Por VALERIO ARCARY*
Rosa era judia polonesa e, politicamente, era também alemã, mas era sobretudo uma irredutível internacionalista
“Quando Rosa sublinha (…) a luta contra “o fantasma da guerra nacional” (…) não se pode deixar de reconhecer que o seu raciocínio é muito justo e válido. O erro seria exagerar esta verdade, ao faltar à regra marxista que exige que sejamos concretos, isto é, estender as interpretações sobre a atual guerra a todas as guerras possíveis na época do imperialismo, esquecer os movimentos nacionais contra o imperialismo. O único argumento a favor da tese que “não pode mais haver guerras nacionais” é que o mundo está repartido entre um punhado de grandes potências imperialistas e que, por esta razão, qualquer guerra, seja ela nacional em principio, se transforma em guerra imperialista, uma vez que ela fere os interesses duma das potências ou das coligações imperialistas. Este argumento é manifestamente errado. Certamente, a tese fundamental da dialética marxista é que todos os limites na natureza e na sociedade são convencionais e móveis, que não há qualquer fenômeno que não possa, em certas condições, transformar-se no seu contrário. Uma guerra nacional pode transformar-se em guerra imperialista, mas o inverso também é verdadeiro. Exemp1o: as guerras da grande revolução francesa começaram como guerras nacionais (…). Eram revolucionárias, porque tinham por objeto a defesa da grande revolução contra a coligação das monarquias contrarrevolucionárias. Mas quando Napoleão fundou o Império francês ao subjugar toda uma série de Estados nacionais da Europa, importantes e desde há muito tempo constituídos, então as guerras nacionais francesas tornaram-se guerras imperialistas, que engendram, por seu lado, guerras de libertação nacional contra o imperialismo do Napoleão.(…) Que a guerra imperialista atual de 1914-1916 se transforme em uma guerra nacional é completamente improvável (…) porque as forças das duas coligações não são de tal modo diferentes, e porque o capital financeiro internacional criou por todo o lado uma burguesia reacionária. Mas não é permitido qualificar uma tal transformação de impossível. (…) Isso é improvável, mas não impossível, porque é antidialético, anticientifico, teoricamente, inexato, apresentar-se a história universal avançando regularmente e sem tropeços, sem fazer às vezes gigantescos saltos atrás. (…) Toda a guerra é a continuação da política por outros meios A continuação da política de libertação nacional das colônias conduzi-las-á, inevitavelmente, a ter guerras nacionais contra o imperialismo” (Vladimir Ilitch Ulianov, aliás, Lênin, A propósito da brochura de Junius)
A invasão da Ucrânia e a necessidade de refletir sobre a natureza desta guerra me levaram a procurar os escritos da polêmica entre Rosa Luxemburgo e Lênin sobre a questão nacional. Rosa Luxemburgo era judia polonesa e, politicamente, era também alemã, mas, sobretudo, uma irredutível internacionalista. Um dia desses um jovem me perguntou, por uma rede social, se eu era luxemburguista, e eu respondi que sim. Ele ficou surpreso.
Depois de ler a polêmica sobre a natureza da Primeira Guerra Mundial entre Rosa e Lênin, embora concorde com Lênin, me senti mais luxemburguista do que nunca. Aprendemos com os grandes, mesmo quando discordamos de uma ou outra ideia. Eu tentei explicar que, em minha opinião, ser marxista no século XXI, significa ser leninista, trotskista, luxemburguista, gramsciano, e não considero contraditório reivindicar, em diferentes temas, a influência coletiva dos líderes da esquerda da Segunda Internacional. Não creio que seja incompatível um marxismo aberto e, ao mesmo tempo, revolucionário. Gosto de pensar que não se trata de ecletismo.
É verdade que minha identidade principal é o trotskismo, pela centralidade da “questão russa”, durante meio século. Tenho evitado o termo luxemburguismo, porque já foi usado de forma abusiva, até pejorativa, embora ele mereça ser utilizado.
Foi Josef Stalin quem encabeçou uma campanha de difamação de Rosa Luxemburgo, em um artigo sinistro, “Problemas da História do Bolchevismo”, em que reescrevia a história de acordo com suas conveniências, e no qual decretou, contrariando as mais incontroversas evidências, que Rosa seria responsável pelo imprescritível pecado teórico da revolução permanente, e que Trotsky, na verdade, teria plagiado Luxemburgo.
Isaac Deutscher, em O profeta armado, o primeiro volume de sua trilogia biográfica de Trotsky, reivindica, na condição de membro fundador do Partido Comunista polonês, organização herdeira, também, da influência de Rosa e de Leo Jogiches, que o seu partido teria nascido tendo como programa a concepção sobre as tendências históricas dos processos revolucionário expressas na teoria da revolução permanente.
De fato, podemos encontrar em Rosa uma identificação do papel do proletariado na revolução democrática contra o czarismo em Greve de Massas, Partido e Sindicatos. Mas, Rosa resumiu as suas análises sobre o tema, quando estabeleceu os vínculos entre as lições da revolução russa de 1905, e as lutas na Alemanha, tomando a influência dos partidos marxistas na Rússia como uma refração dialética do peso da Internacional no Ocidente, que por sua vez seria uma refração do grau de maturidade da luta de classes, na própria Alemanha. Um exemplo irretocável de análise dialética, em que o subjetivo se transforma em objetivo, em que o atrasado ultrapassa o avançado, e vice-versa. Internacionalista até à medula, portanto.
O estalinismo, no seu afã de destilar uma doutrina oficial “quimicamente pura” que não foi senão, essencialmente, uma vulgarização distorcida do pensamento teórico-político de Lênin, o famoso “marxismo-leninismo”, precisou inventar as mais mirabolantes falsificações históricas.
Entre elas surgiu a duradoura versão dos “desvios” de Rosa. Segundo esta tradição, Rosa teria sido do princípio até o fim de sua vida política: (a) sectária diante da questão nacional; (b) catastrofista em relação à natureza da época e do imperialismo; (c) espontaneísta em relação ao protagonismo revolucionário dos trabalhadores e (d) centrista nos problemas de organização. Em suma, com fortes tendências ao oportunismo.
Toda fraude intelectual precisa se apoiar em algum elemento de verdade para ser, minimamente, plausível. Assim não foi difícil descobrir que Rosa manteve, durante anos, e em torno aos mais variados temas, discussões acesas com Lênin: e essa seria a prova definitiva e categórica dos desvios do luxemburguismo.
A autoridade de Lênin foi assim manipulada ao serviço dos amálgamas mais aberrantes, em defesa do monolitismo como virtude. Assim como Trotsky, na verdade, Rosa manteve polêmicas com quase todos os marxistas mais influentes do seu tempo, umas de maior e outras de menor importância. Ninguém é infalível.
Esse, aliás, era o saudável procedimento dos revolucionários que foram seus contemporâneos sem exceção: submeter todas as ideias ao severo exame da crítica. A esquerda da Segunda Internacional reuniu por muitos anos, na forma de um movimento que depois esteve, no fundamental, comprometido com a fundação da Terceira Internacional, um punhado notável de marxistas das mais diferentes nacionalidades, que debatiam de forma aberta e pública os principais problemas que afetavam os destinos do movimento operário do seu tempo: Racovsky era romeno, Mehring, alemão, Sneevliet, holandês, Gramsci, italiano, Rosa e Radek, judeus-poloneses, Leo Joghiches, lituano, Lênin, russo, Trotsky, judeu-ucraniano.
A lista é, ao mesmo tempo, longa e impressionante. Não só pelo talento de uma geração excepcional, mas pela pluralidade de experiências nacionais diferentes, enfoques teórico-metodológicos diversos, e pelo impressionante volume de trabalhos, de uma produtividade incrível.
Todos discutiram, seriamente, uns com os outros. Os alinhamentos variaram, permanentemente, dependendo dos temas em pauta. Todos tiveram acertos e erros de avaliação. Tudo isso está amplamente documentado à exaustão.
Mas é mais simples implodir um edifício de uma vez só, do que demolir andar por andar. A desqualificação da obra de Rosa assumiu assim a forma de uma campanha contra o luxemburguismo. As deformações simplificadoras deixaram uma influência perene.
A recuperação do pensamento de Rosa está ainda por ser feito, em grande medida, e nesse sentido, poderá ser reconhecido o luxemburguismo, como uma sensibilidade, entre outras, de uma corrente política heterogênea: o marxismo revolucionário do início do século. Sim, sou do time da Rosa, um luxemburguista.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).