas nem por isto descartável a priori) de uma sabotagem ou traição dentro da Guarda Revolucionária destinada a provocar a crise que provocou. A ver.

Na outra ponta das especulações, cresce consistentemente a hipótese de que a decisão de Trump pelo assassinato de Soleimani foi precipitada e fruto de um mau cálculo sobre seus efeitos. Reportagem publicada recentemente no The New York Times relata os passos que levaram à decisão, e ainda alguns dos passos posteriores dados pelas partes principais envolvidas, Washington e Teerã (ver Seven Days in January: How Trump Pushed U. S. and Iran to the Brink of War, publicada em 11 de janeiro de2020). Embora o título fale em “Sete Dias”, a reportagem retrocede a meses atrás, fazendo o levantamento de todos os fatores que calçaram a decisão.

A leitura fornece elementos para algumas conclusões, que enumero a seguir:

1. Houve uma influência marcante dos “falcões” do governo norte-americano (no jargão político dos EUA, os “amantes da guerra”), notadamente da dupla fundamentalista Mike Pence (vice-presidente) e Mike Pompeo (secretário de Estado). A decisão surpreendeu outros assessores, inclusive do Pentágono, embora estes passassem a atuar, com a CIA e o serviço secreto israelense, no sentido de acompanhar os passos do general iraniano e de detectar o melhor momento para executá-lo.

2. A influência centrou-se na alegação, de resto não comprovada, de que Soleimani tramava ataques “iminentes” a embaixadas e instalações norte-americanas na região. Tratava-se, então, neste raciocínio, de “proteger vidas americanas”, lema que não se apóia num amor à vida, mas sim à ideia de que elas valem mais do que a dos outros, corolário não de algum nacionalismo programático, mas sim da ideia de que os Estados Unidos são um “povo eleito” na história da humanidade, o que, de resto, fundamenta o apreço bíblico dos pentecostais norte-americanos (Pence e Pompeo incluídos) por Israel e particularmente por seu líder obsessivo, oportunista e fanatizante, Benyamin Netanyahu, visto como um moderno Josué a derrubar os muros de Jericó.

Em suma, nos argumentos para justificar o assassinato, houve mais convicção do que evidências. Soleimani entrou então na lista dos possíveis “assassinatos seletivos” promovidos pela política se “segurança” dos Estados Unidos desde o ataque às torres gêmeas em 2001. Mais recentemente o “falcão” Mike Pompeo trocou o “iminente” como justificativa do assassinato pela ideia de uma política de “dissuasão” mais ampla, comprovando a inconsistência da primeira alegação.

3. Fica claro que Trump foi motivado pela ideia de que com o assassinato de Soleimani ele “acumularia” mais pontos do que Barack Obama. Este “só” havia assassinado Osama Bin Laden, enquanto ele, Trump, somaria Abu Bakr Al-Baghdadi, califa do Exército Islâmico, e agora Soleimani. 2 x 1. Esta é uma das ideias obsessivas de Trump: suplantar Barack Obama em tudo. Também foi motivado pela ideia de que seria recebido como herói pelos seus parceiros pelo mundo afora.

4. Deu errado. Apenas geobasbaques como Bolsonaro e Ernesto Araujo ficaram entusiasmados pela decisão do presidente norte-americano, com a subserviência que os caracteriza. Dos outros, apenas Netanyahu manifestou algum tímido entusiasmo, provavelmente porque foi o único governante a ser advertido do que iria acontecer antes do acontecido. Parece até que se vangloriou, dando “dicas” de que “algo importante estava para acontecer” em conversas com jornalistas. Continua querendo mostrar intimidade com Trump, pensando na eleição de março, em Israel, e na eleição de novembro, nos Estados Unidos, para fortalecer o lado mais reacionário do lobby israelense nos EUA. Na Europa ninguém piou, e se piou, foi meio contra. O chanceler iraniano, Zavad Jarif, foi convidado a vir a Bruxelas debater a situação, o que demonstra a cautela europeia.

5. A reportagem do NYT se refere às trocas de mensagens entre Teerã e Washington, na sequencia do assassinato de Suleimani, como algo veraz. O “go-between” foi a Embaixada da Suíça. Washington pediu moderação na retaliação iraniana. Depois da primeira leva de foguetes contra bases no Iraque, com presença de militares norte-americanos, Teerã avisou, pelo mesmo canal, que este seria, de momento, o nível de sua resposta militar. Com aviso prévio enviado através do Iraque, o que propiciou proteção a militares iraquianos e norte-americanos que por lá estivessem.

O Irã vai somando pontos políticos no Oriente Médio. Abandonou os limites do enriquecimento de urânio, mas continuou admitindo supervisão da ONU. Israel vai atacar? Não se sabe. Netanyahu está numa posição fragilizada, internamente. Um passo em falso poderia ser sua desgraça definitiva. A Arábia Saudita colocou até as barbas do profeta de molho. Foi pega de surpresa pela decisão de Trump. Outros atores são menores. E todos – Tel Aviv, Riad, etc., estão na defensiva.

Uma observação extra. Soleimani tornara-se uma peça incômoda. Com sua desenvoltura, coragem ao ponto da temeridade, atitudes tidas como “demagógicas” pelo Ocidente, como ir confraternizar com soldados na linha de frente, a ponto de comer sua ração com eles, sua capacidade de concertar frentes comuns no tabuleiro extremamente fragmentado do Oriente Médio, sua iniciativa de se aproximar do governo iraquiano (que agora busca apoio da Rússia), tornara-se um “single player” de valor único na região.

Sua eliminação dá mais espaço e desenvoltura para todos os outros interessados no jogo pesado da região: Rússia, Damasco (impossível falar da “Síria”), Turquia de Erdogan, e até mesmo o Irã dos aiatolás. Com sua independência, Soleimani estava se tornando uma carta atuante fora do baralho dos aiatolás, predominante em Teerã. Pode haver algum alívio aí também. Quanto aos Estados Unidos, o futuro dirá o que tudo isto vai render para Trump. Apesar do establishment democrata não prometer algo melhor em termos de geopolítica, é certo que Trump representa uma grave ameaça ao mundo inteiro, em todos os sentidos. A sua atitude intempestiva em relação ao assassinato de Soleimani é prova disto. É um desequilibrado. Que lidera milhões de desequilibrados em seu país.

*Flávio Aguiar é jornalista, escritor e professor aposentado de literatura brasileira na USP.

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